APROPRIAÇÃO CULTURAL E A CONSTRUÇÃO IDENTITÁRIA

Nos últimos anos vem ganhando força o debate sobre temas relacionados a cultura e a identidade social, quer seja nas mídias sociais ou em outras plataformas afeitas nesse sentido. Após o famigerado acontecimento em Curitiba, onde uma jovem branca, trajada com um turbante, foi criticada por mulheres negras em desaprovação ao uso do adereço, acalorou ainda mais a discussão sobre apropriação cultural e como a temática deve ser encarada de maneira séria, longe do panfletarismo miúdo e da intransigência costumeiramente observada em assuntos com esse teor.

Por acepção, apropriação cultural é a adesão de elementos de uma cultura específica por indivíduos que não pertencem a essa cultura. Podemos encontrar essa prática na arte, na música, na religião, etc. Uma pessoa branca ao colocar dreadlocks nos cabelos; as fantasias carnavalescas, sobretudo aquelas retratando os povos afros, caricaturando-os; os produtos da moda vendidos por empresas e estilistas, os quais ganham dinheiro assemelhando seus artigos com os produzidos pelos índios, como esteiras e redes, são alguns exemplos práticos dessa apropriação ocorrendo no cotidiano.

O cerne da problematização está nos impactos gerados pela retirada dos elementos presentes em determinadas culturas, pois, uma vez descontextualizados e usados por agentes estranhos a elas, assumem novos significados endossando o racismo e a dominância de uma etnia sobre outra. Prova disso é quando testemunhamos comentários sobre as tranças — estilo genuinamente afrodescendente e muito utilizadas por diversas pessoas. Se os sujeitos tiverem a pele clara, o penteado fica legal, descolado; se forem negros, a sensação passada é de desleixo, de pouco asseio. Tal conclusão é muito comum nas expressões do dia a dia.

Entretanto, quando dispomos a discutir sobre apropriação cultural faz necessário abandonar a falsa ideia de ter o indivíduo ao centro do debate e passar a enxergar a sociedade no tocante do objeto focal, afinal, é ela a representatividade atuante no contexto. Ao passo desse entendimento, podemos ir além e afirmar que apropriação cultural diz respeito a processos de construção identitária sustentados nos valores e nas reminiscências transmitidas na simbologia presente nos elementos de determinada cultura. A valoração de tais aspectos é uma resistência frente à tentativa histórica de extinção de culturas dominadas ante às dominantes.

Quando estudamos a história da cultura afrodescendente, é fácil identificar a ocorrência desse esvaziamento cultural. Uma vez trazidos de seus países de origens para serem escravizados, os negros eram propositalmente violentados nas suas histórias e crenças, a fim de tornarem massas vazias prontas para todo tipo de exploração. Entregues a própria sorte, tais personagens lidavam com a opressão para negar suas raízes e toda a sua construção de identidade. Seus cabelos eram raspados, o toque do tambor reprimido e a fé nos seus deuses suprimida. Todo o apagamento da cultura afro se deu por mais de trezentos anos. Hoje, os poucos elementos sobreviventes desse nefasto período, equivocadamente, muitas vezes, são utilizados por pessoas estranhas à cultura, as quais ignoram as suas representações.

Não se trata de promover uma perseguição a mulheres brancas com turbantes nas cabeças ou proibir loiros de usarem tranças, mas sim evitar a repetição da história por meio de mecanismos reformados os quais, assim com outrora foram, buscam o esvaziamento dos elementos significantes da cultura negra, tendo um mercado sedento por dinheiro mantendo o aparato funcionando. A lógica por trás dessa conjuntura é bem simples de ser entendida e se explica no poder aquisitivo ostentando pela estrutura capitalista. Quem paga, quer o produto e, no vale-tudo para vender, sequestra-se até a cultura, bastando apenas ser vendável. E é justamente essa contextualização de rentabilidade almejada pela indústria cultural.

Por outro lado, existem os opositores a essa ideia, os quais rejeitam expressamente a existência de apropriação cultural. Apoiados no discurso que cultura não tem dono e na miscigenação da população brasileira, esses incautos incorrem no erro de simplificar a questão fazendo-a retratar a liberdade do indivíduo frente às suas escolhas, quando, na verdade, conforme explicado anteriormente, a relação existente na apropriação cultural nada tem a ver com o indivíduo, mas sim com a ação do meio social nos elementos identitários de uma cultura. Ignorar essa compreensão realmente interditará o debate, deixando-nos estagnados na sua superfície.

Em síntese, nota-se o quão ainda precisamos avançar nas abordagens para desconstruirmos certas concepções incapacitantes. Falar de apropriação cultural é um ato combativo contra o apagamento de culturas secularmente dominadas. Também diz respeito a oportunizar a essas culturas condições efetivas de lutarem contra o aprisionamento de seus elementos, não permitindo-os serem remodelados ao julgo do poder econômico. Essa discussão deve ser incorporada nas atividades desempenhadas por os cidadãos conscientes, incomodados com os rumos trilhados pela sociedade, além, é claro, de fincar uma posição avessa ao racismo e a toda espécie de preconceito.