The Tramp and The Dictator*
O célebre filme “O Grande Ditador”, no qual Charles Chaplin interpreta um barbeiro judeu e o megalomaníaco Hynkel, clara alusão a Hitler, começa com a provocadora advertência: “Qualquer semelhança entre o ditador Hynkel e o barbeiro judeu é mera coincidência”.
O barbeiro se vê em problemas com a tropa de choque, até que um oficial alemão, que ele havia libertado na guerra, o reconhece e, por gratidão, impede que os soldados o molestem e aos seus amigos judeus.
Enquanto isso, Hynkel exerce a sua mitomania na sede do governo, cercado por bajuladores, criados e espelhos, obcecado com a idéia de uma raça ariana pura e brincando com o globo terrestre em miniatura, sentindo-se o imperador do mundo. A cena em que Hynkel brinca com o globo é uma das mais famosas e vistas da história do cinema.
As coisas começam a mudar quando o oficial, protetor do barbeiro, não concorda com a postura do ditador e torna-se inimigo do mesmo. Assim recomeçam as hostilidades contra os judeus. O barbeiro e o comandante são enviados para um campo de concentração. Ao ser confundido com Hynkel, o barbeiro tem a oportunidade de fazer um discurso, em outra cena clássica do cinema, no qual faz um elogio à paz e à fraternidade, em oposição à ideologia (e prática) nazista. Aqui se encontra a principal marca da genialidade de Chaplin que, usando a imagem do ditador, realiza a negação do discurso de Hitler, cuja admirável oralidade sempre foi reconhecida. Poder-se-ia dizer que Chaplin, desta forma, estaria promovendo uma “imagem de libertação”. O discurso pode ser citado numa infinidade de situações diferentes, sem perder a sua força arrasadora.
Considerando que o filme tenha sido produzido em 1940, ou seja, quando as maiores atrocidades cometidas pelo “nazifascismo” ainda não haviam se concretizado, podemos perceber nele uma espécie de alerta da barbárie que estava por vir. O mais certo é que nem mesmo Chaplin tenha julgado que o terror nazista pudesse ir tão longe, o que não impediu que ele fosse mal interpretado nos Estados Unidos, que ainda não estavam em guerra contra a Alemanha de Hitler. Tal fato fez com Chaplin fosse forçado a se mudar dos EUA para a Suíça.
Eis os parágrafos finais do discurso de O Grande ditador:
Soldados! Não vos entregueis a esses brutais, que vos desprezam, que vos escravizam, que arregimentam vossas vidas, que ditam os vossos atos, as vossas idéias e os vossos sentimentos. Que vos fazem marchar no mesmo passo, que vos submetem a uma alimentação regrada, que vos tratam como gado humano e que vos utilizam como bucha de canhão. Não sois máquina. Homens é que sois. E com o amor da humanidade em vossas almas. Não odieis. Só odeiam os que não se fazem amar, os que não se fazem amar e os inumanos.
Soldados! Não batalheis pela escravidão. Lutai pela liberdade. No décimo sétimo capítulo de São Lucas está escrito que o reino de Deus está dentro do homem - não de um só homem ou grupo de homens, mas de todos os homens. Está em vós. Vós, o povo, tendes o poder - o poder de criar máquinas; o poder de criar felicidade. Vós o povo tendes o poder de tornar esta vida livre e bela, de fazê-la uma aventura maravilhosa. Portanto - em nome da democracia - usemos desse poder, unamo-nos todos nós. Lutemos por um mundo novo, um mundo bom que a todos assegure o ensejo de trabalho, que dê futuro à mocidade e segurança à velhice.
É pela promessa de tais coisas que desalmados têm subido ao poder. Mas, só mistificam. Não cumprem o que prometem. Jamais o cumprirão. Os ditadores liberam-se, porém escravizam o povo. Lutemos agora para libertar o mundo, abater as fronteiras nacionais, dar fim à ganância, ao ódio e à prepotência. Lutemos por um mundo de razão, um mundo em que a ciência e o progresso conduzam à ventura de todos nós. Soldados, em nome da democracia unamo-nos.
Hannah, estás me ouvindo? Onde te encontrares, levanta os olhos. Vês, Hannah? O sol vai rompendo as nuvens que se dispersam. Estamos saindo das trevas para a luz. Vamos entrando num mundo novo - um mundo melhor, em que os homens estarão acima da cobiça, do ódio e da brutalidade. Ergue os olhos, Hannah. A alma do homem ganhou asas e afinal começa a voar. Voa para o arco-íris, para a luz da esperança. Ergue os olhos, Hannah. Ergue os olhos”. (1)
O filme foi um grande sucesso, foi assistido por milhões de pessoas e sabemos hoje que o próprio Hitler assistiu ao filme diversas vezes. O documentário “The tramp and the dictator”, produzido em 2001, trouxe a público um material que contém filmes amadores que mostram, em cores, os bastidores de filmagens de Chaplin. Entre as quais, cenas das filmagens de “O Grande Ditador”. O documentário também aborda aspectos importantes da biografia de Chaplin e de Hitler, mostrando curiosas coincidências entre ambos, como, por exemplo, o fato de os dois terem nascido na mesma semana, no mesmo mês e no mesmo ano (1889) e o fato de terem feito a primeira aparição pública de relevância no mesmo ano (1914). Além disso, o documentário deixa claro que Hitler assistiu ao filme “O Grande Ditador” mais de uma vez, conforme as citações a seguir: “Neste ínterim, pude consultar o arquivo dos filmes que Hitler tinha pedido para passar: é verdade! Ele pediu ‘O grande ditador’ e o pediu de novo, no dia seguinte!” (2), depoimento de Budd Schulberg, roteirista. E “Para mim é óbvio que Hitler assistiu a este filme e deve ter rido muito.” (3), depoimento de Reinhard Spitzy.
Nada disso, no entanto, foi suficiente para evitar, ou minimizar, os abusos e as atrocidades que viriam a ser cometidas por Hitler e seu séquito, o que demonstra que Herbert Marcuse tinha razão ao afirmar que:
Nada há de errado em fazer galhofa à custa do “Establishment” – mas há situações em que o divertimento, a troça e o drible perdem todo o sabor, tornam-se insípidos e idiotas, em quaisquer termos, porque são meros testemunhos de impotência política. Sob o fascismo de Hitler, a sátira silenciou: nem mesmo Charlie Chaplin e Karl Kraus conseguiram mantê-la de pé. (4)
O que não significa que se esteja minimizando a importância de Chaplin, pois “O grande ditador” continua e continuará sendo uma expressão de liberdade que, se não logrou sensibilizar o Führer, ao menos serviu para denunciar os seus crimes para a posteridade.
Vídeo: “The tramp and the dictator” – legendado em espanhol:
http://www.youtube.com/watch?v=f5GdyePoCcw
Notas:
* Este texto é parte do capítulo “As Imagens da Libertação”, de minha dissertação de mestrado. O referido capítulo foi publicado na Revista Educação e Filosofia (UFU), vol. 26, nº 52.
(1) O GRANDE DITADOR. Direção: Charles Chaplin. Estados Unidos da América: United Artists, 1940.
(2) e (3) The tramp and the dictator. Kevin Brownlow (Dir), 2001/2.
(4) MARCUSE, H. Contra revolução e revolta, p. 55.