O CANTO DE CHARLES ARCE E O LEGADO MISSIONEIRO

     Ao contrário do que fizeram no interior da pampa argentina, a estratégia dos colonizadores espanhóis na ocupação do atual território do Rio Grande do Sul foi menos letal e mais ideológica. Tomaram a frente os padres jesuítas e sua obra foi tolerada pela matriz por algumas décadas, resistindo até mesmo à investida criminosas dos bandeirantes por estes pagos em busca de mão de obra escrava.
     Aqui se instalaram as missões jesuíticas, que, na segunda leva, puderam prosperar a ponto de constituir uma civilização poderosa, que resistiu até a metade do século XVIII, quando sucumbiu à investida dos exércitos de Portugal e Espanha. Mas deixou um legado que orienta um caminho, valores e a lenda da Terra sem Males, de que tanto precisamos como sinalização de que um novo mundo é possível.
     É dessa história de um elo perdido que exsurge o canto de Charles Arce e a poesia de Silvano Saragoso. São valores missioneiros, um novo jeito de abraçar (“Um abraço missioneiro”) e de ver um mundo conflitado que precisa ser refeito para minorar injustiças sociais a partir da mensuração de um tempo que já vai longe na história, mas que está perto como modelo de convivência. Trata-se de um passado a ser posto como um horizonte de futuro. E isso o poeta e pesquisador Silvano Saragoso fixa com maestria ao relatar a micro-história das reduções, expondo um cotidiano de gente que só queria ser feliz na plenitude de seus dias simples e harmoniosos.
     Nos relatos de Silvano Saragoso e na prosódia melódica de Charles Arce, no seu violão pujante e nas participações especiais dos convidados que ajudam a perfazer um primoroso trabalho musical e artístico, vemos se constituir o CD “Valores missioneiros”, de uma estética estrutural que se mostra escalas acima dos padrões gráficos que costumamos encontrar. Acho mesmo que esta obra encerra definitiva e simbolicamente o ciclo dos CDs majestosos no RS e no Brasil, pois, num tempo de novas mídias e plataformas musicais, duvido que alguém venha a se aventurar a fazer algo igual ou parecido. 
     Quanto ao conteúdo do trabalho, trata-se de poesias e canções que revelam o encômio e a elegia de um ciclo histórico marcado pela utopia e pela inclusão dos aviltados filhos de uma era num reduto de gáudio, de vitórias coletivas e de uma irmandade que se perderia pelos fins dos tempos. Em cada canção, ouve-se o clamor de uma raça que não resistiu à barbárie dos conquistadores ditos civilizados. Na voz firme e desembaraçada de Charles Arce, está a vez de quem foi obrigado a se calar, mas que segue ecoando nos corações sensíveis, como no do pioneiro Noel Guarany, que fez o resgate de uma cultura estigmatizada pelos donos do poder, que a substituíram por oficialismos nos quais um tacão de bota pisoteia uma alpargata.
   Não obstante as Missões terem sido depredadas fisicamente, seus valores são bens imateriais que nem mesmo os mercenários que em 1801 a incorporaram aos domínios de usurpadores de plantão puderam destruir. A cada vez que um cantor impecável como Charles Arce e um visionário que honra Kierkegaard como o poeta Silvano Saragoso se unirem para exaltá-las, elas estarão presentes no imaginário daqueles que sabem que não é certo que a humanidade se perpetue numa obra em que as dores de uns sejam a matéria-prima da jactância de outros. As Missões dividem as águas cristalinas, mais inacessíveis, das águas turvas. Para molhar os pés, ambas servem. Para matar a sede, inclusive, de justiça, há que se prover dos valores missioneiros que estão disponíveis para todos, mas que só podem ser honrados pelos rebeldes e revolucionários.
     Prepare um mate e deixe o canto solidário de Charles Arce e o relato poético de Silvano Saragoso lhe contarem uma parte encoberta da nossa história gaúcha. Sepé Tiaraju é o fiador invisível dessa versão negligenciada.

 

Para ler no PDF, clique abaixo.

https://rl.art.br/arquivos/7736607.pdf

Landro Oviedo
Enviado por Landro Oviedo em 16/06/2020
Reeditado em 09/03/2023
Código do texto: T6978645
Classificação de conteúdo: seguro