Picuinhas da 40tena

O mundo está às vésperas do fim. Medéia adoraria essa frase, mas é minha. Até porque ela disse e fez coisa pior. É isso mesmo: o mundo está às vésperas do fim e nossa classe artística só fala em incentivo à cultura e bolsas incentivo. O covid-19 ainda está longe de ser controlado e a classe artística do país, além de esmolar, quer fazer caridade com o bolso alheio. Uma coisa é certa: cada país tem a classe artística que merece. E o Brasil não merecia outra. Nem melhor, nem pior.

Teço meus pitacos e fico na classe literária, minha área de interesse caso se fale em cultura no país, pois não há nada na cultura de um país que não tenha passado antes pela literatura. Na verdade, creio que todas as outras artes tenham nascido em dívida com a literatura. A palavra é, antes de tudo, o reduto do pensamento artístico, cerne ao qual convergem todos os caminhos da arte.

Nossa literatura teve seus dias de glória e se fosse citar nomes de peso a lista daria a volta em Júpiter com sobras. Tivemos muitos grandes nomes na seara das letras. E agora, que a escassez é regra, vejo escritor reclamar por não estar na “lista de leituras da quarentena” e que a literatura contemporânea foi deixada de lado. Por que será? Chatice. Nunca se lançou tanto livro fraco, chato e pobre no poder de sedução ao leitor. Porque o dever do escritor é escrever e convencer o leitor a ir da primeira à quarta capa. Se não consegue isso, fracassa no exercício de seu dever. Michael Jordan nunca escreveu literatura, mas disse algo que realça o que penso: “você (o telespectador) dispôs 1h30min do seu dia para me ver jogar, tenho que dar meu melhor” e Italo Calvino disse a mesma coisa com outras palavras “o leitor investiu dinheiro e tempo nisso (comprar e ler o livro), ele deve ter alguma recompensa”, os dois foram cirúrgicos e muito profissionais em suas colocações e posições. Porque dinheiro mal investido tem como correr atrás e ressarcir o bolso do prejuízo, mas as 3, 4h que você investiu numa leitura ruim, não tem santo que dê jeito. Deus, Shakespeare, Tolstói e Cervantes não perdoam o leitor idiota.

O que me deixa fulo do dedão do pé à raiz dos cabelos é o “nosso escritor contemporâneo” criar frentes, protestos e abaixo-assinados, encontros, saraus e reuniões de literatice para exigir incentivos, bolsas e financiamento para seus devaneios. Vou citar algumas histórias, vai ser rapidinho porque já foram tão comentadas que até vira-lata conhece e relata sem gaguejar. Graciliano Ramos já tinha Caetés pronto e metade de seu segundo romance (não sei se São Bernardo ou aquele da cachorra) e estava engavetado. Graça achava um disparate gastar dinheiro público com livro se não fosse didático, ainda que fosse o dele a concorrência. García Márquez vendeu a arabaca, ficou a pé e passou a viver com esse dinheiro até terminar Cem Anos de Solidão, ao terminar viu sua conta do açougue e da quitanda darem as mãos e a volta na Colômbia. Quem ler Paris é Uma Festa verá que Hemingway saía de casa pela manhã e voltava à noite para não dividir refeições com esposa e filho: passava o dia com fome ou esperava algum amigo oferecer rango e pinga, por sorte estes amigos ofereciam tanto a segunda quanto a primeira opção. Bukowski foi tão rejeitado num estado que mudou para outro, e a rejeição era seu pão de cada dia, até que apareceu um editor igualzinho a ele – fracassado, falido, louco e duro – e resolveu reativar sua editora e publicá-lo. O resultado vocês sabem. Faulkner disse (a entrevista está no livro As Entrevistas Históricas da Paris Review) que “o escritor não precisa de nenhum incentivo econômico, nada além de papel, lápis e borracha. Se você é um escritor de primeira categoria, nada pode detê-lo”, pode parecer exagero de Faulkner e dirão que só citei medalhões, mas lembrem-se que antes de serem “medalhados” foram bêbados, duros, loucos e fudidos. Como disse, a lista é bem mais extensa e é só vasculhar a própria memória e encontrará histórias semelhantes.

Minha cisma com as tais bolsas incentivo, além do fato de sempre serem os mesmos “contemplados”, é o seguinte: o sujeito elabora um cronograma/projeto, sei lá, e encaminha à secretaria municipal ou estadual de cultura. Os pedidos de bolsa são sempre de 3mil acima (oh sim, há um padrão de vida que não pode ficar abaixo disso, de jeito nenhum, embora o país esteja falido. Pergunto se estes caras nunca ouviram falar de Knut Hansum ou Dostoiévski), o mínimo de tempo como bolsista é de seis meses. E se depois dos seis meses o ilustríssimo não entregar a obra-prima, devolve o que a Secretaria de Cultura investiu ou prorroga a bolsa por mais seis meses? Acreditem: com certeza se aferram à segunda opção (nem vou citar as patacoadas da Lei Rouanet e seus desdobramentos). Assim, depois de tramoias e joguetes, vai ao seu grupelho literário e pede a algum renomado que escreva uma carta para afirmar que “Fulano(a) de Tal é um escritor(a) imprescindível na seara de nossas letras” e merece apoio para que sua Netflix não seja cortada e não precise pedir senha wi-fi do vizinho. Se fosse “tão imprescindível”, não precisaria de incentivo ou bolsa de qualquer tipo, ele(a) precisaria, sim, distribuir senhas às inúmeras editoras que fariam filas quilométricas à sua porta.

Meu exemplo não é grande coisa, é ínfimo na verdade, mas é melhor falar por mim. Já enviei texto à inúmeras editoras, não obtive resposta e isso não me abalou em nada. Quantos bons, bem melhores do que eu e você na verdade, não estão por aí rejeitados e engavetados? Escrevo poemas desde os 16 anos. São ruins, a primeira fase mesmo é medonha e a segunda rumina para se tornar razoável, porém continuo a labutar. Enveredei por contos e há anos trabalho em dois romances estagnados, é justo que me pendure numa “bolsa criativa” e passe o resto da vida como bolsista? Melhor sustentar mula a pão de ló. Não reclamo apoio, persisto e sigo. Entre 2013 e 2017 meu financeiro foi pras cucuias, a corda ficou tão apertada no pescoço que pensei: Deus, é desse jeito que vou conhecer Dante? Foram dias horríveis nos quais eu tinha que decidir qual das 3 refeições seria eliminada do cardápio diário. Apanhei, ajoelhei e fiquei de pé outra vez. Continuo a escrever, sempre dou o melhor que posso no meu texto e se dessa moita não sair nem eu nem o coelho para roer a cenoura da glória, ficamos amoitados e nos suicidamos com meu próprio veneno. Pois acredito que se eu não puder arcar com os custos ou se não encontrar uma editora que aposte no "meu talento" ou na "qualidade" do que escrevo, vou continuar como estou: a abarrotar HD’s e gavetas com meus escritos. Gosto muito de dinheiro para exigir que o Estado esperdice o meu e o seu, contribuinte. E posso te dizer, amigo escritor, não te conheço e acredito que seja capaz. Você não precisa do bolso alheio ou estatal para avançar em sua trincheira. Tempo você arruma de qualquer jeito. Sente, escreva, dê o seu melhor sem esperança de recompensa, pois não é você que é grande, mas a literatura que é imensurável. Os anseios e devaneios, de quem quer que seja, devem ser financiados por si mesmo ou por alguém tão louco quanto. O contribuinte não deve arcar com a “genialidade” de ninguém. O dinheiro do contribuinte deve ser gasto em 4 pilares fundamentais ao seu desenvolvimento: educação, saúde, segurança pública e saneamento básico. As entidades culturais ligadas ao Estado deveriam dizer como dizia minha avó: dou feijão e arroz, quem quiser caviar que se vire. Essa é minha opinião. No mais pessoal, na rua ou em casa, protejam-se, cuidem-se e cuidem dos seus.

Grouchesco
Enviado por Grouchesco em 18/05/2020
Reeditado em 25/05/2020
Código do texto: T6951224
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