O VELHO E O MAR, DE ERNEST HEMINGWAY

     O destino pode ou não ser identificável? Se o destino não é identificável, a própria ideia de destino teria dificuldades de ser sustentada, embora, haja coisas que existam sem que sejam também identificadas, como, por exemplo, os gases de algumas galáxias ou nebulosas, que só puderam ser observados depois que os instrumentos apropriados foram inventados e os astrônomos puderam olhar por outros espectros de luz, como o infravermelho e o ultravioleta. Mais ainda, não sendo identificável o destino, o homem nunca saberia qual o propósito de sua existência, mas, mesmo sem ser identificável,  o destino poderia ainda existir, usando justamente essa camuflagem como uma armadura, uma defesa, escondendo-se atrás da ilusão do livre arbítrio. Todavia, há casos históricos de homens que identificaram seus destinos e os abraçaram, sendo, portanto, descartada a hipótese de que o destino ao mesmo tempo exista e não possa ser identificado. Sendo o destino identificável, ele só não será identificado se essa for parte da estrutura mesma dele, ou seja, se o fato de não identificá-lo fizer parte do próprio destino.
     Como identificar, então, o destino de um homem? Essa procura pode se arrastar por uma vida inteira, mais ainda, essa procura pode ser parte integrante do próprio destino. Por abdução, o objeto a ser investigado em busca da identificação do destino de um homem tem de ser a Extarquia, em função da rigidez inexorável que ela carrega em sua constituição e estrutura.
     Fato é que, conhecendo-se ou não o destino, ele prevalecerá; não se trata de uma construção mental, nem de um objeto de fé, ele é um aspecto da realidade. Dele não pode ninguém fugir. O destino continua sendo implacável.
     O homem que tenta fugir de seu destino é como um pássaro voando longe do seu ninho. O homem que abraça seu destino é um homem que não teme a morte. O apóstolo Paulo quando encontrou a razão de sua existência percebeu também que o fundamento dessa existência o transcendia. Sobre sua vida, Paulo assim escreveu: “Porque para mim, o viver é Cristo e o morrer, é lucro.” (Filipenses 1:21). Paulo sabia o que estava fazendo aqui, sabia que seu destino era o que enxertava transcendência à sua existência: “Mas em nada tenho a minha vida por preciosa, contanto que cumpra com alegria a minha carreira.” (Atos 20:24).
     Para o Apóstolo dos Gentios, abraçar seu destino era mais nobre que a própria vida em si, era mais precioso do que existir. Quando ele sentiu o gelo da morte a lhe rondar, assim ele escreveu: “Combati o bom combate, acabei a carreira, guardei a fé.” (II Timótio 4:7).
     Talvez o destino de um homem seja um ato heroico, instantes antes de morrer. Talvez seja amar as pessoas que a vida trouxe a ele. Talvez a própria busca pelo destino seja o seu destino em si. Talvez seja uma única palavra no seu último fôlego de vida... Talvez o homem esteja condenado ao esquecimento. Talvez seu sepulcro seja abandonado e não haja flores sobre ele. Talvez ninguém o acene quando as cortinas se fecharem. Talvez sua partida seja regada a dores e lágrimas. É..., talvez... Mas aquele que encontra seu destino e o abraça vive sabedor de que sua existência não é vã, que há um propósito em estar aqui.
     Não importa qual seja o destino, é por ele que se está aqui, é ele que trouxe a todos até este ponto, é ele que, por fim, trará sentido às almas. Cada vez que uma pessoa aspira e expira o ar de seus pulmões é com um propósito, cada vez que uma pessoa ama alguém é com um propósito, cada lágrima, cada sorriso, cada adeus, cada curva, tudo é parte do que ela veio fazer aqui.
     A vida não será pequena, não será medíocre, não será fútil nem banal quando o destino for abraçado e for perdido o medo da morte, quando for abraçado tudo o que a vida trouxer para viver, e for entendido que da passagem por aqui só é eterno aquilo que o destino traz para ser eternizado.
     Nem sempre o destino que espera um homem é tão claro como foi o de homens como Sargão, Ciro, Alexandre ou Jesus, que reagiram a ele com coragem e obstinação, ou como o daqueles que tentaram obstinadamente fugir do destino, reagindo a ele com covardia e revolta. O que se pode fazer é olhar com atenção a Extarquia que exerce força sobre um homem e buscar nela as pistas do que poderá ser a finalidade e o significado de uma vida. Circunstâncias da vida que atropelam o homem, eventos que se repetem, o contexto onde nasceu, a inclinação de sua mente, os assuntos que arrebatam seu coração, como sua personalidade foi moldada, a personalidade inclusive das pessoas que o cercam, tanto as que nunca saem da sua vida, quanto aquelas que, ainda que queira ter sempre por perto, sempre acabam divagando e caindo no esquecimento. Enfim, além das circunstâncias que fogem ao controle, a própria Extarquia em si pode dar pistas bem sólidas e apontar a direção de seu destino.
     Há um trecho que chama a atenção quando o leitor tem o prazer de folhear a obra-prima de Ernest Hemingway (1899-1961), O Velho e o Mar, onde o personagem chamado Santiago passa dias lutando para manter um peixe fisgado ao seu anzol. Depois de dias e noites lutando com todas as forças na solidão do oceano para capturar o peixe, ao mesmo tempo em que  o grande peixe também lutava para desvencilhar-se da armadilha, este pensamento ocorreu ao velho Santiago:
 
     "Tinha escolhido permanecer nas águas fundas e sombrias, fora dos laços, das traições, dos engodos. E eu escolhi ir até lá ao encontro precisamente dele. Precisamente dele e de ninguém mais. E agora estamos unidos, e têmo-lo estado, desde o meio-dia. E ninguém pode ajudar-nos; a qualquer de nós. Talvez eu não devesse ser pescador, pensou. Mas foi para o que nasci."
 
     É um daqueles momentos em que o leitor interrompe a leitura e fixa o olhar no vazio, impactado pelo que acaba de ler, transportado para dentro do barco do Santiago, sentindo-se no lugar daquele velho pescador, mergulhado na mesma introspecção que só uma pescaria solitária sabe oferecer, ouvindo os pensamentos do pescador de uma forma tão real e presente, que até a rouquidão da sua tenra voz se faz percebida. Pensamentos que concluíam que foi para aquilo que ele nascera. É viver a arrebatadora experiência de testemunhar um homem encontrando ali a razão de sua existência, não importando o quão supérflua e banal possa parecer se comparada a outras existências. Santiago encontrou sua razão de existir, e não obstante o suor, a dor, a solidão e o sofrimento que tal existência o trazia, ele cumpriu o seu papel com toda a honradez devida às suas cãs, com toda a dignidade que a sua senilidade e o seu rosto marcado pelo tempo, já desde as primeiras páginas, evidenciavam.


Referência:

HEMINGWAY, Ernest. O Velho e o Mar. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1989.
Diogo Mateus Garmatz
Enviado por Diogo Mateus Garmatz em 30/03/2020
Reeditado em 13/02/2021
Código do texto: T6901624
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