HERÁCLITO E O ETERNO DEVIR: UMA CRÍTICA

     Existe uma ideia sobre o tempo que os filósofos pré-socráticos chamavam de eterno devir, onde tudo está, ao mesmo tempo, deixando de existir e vindo a existir. Uma forma de entender isso é pensar que enquanto essas palavras são lidas, o leitor já não é mais quem era enquanto lia a frase anterior a essa, segundos atrás, e quem o leitor é agora, também não é quem é agora, porque virá a ser alguém diferente assim que essa frase acabar. Ora, se fosse dado crédito mesmo a esse pensamento, o autor poderia parar agora mesmo de escrever, pois como poderia comunicar um raciocínio a alguém que não tem qualquer continuidade no tempo? Mesmo assim, foi pensando no eterno devir do ser que Heráclito disse que “ninguém pode entrar duas vezes no mesmo rio, pois quando nele se entra novamente, não se encontra as mesmas águas, e o próprio ser já se modificou.”
     No entanto, embora estejam os seres em constante construção, sem nunca estarem acabados, o ser tem uma consciência bem tangível de que ele é quem realmente é, e essa consciência se fundamenta principalmente em seu ser histórico. Se as palavras de Heráclito forem levadas em consideração, logo se notaria que essa constante mutação não é absoluta, pois, para que seja verificado o que ele disse, se faz necessário que o ser saiba que está diante do mesmo rio para, daí então, saber que não pode banhar-se nele duas vezes! Mais ainda, Heráclito está tratando do rio como sendo apenas as águas que correm à procura do mar, mas não é assim que um rio é conceituado, não se dá nome a um volume de água que se desloca para a parte mais baixa do planeta, há algo mais em um rio que o torna identificável e distinguível dos demais. Há em um rio, portanto, uma individualidade. Ainda que as águas do rio não sejam as mesmas, a constituição de um rio inclui outros elementos que o conferem identidade, como a localização da nascente do rio, o trajeto percorrido até o mar, a largura do leito, a vegetação adjacente, o relevo marginal, dentre outros aspectos. Não fosse assim, não houvesse no rio algo permanente que o conferisse identidade, tampouco Heráclito poderia dizer que ninguém pode banhar-se no mesmo rio duas vezes. Quando o próprio Heráclito estivesse diante do mesmo rio, ele nem saberia que é o mesmo rio. O “mesmo rio” nem existiria.
     Fica claro que o que muda são especificamente as águas do rio, e é por isso que ele é um rio, fossem paradas as águas ele seria um lago; assim como também o que muda não é o ser em toda a sua constituição, mas aspectos que se alteram pelo movimento na temporalidade, sendo que a identidade essencial do ser se mantém inalterada.
     Se a constituição do ser for comparada às águas de um rio, ninguém responderia a um chamado quando ouvisse seu nome, ninguém cumprimentaria uma pessoa depois de não vê-la por anos e qualquer possibilidade de conhecimento ficaria prejudicada. Embora as potencialidades intrínsecas do ser o coloquem em constante movimento no tempo, as próprias mudanças em si não podem mudar, ou seja, o que aconteceu não pode desacontecer, o ser muda sabendo que mudou, carregando a lembrança de quem ele era e dos fatos que constituem a sua história. É nesse sentido que a própria construção do ser se dá no tempo, afinal, o ser é também a sua história. Seu conhecimento, sua cultura, seu caráter, tudo é construído e abarcado no transcorrer do tempo.
     É impossível conhecer alguém ou a si mesmo desconsiderando a historicidade do ser por causa da constante mudança que esse ser sofre, porque também é impossível que um ser se manifeste em todos os seus momentos passados, presentes e futuros, evidenciando tudo que já foi, tudo que é e tudo que virá a ser. Quando se julga conhecer alguém, o que se capta desse ser é uma fatia muito pequena daquilo que ele realmente é, até mesmo porque o único detentor do conhecimento de todos os momentos históricos até então acontecidos é o próprio ser, e mesmo assim com limites. A dificuldade de se conceituar um ser atinge as alturas quando se sabe que nem o próprio ser tem plena capacidade de aferir a si mesmo conceituações, ainda mais porque muito do que se passa nos recôncavos secretos da mente se dá inconscientemente. É corriqueiro que o ser conceba visões distorcidas da realidade e se autoengane com falsidades, tendo leituras da realidade e de si mesmo que não são condizentes com os objetos em si mesmos.
     É por isso que não há como desprezar a historicidade e o movimento no tempo ao se analisar um ser, pois o próprio pensamento analítico se desenvolve na temporalidade. O passado, assim, não é como as águas de um rio que passaram e não fazem mais parte da constituição do rio. Todos são, sob certo aspecto, os resultados de um conjunto de vitórias e de acertos, um conjunto de erros e de fracassos, um conjunto de motivos para rir e de outros para chorar, um conjunto de histórias que orgulham contar e um conjunto de histórias que envergonham, um conjunto de páginas alegres e felizes e um conjunto de páginas tristes e escuras, páginas estas que despertam a vontade de rasgá-las e jogá-las fora como se nunca tivessem sido escritas. O homem é o que a vida, como constante movimento na temporalidade, faz dele, e na maioria esmagadora das vezes, não esteve ao alcance desse homem determinar quais dias seriam alegres e quais dias seriam tristes.
Diogo Mateus Garmatz
Enviado por Diogo Mateus Garmatz em 30/03/2020
Reeditado em 13/02/2021
Código do texto: T6901376
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2020. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.