A INVENÇÃO DA SAUDADE
 
      Adão viveu em um jardim que foi plantado pelo próprio Deus, até ser expulso dele. Ele viveu com sua mulher nesse paraíso, sentindo o perfume de flores exóticas abertas em esplendor como se estivessem explodindo cores e perfumes, colhendo com as próprias mãos uma variedade imensa de frutos das árvores. O casal podia sentir o calor estival beijando suas peles quando, depois de um banho revigorante nas águas de um dos rios que cortavam o jardim, deitavam-se na areia. Os mais lindos animais destacavam ainda mais o colorido da paisagem, pássaros cantavam os mais belos cantos enquanto outros pintavam o céu com suas cores. Era nesse cenário que Adão viveu o seu romance com Eva, onde tiveram sua lua de mel. Como se não bastasse tudo isso, todos os dias, à tardinha, o casal recebia a visita do seu melhor amigo, o próprio Deus, que passeava com eles pelo jardim. Com o por do sol, a vista que tinham era de aves silvestres em um voo orquestrado no horizonte, até que o brilho da lua era refletido nos olhos do casal, enquanto Eva deitava o rosto sobre o peito de Adão e seus olhares transpassavam um a alma do outro.
     Quando se viu fora dessa que era a sua casa, em um ambiente hostil, com feras à espreita, colhendo seu alimento ao custo de muito suor e vendo calos brotarem em suas mãos, Adão era quem mantinha viva a imagem e a lembrança do Paraíso, de sorte que, pelos próximos séculos, se alguém quisesse saber suas origens, procuraria por Adão e, ao sentar junto dele para ouvir suas histórias, veria um homem de voz embargada, olhar fundo, prendendo o choro, cabisbaixo e com o coração esmagado de remorso. Adão se lembrava de tudo, de cada cheiro, cada cor, cada sorriso, cada passeio, cada banho de rio, ele estava criando o conceito de saudade, na sua forma mais devastadora.
     Como será que ele se comportava quando o sol se punha, quando chegava a hora em que Deus sempre o visitava o chamando pelo nome? Por muitas vezes Adão deve ter fechado os olhos esperando ouvir a voz do seu amigo o chamando e o convidando para um último passeio, um passeio onde pudesse conversar com ele sobre o vazio e a solidão que sentia na sua alma, remontando em sua mente toda a beleza do lugar onde vivera, mas, por muitas vezes também ele deve ter sentido o coração se estilhaçando ao abrir os olhos marejados e perceber que seu nome não era mais chamado e o que havia diante dele era a crueza de um ambiente insólito.
 
É CAIR DE TARDE. Adão e Eva estão deitados às margens do rio Eufrates, sorriem um para o outro com tamanha alegria que faz os dois parecerem um. Há uma queda d’água que dita o som daquele momento. Araras voam pelo céu colorindo a paisagem, casais de leões brincam com seus filhotes, pássaros entoam as mais lindas melodias, flamingos se aproximam da margem do rio para beber água, as flores despontam na mais plena suntuosidade e exalam um perfume que inunda o ambiente, um perfume inspirador para o casal edênico. De repente, uma voz irrompe no ambiente. É a voz de Deus, vindo visitar o casal, como faz todas as tardinhas: “Adão! Eva!”. Eva olha para Adão com um sorriso cintilante e diz: “É ele! Está na hora de passearmos com Deus agora!”. Adão se levanta e prontamente atende o chamado: “Estamos aqui!”. Deus se une àquela família e começa com eles um passeio de fim de tarde. Talvez nunca saibamos qual era o assunto sobre o qual conversavam aquela família e Deus durante seus passeios. Fato é que o local do passeio é mais extraordinário que qualquer paisagem que se conheça neste planeta: às margens de um rio, com palmeiras gigantes, tigres lambendo as patas, tucanos colorindo o verde da mata e pássaros raros voando pelo azul do céu. Adão pega a mão de Eva durante o passeio, algumas espécies de animais chamam a atenção de Adão que aponta o dedo e cita a Eva e a Deus as peculiaridades que lhe chamam a atenção naqueles animais. O sol está se pondo, o passeio está chegando ao fim, os macacos estão procurando lugar entre as árvores para passarem a noite, os animais estão se despedindo do sol com uivos, gritos e cantorias. Enquanto se despedem de Deus, o sol se põe no horizonte rasgando o céu com tons de vermelho alaranjado. É hora de Adão e Eva se recolherem e esperarem o nascer do sol, até que chegue o momento de um novo passeio com Deus pelo jardim. A noite chega enquanto Adão acaricia os cabelos de Eva, a lua reflete nos olhos dela, intensificando ainda mais o brilho que denuncia a paixão que ela sente por seu companheiro de Paraíso, um brilho tão intenso que nem se ela quisesse não conseguiria disfarçar.
     Está amanhecendo agora, um orvalho rega a terra fazendo o verde das folhagens ficar cintilante, e quando finalmente o sol vem beijar a grama, as flores se abrem, a pele do casal é aquecida e, ao abrirem seus olhos, o cenário que se descortina diante deles é por demais colorido. A esta hora da manhã os pássaros já estão cantando tão felizes que é quase impossível não acordar, todos os animais se alegram e ficam agitados com o nascer de mais um dia. Adão acorda Eva com um beijo na testa. O casal sai pelas trilhas do jardim decidindo qual fruta vão comer dessa vez, o banquete é variado, composto por cores, texturas, sabores e tamanhos para todos os gostos. Eles podem provar uma manga, que tem na boca um início azedo, mas um final adocicado, desmanchando na boca como manteiga. Podem provar uma laranja, uma ameixa, uvas, morangos, cerejas ou amoras. Quando um animal chama a atenção de Eva, Adão o chama; eles podem se aproximar de leões, tigres e leopardos, podem acariciá-los e brincar com eles. Araras podem sentar em seus ombros e comer sementes e frutas diretamente de suas mãos. No início da tarde, a terra está aquecida e um banho de rio se mostra convidativo, Adão é o primeiro a entrar. A água corrente que toca seus corpos é muito refrescante. Ao sair da água, namorar na areia é o que coroa o momento. Adão beija Eva e ouve o estômago de sua amada roncar, os dois riem e saem correndo em direção à trilha que é recheada de frutas por todos os lados. Eva pede pela fruta que lhe é preferida. Enquanto comem, seus olhos atravessam um à alma do outro, numa univocidade que só os separava materialmente em dois corpos distintos. O sentimento que transborda em seus corações quando fixam um o olhar no outro só pode ser expresso por uma lágrima, nunca com palavras: elas não são, definitivamente, suficientes. De repente, uma voz rasga o silêncio: “Adão! Eva!”. Eva ergue as sobrancelhas, abre um sorriso de orelha a orelha e diz para Adão: “É ele!”. Nisso, Eva grita: “Aqui! Estamos aqui!”. Enquanto o sol vai desferindo seus derradeiros raios, Adão, Eva e Deus passeiam pelo jardim, conversam sobre coisas que transcendem a revelação que foi dada à humanidade. O momento é sublime, especial. O sol começa a se esconder atrás de um horizonte riscado por aves silvestres em um voo orquestrado. A reunião dos animais com suas proles indica o fim de mais um dia. “Deus, até amanhã! Nesse mesmo horário! Eu até já estou com saudade do Senhor!”. Adão abraça Eva em seus braços, deixa que ela recline a cabeça lentamente sobre seu peito e se delicia com o brilho prateado de uma lua cheia que é refletido nas águas dos rios.
     Amanhece um novo dia, um dia em que Adão planejou surpreender sua amada. Ele acorda primeiro e sai em busca da fruta preferida de Eva. Ele volta e se põe a contemplar os últimos instantes de sono dela, até que, pouco antes de ela despertar, lhe sussurra baixinho ao pé do ouvido que estava lhe esperando com o café da manhã pronto, tendo como prato principal sua comida favorita. Adão faz um afago em Eva e aponta para uma seleção dos melhores frutos do jardim que ele mesmo colheu: Hoje é dia de café da manhã na cama! Já à tarde, o casal se propõe a conhecer mais de perto os animais que eles mesmos puseram os nomes. A maneira como os animais se comportam na presença deles faz o casal parecer dois bobos. A voz costumeira se faz ouvir outra vez: “Adão! Eva!”. Sai o casal em disparada para mais um passeio com Deus. No passeio de hoje, Deus os leva por uma trilha ornamentada de flores exóticas por todos os lados, flores que exalam um perfume que provoca sensações de extremo bem-estar. Findo o passeio, Adão se despede de Deus, já ansioso pelo próximo passeio: “Até amanhã meu amigo!”. Quando adão já está voltando pela trilha ele chama a atenção de Deus: “Amigo!”, Deus se volta para dar ouvidos a Adão, e Adão continua: “Eu só queria dizer que eu já estou com saudade do Senhor!”. A noite cai e Adão, inspirado como está hoje, pede um minutinho para Eva e volta à trilha por onde Deus os levou pela tardinha. Lá, ele colhe duas flores que haviam lhe surpreendido, a mais colorida ele coloca na orelha de Eva, entre seus cabelos; a mais cheirosa ele deita perto do local onde passarão a noite, com a intenção singela de perfumar a noite romântica do casal.
     Mais um dia amanhece. Dessa vez é Eva quem traz um fruto a Adão, um fruto que até então ele nunca havia comido. Eva já não era a mesma, seu semblante estava diferente. O mesmo acontece quando Adão come o fruto, seus ombros parecem pesar, uma aflição misturada com remorso invade toda a sua alma, a atmosfera muda, como se tudo ficasse repentinamente cinza. O fruto que acabaram de comer era o fruto da árvore da vida, o fruto proibido. Enquanto se acostumam a sentimentos tão esmagadores nunca dantes experimentados, o dia vai passando, a tarde chega, e a ocupação do casal é na produção de roupas feitas com folhas de figueiras. A rotina no Paraíso está estilhaçada, nada mais é como antes, não há mais alegria nem sorrisos no rosto do casal edênico. A tardinha chega e, como sempre, uma voz se faz ouvir no Jardim: “É ele!”. Dessa vez não houve euforia, houve pânico. Adão aperta a mão de Eva: ela se assusta. Estão tremendo, suando frio. Partem, então, em direção à mata e se embrenham na vegetação fechada para não serem encontrados pelo seu amigo e evitarem, pela primeira vez, o passeio pelo jardim. “Adão! Meu amigo! Eva”. Adão encosta na boca o dedo indicador virado para cima, pedindo a Eva que não faça nenhum barulho. Mas, com a insistência de Deus em chamar o amigo pelo nome, Adão se constrange e logo se convence de que não iria conseguir se esconder, não naquele jardim plantado pelo próprio Deus. “Eis-me aqui.”. A voz embargada de Adão é notável, a direção do seu olhar é para o chão, não consegue fitar seu amigo nos olhos. Tem início, agora, o último passeio.
     O caminho a ser percorrido nesta tardinha é o caminho que leva para fora do Jardim. Enquanto caminham, o rosto de Adão fica completamente molhado com lágrimas, nenhuma palavra sai da sua boca, apenas soluços, ele apenas ouve, e o que ouve é a notícia de que aquele jardim não seria mais a sua casa. Deus pede para que ele levante a cabeça e o olhe. O que Adão espera ouvir é mais uma sentença, mais uma consequência com a qual teria que arcar por seu erro, mas o que Deus faz é contar a ele que aquelas folhas que estavam usando como roupa não durariam por mais do que três dias. Deus se afasta por ligeiros instantes e o grito de um animal se faz ouvir: o primeiro derramamento de sangue. Deus providencia ao casal roupas feitas com a pele de um animal sacrificado. A atitude de Deus sacrificando sua própria criação para confeccionar uma roupa para o casal acerta em cheio o coração de Adão, ele se sente constrangido com tal gesto. Depois de colocar o primeiro pé fora do Paraíso, o casal se vira em direção ao Jardim. Uma última visão é recortada e guardada como uma fotografia na memória do casal. O ambiente que se vislumbra diante deles fora do Jardim é insólito, hostil, monocromático, arredio, com uma vegetação disforme e sem nenhuma sincronia, os animais os veem como uma ameaça e fogem deles, há em tudo uma terrível estranheza bem explícita. Adão olha mais uma vez para a direção do Jardim, conserta a voz embargada, regula o fôlego e clama: “Meu amigo!”. Deus olha para Adão e lhe concede atenção, e o que ouve de Adão encerra uma época de perfeita comunhão entre o homem e seu criador: “Eu vou sentir saudade! Vou sentir saudade de cada momento que vivemos juntos dentro deste Jardim, de ouvir o teu chamado no fim da tarde, de cada passeio, de cada conversa. Eu... eu vou sentir a tua falta...”. Antes de interditar a entrada do Jardim colocando nela dois querubins e uma espada flamejante, Deus faz a última concessão a Adão: “Eu também vou Adão. Também vou sentir saudade, vou sentir saudade do meu amigo...”. Adão olha para o chão, uma lágrima lhe escapa, escorre pelo rosto e cai na terra. Ele aperta a mão de Eva e saem à procura de um lugar para passarem a noite, porque o sol já está se pondo. A noite cai. O terror e o medo vêm pela primeira vez fazer companhia ao casal, o espanto só não é maior que o remorso que os esmaga e lhes arrebenta completamente por dentro. Animais uivam, predadores caçam, espinhos começam a brotar do solo: a noite mais triste que o casal já vivera.
     Inicia-se a vida fora do jardim, calos fazem sangrar as mãos de Adão, espinhos e abrolhos estão por todas as partes, além de espécies que nunca tinham visto no Éden. Muito tempo se passa, Adão viveria pelos próximos novecentos anos. Por vezes Adão some, ninguém o encontra, volta e meia uma melancolia o acerta em cheio, ele anda meio cabisbaixo, quieto. Em suas caminhadas insólitas e introspectivas, Adão encontra uma pequena muda de flor que está lutando para vingar em um terreno árido e difícil. A lembrança é fatal. A partir de agora, esse seria o lugar secreto de Adão. Ele reunia ali todas as mudinhas de flores que encontrava e as cuidava como quem cuida de um filho, como exímio agricultor que era.  Quando Adão sumia, era para lá que ele ia, quando a saudade apertava, era para lá que fugia, disfarçava a dor cuidando de suas plantinhas, lembrando com carinho do Jardim que Deus havia plantado para ele e Eva viverem seu romance. Justo no dia em que a saudade está lhe esmagando o peito, seu neto se aproxima, lhe pega na mão e pergunta como eram as coisas no início de tudo. O menino se senta aos pés de Adão e começa a ouvir com atenção: “Eu e sua avó vivíamos em um jardim onde não havia espinhos. Havia flores por todos os lados, das mais coloridas e perfumadas que alguém poderia contemplar. Os animais brincavam conosco às margens dos rios, havia uma variedade de frutas saborosas que só de mencioná-las a minha boca começa a salivar. Ah, eu me lembro de tudo, cada som, cada cor, cada flor, cada momento, lembro como se fosse ontem. Nós éramos felizes, vivíamos sorrindo. Nunca sentimos dor nem derramamos lágrimas, Deus nos visitava todas as tardinhas, na verdade, ele me chamava pelo nome e passeava comigo e sua avó pelo jardim. Ele conversava comigo assim como eu estou falando contigo agora, ele era meu amigo..., ele era meu amigo... meu amigo...”. Adão embarga a voz, não consegue mais dizer nenhuma palavra, o choro é inevitável. Seu neto levanta e, vendo-se incapacitado de consolar o avô, corre e chama Eva. Quando Eva se aproxima de Adão ele está com as duas mãos no rosto, chorando como uma criança.
     Coincidentemente, a tarde está caindo. Adão limpa as lágrimas com as costas das mãos, pega Eva pela mão e a leva para um passeio: “Quero te mostrar um lugar.”. Depois de caminharem um pouco, Adão se posta atrás de Eva e lhe cobre os olhos com as mãos: “Não vale espiar!”. Eva gosta da brincadeira e colabora. “Pode abrir agora!”. Quando Eva abre os olhos, o que ela vê é um pequeno canteiro com algumas flores e folhagens cuidadosamente arranjadas. “Lembras Eva?”. Eva com os olhos marejados responde: “Nem que com todas as minhas forças eu desejasse esquecer, eu não conseguiria.”. Os dois se abraçam, consolam um ao outro por alguns instantes em silêncio. Ao longe, a voz de uma criança chorando se faz ouvir. Eva instintivamente parte em direção ao choro puxando Adão pela mão, mas ele resiste: “Vai tu, não deve ser nada. Eu vou ficar mais um pouquinho. Logo, logo, já vou.”. Com a aquiescência de Eva, Adão fica sozinho e olha para o sol que está se pondo, fecha os olhos e se lembra da voz que lhe chamava no Jardim: “Adão! Adão! Amigo!”. A voz parece tão viva dentro de suas lembranças que ele não abre os olhos, aguarda mais um tempo, esperando ouvir mais uma vez a voz do seu amigo. No entanto, a voz não é ouvida, Deus não o chama pelo nome. Ele abre os olhos, olha para os calos em suas mãos, olha para os espinhos que insistem em nascer ao redor de suas plantinhas, percebe o terror noturno que se aproxima e exclama, antes de se virar e voltar para sua tenda: “Ah, meu amigo... Que saudade! Que saudade...”.
     Talvez a admiração que os homens sentem pelas plantas e jardins, o empenho perfeccionista em modelar paisagens com toda a delicadeza e o fascínio arrebatador que os acerta em cheio quando se deparam com visões extraordinárias e magníficas da natureza, sejam suas almas sussurrando baixinho, reverberando a saudade que cortava o peito do pai Adão, saudade essa que acabou chegando a toda humanidade.
Diogo Mateus Garmatz
Enviado por Diogo Mateus Garmatz em 20/03/2020
Reeditado em 14/02/2021
Código do texto: T6892229
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