POR QUE É MAIS FORTE QUEM SABE MENTIR?
SEGUNDO O PROFESSOR ORLANDO Fedeli, dizer que a verdade não existe é o maior argumento que alguém pode oferecer em favor da verdade. Toda e qualquer afirmação ou é falsa ou é verdadeira. É impossível uma firmação ser verdade e mentira ao mesmo tempo, porque isso seria um erro lógico, colidiria com o princípio da não-contradição: algo não pode ser e não ser ao mesmo tempo e sob o mesmo aspecto! Ao dizer-se “a verdade não existe” e analisar-se essa frase, verifica-se que, se ela for verdadeira, então eis aí a única coisa que o homem pode tocar com certeza, o único terreno firme onde pode caminhar, eis aí a única verdade absoluta, mas eis aí também, junto a essa verdade absoluta, a fatal conclusão de que, de fato, a verdade existe. Mas, se por outro lado a frese for falsa, então a afirmação contraditória a ela é verdadeira; como a negação de uma negação é uma afirmação, chega-se também fatalmente à conclusão de que a verdade existe! Tomás de Aquino já havia proposto essa demonstração de modo muito simples, sugerindo que a reação ao se ouvir alguém negando a verdade deveria ser chamá-lo de mentiroso e, diante da má reação e da resposta que se ouviria do negacionista, evidenciar então a prova de que, enfim, a verdade existe.[1]
"Todas essas doutrinas caem no inconveniente de se destruírem a si mesmas. De fato, quem diz que tudo é verdadeiro [...] assume também como verdadeira a tese oposta à sua; do que se segue que a sua não é verdadeira (dado que o adversário diz que a tese não é verdadeira). E quem diz que tudo é falso diz que é falsa a tese que ele mesmo afirma. E mesmo que queiram admitir exceções, um dizendo que tudo é verdadeiro exceto a tese contrária á sua, o outro que tudo é falso exceto própria tese, serão obrigados a admitir infinitas proposições verdadeiras e falsas. Com efeito, quem diz que uma proposição verdadeira é verdadeira, afirma outra proposição verdadeira, e assim ao infinito."[2]
Negar a existência metafísica da verdade é um argumento ps cornuto, uma frase suicida, autodestrutiva, e quem nela se atola não tem para onde fugir, não há saída, quem comete a tolice de enunciar que a verdade não existe se comporta como uma mosca presa a uma teia de aranha, quanto mais tenta escapar, mais enredada fica. Nas duas pontas desse dilema a verdade existe, reinando absoluta e soberana; as duas pontas do dilema levam fatalmente à conclusão de que a verdade existe. Mesmo um livro ou uma sentença que nega a existência da verdade tem como seu objetivo último ensiná-la, tem o firme propósito de apresentar-se como uma verdade digna de credibilidade.
No mesmo resultado chega o relativismo que nega a existência da verdade absoluta. O relativismo está na mesma linha que afirma que “o homem é a medida de todas as coisas”, que em outras palavras quer dizer “cada cabeça, uma sentença”. Ora, quando se diz que algo é relativo, esse algo precisa ser relativo a alguma coisa, a algum ponto, porém esse ponto com a qual todo o resto se relaciona precisa, necessariamente, ser fixo, o que acaba fatalmente tornando-o também absoluto. Sendo a verdade do objeto um atributo ontológico e absoluto, o ponto fixo e absoluto não está no pensamento, mas sim no objeto. A verdade não é relativa ao pensamento, não é, definitivamente, a ele subordinada. O objeto é proprietário da verdade e a verdade ontológica é propriedade do objeto.
Quando se é dito que a verdade é relativa, a única verdade dessa afirmação reside no processo de verificação entre a verdade lógica relativamente à verdade ontológica, metafísica. É a verdade lógica que permite identificar a falsidade lógica, justamente quando não há adequação entre o pensamento e a verdade ontológica do objeto. É pela relação pensamento x objeto que se chega ao conceito de falsidade: a inadequação do pensamento à verdade do objeto. Assim, a verdade só é relativa quando o objeto é considerado como o ponto fixo e absoluto com o qual os juízos lógicos se relacionam. A relatividade somente se aplica quando se verifica se o pensamento está adequado em relação ao objeto, ou seja, quando se avalia se a verdade lógica está adequada com a verdade ontológica. A falsidade reside justamente no descompasso entre o pensamento e o objeto, reside sempre no pensamento do sujeito, nunca no ponto absoluto fixado no objeto. Essa rigidez absoluta do objeto implica uma grande verdade metafísica: O ser nunca é falso, o ser é sempre verdadeiro!
Mesmo uma nota de dinheiro falsa é falsa, tem em si o ser falsa, e quando alguém é por ela enganado cometendo a inadequação de tê-la como verdadeira, a nota falsa não se torna uma falsidade em si, ela é uma nota falsa, ou seja, ela é verdadeiramente uma nota falsa, é ainda um ser, um ser uma nota falsa. A falsidade reside no erro lógico do sujeito a quem cabe a adequação, em quem trata a nota falsa como não-falsa, em quem a trata como uma nota válida para realizar operações financeiras e comerciais. Como se lê em Ontologia e Cosmologia:
"Pode haver falsidade em dizer que isto é isto, ou aquilo, mas não há falsidade, nisto, em ser isto, nem em aquilo ser aquilo, pois o ser ontológico do que é, é sempre verdadeiro, embora os nossos juízos possam ser inadequados ao que dele predicamos, o que seria apenas uma falsidade lógica. O ser nunca é falso, a falsidade é apenas lógica; o ser é sempre eminentemente verdadeiro."[3]
Considerando-se então que o ser é sempre verdadeiro e que o descompasso entre o pensamento e o objeto é a falsidade lógica, que reside sempre no sujeito e nunca no objeto, tem-se agora que a mentira difere da falsidade especificamente por ser ela o oposto da verdade moral, não da verdade lógica. Ou seja, a falsidade é sempre lógica, a mentira é sempre moral. Se a verdade moral é a verbalização daquilo que está na ideia, a mentira é saber, conhecer, sentir uma coisa e falar outra. A mentira é tanto uma verbalização quanto uma intenção deliberada de injetar no discurso o descompasso com a ideia.
Essa distinção reforça ainda mais a rigidez que possui a verdade metafísica. Esta não pode ser contaminada pela falsidade lógica do sujeito: quando o sujeito erra ao adequar o pensamento ao objeto, ele comete um erro lógico e a falsidade reside apenas em seu pensar, não atingindo em nada a verdade ontológica do objeto. O mesmo não acontece com o discurso, ele pode ser contaminado, e é contaminado justamente porque a verdade ontológica não o pode. Ao mentir, o sujeito detém a verdade lógica no pensamento e deliberadamente injeta no discurso uma dissonância, nascendo assim a mentira. A verdade moral depende sempre do compromisso moral integral do sujeito que a verbaliza e está o tempo todo à mercê desse compromisso, carregando em si uma fragilidade que é proporcional à integridade moral do sujeito. Por sua vez, a verdade metafisica não pode ser compelida por ninguém, é sempre objetiva, absoluta e imutável. Ainda que o discurso transmutado em mentira se volte contra a verdade ontológica, a sua armadura metafísica é tão rígida e impenetrável que nada a poderá nem sequer arranhar; fragilidade é um adjetivo que ela desconhece. O máximo que se conseguirá fazer é tornar mais evidente a rebeldia, a soberania, a autonomia e a independência da verdade metafísica em relação a qualquer discurso, a qualquer sujeito observador.
Quando Jesus falou “seja, porém, o vosso falar: sim, sim; não, não; porque o que passa disto é de procedência maligna.” (Mateus 5:37), era sobre a verdade moral que ele estava falando. O “sim”, a afirmação, portanto, é sempre um compromisso moral integral que o ser assume, assim como também o “não”, a negação, pois ela é também uma positividade, uma afirmação. A mentira é sempre um erro moral, não lógico, quem verbaliza uma coisa enquanto pensa outra, sabe dentro de si que está mentindo, que está enganando. A mentira é, pois, sempre deliberada, diferente da falsidade lógica, na qual o ser pode estar enganado, pode estar em um descompasso acidental e involuntário com a verdade ontológica do objeto, e verbaliza aquilo que ele pensa ser a verdade, mas sem nenhuma intenção de mentir ou enganar. É justamente na intencionalidade da mentira que reside o seu aspecto diabólico. Além de Jesus ter dito “o que passa disto é de procedência maligna”, ele ainda disse referindo-se ao próprio Satanás: “Quando ele profere mentira, fala do que lhe é próprio, porque é mentiroso, e pai da mentira.” (João 8:44). Mas o que denuncia mais enfaticamente a degradação moral e a familiaridade com o mal naquele que profere a mentira está na fala de Jesus quando ele diz “Vós tendes por pai ao diabo”.
A verdade absoluta, portanto, deve ser sempre procurada no ser ontológico porque ela é um ser. Não é no discurso que a verdade absoluta deve ser procurada porque, embora exista a verdade moral, ela é discursiva, e não tem uma estrutura apodítica que a torne imune à mentira. Já a verdade metafísica é sempre verdade, nunca podendo ser atingida nem pela falsidade lógica nem pela mentira discursiva. Por isso, a verdade não é um pensamento, não é um discurso, não é um raciocínio, um tratado, um compêndio, uma teoria ou um silogismo, antes, ela é pessoal, ela é um ser, tem um caráter ontológico. Daí Jesus ter dito “Eu sou a Verdade”. (João 14:6)
A verdade metafísica não pode ser abarcada em um discurso universal, em uma “teoria de tudo”, porque ainda que haja o compromisso moral de se dizer somente o que se está na ideia e que toda a construção mental seja correspondente à verdade do objeto mesmo, a verdade metafísica ainda assim permaneceria com seu caráter ontológico, ainda existiria para além do discurso e do pensamento. Ou seja, a verdade moral é sempre um compromisso assumido pelo sujeito, a verdade lógica é sempre uma relação sujeito-objeto, mas a verdade metafísica é absoluta e tem existência em si mesma, ela não pode ser algemada, submetida ou aprisionada para se tornar uma propriedade do sujeito cognoscente.
O PROBLEMA DAS AFIRMAÇÕES negacionistas está, na maioria das vezes, na fragilidade do uso de argumentos universais como tudo, todo, nada, nenhum. Aqueles que visam à verdade como alvo de suas armas, sempre falham em seus ataques e acabam por se autodestruírem, poupando o trabalho apologético de defesa da verdade. Por isso o que fazem é um ataque por levante, por guerrilha, por batalhas pontuais intermináveis, porque sabem que a guerra está perdida, que nunca atingirão seus objetivos, que quanto mais tentam derrubar a verdade, mais a colocam em evidência e a fortalecem. Construir argumentos e filosofias buscando negar a validade de juízos universais válidos é como serrar o galho onde se está apoiado, se o galho cair, todo o argumento cai junto.
Quando se é dito “tudo é relativo”, no sentido de “cada cabeça, uma sentença”, querendo dizer que o que é verdade para um pode não ser para todos os demais e que, portanto, não existe nenhum juízo universalmente válido, essa afirmação tem de ser, necessariamente, aplicada a si mesma. Quando isso é feito, a afirmação “tudo é relativo” também acaba sendo necessariamente relativa, pois o “tudo” abarca também essa afirmação, e sendo ela relativa, então nem tudo é relativo, admite-se exceções, sendo ela mesma a principal exceção. A própria relatividade da verdade se torna relativizada. Mas, se de outra forma essa afirmação é absoluta e não pode se relativizada, então ela se autodestrói, pois nem tudo é relativo e ela é a única verdade absoluta que não pode ser relativizada, estaria nela então o único juízo universalmente válido a “todas as cabeças”.
Outro exemplo da implosividade dos universais é a afirmação “toda regra tem exceção”. Essa afirmativa tira de qualquer regra ou afirmação o seu caráter absoluto e definitivo, conferindo a ela uma disposição intrínseca a fazer concessões. Mas, se toda regra tem exceção, isso inclui essa mesma afirmação, essa mesma regra, fazendo com que ela mesma admita exceções e, se ela admite exceções, então algumas regras não têm exceções. Ou a frase “toda regra tem exceção” é uma regra que se aplica a si própria e se autonega concluindo que nem toda regra tem exceção, ou ela não se aplica a si própria e se transforma na única regra que não tem exceção. De uma forma ou de outra, a afirmação se autoimplode.
Como já dantes observado, não é necessário estender muito a lista de exemplos de argumentos autodestrutíveis porque eles mesmos dispensam a empreitada de desmontá-los, eles já carregam consigo mesmos o germe de suas próprias falências. O apologeta, nesse combate, pode abrir sua cadeira, refrescar-se com sua água, erguer os pés em descanso e apenas observar os inimigos caindo, um a um, vítimas de fogo amigo. Tais argumentos são como soldados que puxam os pinos de suas granadas e as deixam explodir em suas próprias trincheiras. Quando o apóstolo Paulo escreveu “Porque nada podemos contra a verdade, senão pela verdade” (II coríntios 13:8), era sobre a apoditicidade, a indestrutibilidade da verdade que ele falava. Já sabia o apóstolo que qualquer ataque contra a verdade acabaria por se reverter inevitavelmente em um argumento involuntário a favor da própria verdade.
ABRE-SE AGORA UM PARÊNTESE para que seja analisada uma questão intrigante que vem à tona a esta altura: Por que mesmo com essa blindagem metafísica a mentira ainda insiste em se fazer presente na realidade e continua a fazer vítimas de uma maneira tão avassaladora? Renato Russo escreveu em uma música: “Um dia pretendo tentar descobrir por que é mais forte quem sabe mentir”.[4] Bem , parece que é chegado o momento oportuno para se perseguir essa resposta. A mentira é mesmo mais persuasiva e impactante que a verdade moral, da qual é o oposto. A verdade moral é fixa, atrelada ao objeto referencial, enquanto que a mentira não tem compromisso algum com o objeto, com o referencial da fala, tampouco com a realidade e, por isso, não há limites para o uso de palavras de impacto, de adjetivos e de gatilhos que despertem reações e emoções de acordo com a vontade manipuladora e dolosa do mentiroso. O mentiroso sabe qual é a verdade metafísica de um objeto, mas o que sai de sua boca é qualquer outra coisa que não aquilo que ele, dentro de si, sabe ser verdade. Pode também o mentiroso simplesmente verbalizar algo sem referencial, uma invencionice, sem qualquer objeto verdadeiro a ser contrariado ou negado, simplesmente verbalizando um discurso que não traz em si nenhuma relação verdadeira com objetos, fatos ou acontecimentos. A verdade mais destrutiva é a que não possui referencial, pois a que possui pode ser facilmente desmontada recorrendo-se ao objeto referenciado. Por exemplo, quando se mente que alguém está com uma meia de cada cor, fica fácil recorrer ao objeto referenciado e atestar que a verdade é outra, mas quando se mente que alguém tem uma arma escondida em algum lugar, não há como recorrer ao objeto porque o objeto simplesmente não existe, e mesmo a objeção de dizer que o objeto não existe acaba por armar ainda mais o mentiroso, que usa a própria objeção como prova da ocultação do objeto. Assim, a mentira desprovida de objeto referencial mostra todo seu potencial de destruição.
A mentira propõe uma briga desparelha e injusta. Quem fala a verdade precisa passar por um árduo trabalho para estar coadunado a ela: em primeiro lugar, precisa ir até o objeto referenciado e nele identificar suas verdades ontológicas. Feito isso, é preciso, em segundo lugar, adequar a ideia a essa verdade objetiva para que tenha posse de uma verdade lógica, e essa adequação depende sempre da percepção do sujeito, que pode capturar a verdade em sua inteireza ou deixar que passem despercebidos alguns aspectos, de forma que, aqui, muito da verdade do objeto já pode ficar para trás. Mas não para por aí, o trabalho segue. Em terceiro lugar, é preciso transformar essa verdade lógica baseada nas percepções em um discurso, em uma verdade moral, mas esse trabalho é também penoso e dificultoso, porque além de depender das percepções do sujeito, a verdade moral depende agora da sua capacidade vocabular e articulativa. Aqui surge então outra dificuldade, porque há coisas que embora percebidas, esbarram na capacidade de expressão do sujeito. É o que acontece, por exemplo, quando alguém diz “tem alguma coisa errada com essa pessoa, mas não sei o que é”, ou seja, há uma percepção, mas a percepção não se transforma em discurso por causa da limitação linguística do sujeito que percebe. Constata-se assim que os vários filtros até a construção da verdade moral limitam aquele que expressa a verdade. Em suma, a percepção não abrange necessariamente a inteireza do objeto, há aspectos que nem sequer são percebidos pelo sujeito e a capacidade linguística se mostra bem aquém das percepções capturadas. Na verdade, a maioria das impressões e percepções que o sujeito tem no dia a dia acaba por não se reduzir a um discurso lógico. O vocabulário não é tão vasto quanto as percepções, muito menos quanto a realidade mesma. Por sua vez, quem mente não precisa se esmerar da mesma forma, não precisa estar coadunado à verdade, não há um exame comprometido a ser feito no objeto para perceber sua verdade ontológica (por vezes nem mesmo objeto há), não há problema algum se algumas percepções escapam, não há problema algum com as limitações linguísticas para articular as percepções em um discurso referenciado ao objeto porque a única preocupação reside em poder expressar a mentira e, para isso, nenhum compromisso moral precisa ser assumido no processo de verbalização.
O que a mentira tem é um privilégio. A força da mentira não atinge a armadura metafísica da verdade e nem é esse o seu objetivo, — mesmo a mentira sabe bem que a verdade ontológica é indestrutível em sua estrutura — o que ela faz é conferir força ao mentiroso, pois o rol de possibilidades e de criação à disposição do mentiroso é ilimitado. Quem fala a verdade só tem à disposição um quadro bem específico e limitado que é a verdade objetiva, um quadro que é condicionado por sua percepção, percepção essa que é filtrada pelos recursos disponíveis em sua capacidade vocabular e articulativa.
Como já exposto poucos parágrafos antes, a verdade metafísica é absoluta e não encontra oposição ao seu caráter ontológico, permanece sempre soberana e inatingível. Mas mesmo essa característica tão densa e uniforme não torna a mentira inofensiva. A mentira provoca estragos na história, nas relações, nas situações e às pessoas que são dela alvos, no mínimo, há sempre alguém que arca com as consequências da mentira. Coincidentemente ou não, a mentira está sempre estreitamente amalgamado ao mal, como unha e carne. O que acontece é que a verdade metafísica não transmite a sua blindagem a quem verbaliza a verdade moral, ao ser que com ela assume um compromisso moral. Defender a verdade é um ato de amor, não é uma permuta. Quem ama não pensa em si mesmo, não busca recompensa, não faz barganha; é simplesmente amor, uma disposição de dar a própria vida por algo que, mesmo inabalável, não estende a mão, não oferece o menor ato de proteção. A verdade é um altar que recebe como sacrifício a vida daqueles que a amam. Quando se diz que alguém se dispôs à defesa da verdade, está se dizendo uma metáfora, pois não é a verdade que precisa literalmente de defesa, mas as vítimas da mentira; a defesa da verdade está mais para um contra-ataque, porque a mentira causa mortes, destrói almas, arruína pessoas, famílias e nações. É a mentira que faz valer o combate, não a fragilidade da verdade, simplesmente porque tal fragilidade não existe. Quando os cristãos eram estraçalhados no coliseu devorados por feras ou eram queimados em fogueiras vivas, eles o faziam por amor à verdade, ainda que lhes fosse dada a opção de negar a fé e assim evitarem a morte, não abriam mão de permanecer abraçados à verdade. Quando Nero incendiou Roma e culpou os cristãos, Nero sabia bem qual era a verdade, mas não era a verdade que ele queria destruir, mas os cristãos.
É uma ilusão pensar que a verdade compartilha sua blindagem com quem a defende; o aspecto mais potente da verdade é ao mesmo tempo a maior fraqueza para aquele que a defende e que a ama. Defender a verdade não é o mesmo que defender um incapaz ou um indefeso, a verdade é um gigante couraçado de diamante que nada nem ninguém pode sequer riscar. Quem se coloca aos seus pés para defendê-la com a própria vida olha para trás e a vê intacta, mas ao mesmo tempo sem oferecer qualquer ajuda a quem por ela tomba sem vida, a vê sem compartilhar sequer sua sombra, sem nem mesmo oferecer um sopro de refrigério como esboço de um socorro, como se estivesse assistindo com uma incompreensível indiferença aqueles que a amam sendo trucidados bem diante dos seus olhos. Mesmo com toda sua robustez e indestrutibilidade a verdade parece não se dispor nem sequer a estender a mão para bloquear uma chuva de flechas, como se fosse cega, muda, imóvel, se parecendo mais com uma pedra do que com qualquer outra coisa. Defender a verdade é como defender uma fortaleza inabalável e indestrutível, não porque ela sucumbirá aos ataques — ela não pode nem sequer ser arranhada por qualquer ataque que contra ela seja disferido — mas porque quem está sobre seus muros não é por ela imunizado, quem está sobre seus muros é tão frágil quanto a fumaça diante do vento.
Percebe-se, por esse prisma, como o caluniador tem uma vantagem absurda sobre o caluniado. Há um prevalecimento, uma covardia na calúnia, seu arsenal é tão vasto que chega a ser quase ilimitado, enquanto que o caluniado só pode usar uma arma, a verdade. Parece um escravo jogado em uma arena para morrer: é lhe dado um pedaço de pau para enfrentar um guerreiro grande, forte, experiente, equipado com armadura, capacete, espada, adaga, escudo, lança e que ainda tem a suas costas um painel com uma variedade de armas à sua escolha, as quais podem ser empunhadas a qualquer momento ou usadas para desferir o golpe fatal contra a vítima. Mais absurda fica a cena ao se pensar que o escravo armado com um sarrafo está morrendo para defender algo que é imune a qualquer arma, a qualquer ataque, muito mais forte e poderoso do que qualquer guerreiro.
Mas por que, mesmo asim, há quem entregue a própria vida pela verdade? Ora, de um lado está a mentira, que tem por pai o próprio Satanás, do outro lado está a verdade, que tem seu caráter ontológico firmado na pessoa do próprio Deus. Se a mentira torna pessoas capazes de matar por ela, a verdade torna pessoas capazes de dar a vida por ela, porque a verdadeira decisão dessa luta não acontece em vida, mas aponta para a eternidade, onde o mal terá sua devida recompensa e aqueles que deram a vida pela verdade continuarão a viver não só por ela, mas também nela, para sempre.
O caluniado é posto contra a parede e forçado a recorrer à verdade na tentativa de se defender e isso exige dele um árduo esforço, só que nesse caso, por ter sua moral abalada e já ter colhido inevitavelmente consequências desastrosas que a calúnia trouxe, os ânimos a serem despendidos na tarefa já chegam a ela consumidos, corroídos, cambaleantes e por vezes se mostram insuficientes. O caluniador só precisa verbalizar uma mentira sem referencial algum e no mais cruel dos casos não há nem mesmo a opção de verificabilidade para a vitima ou para quem quer que seja, deixando a vítima indefesa e desarmada. A mentira é covarde, prevalecida, cruel, abusada, estúpida, implacável, ladra, assassina, destruidora; não à toa tem por pai o próprio Satanás.
[1]A aula completa pode ser vista no Youtube sob o título: O problema da verdade (Orlando Fedeli) – MONFORT, no seguinte link:
https://www.youtube.com/watch?v=NXVMNjA83KU. Ou ainda no site
www.legadomonfort.com.br.
[2]Aristóteles. Metafísica. Livro IV (Gamma), capítulo 8, 1012 a, 13-20; 1012 b 20-22.
[3]Santos, Mário Ferreira dos. Ontologia e Cosmologia - A Ciência do Ser e a Ciência do Cosmos. 4ª Edição. São Paulo-SP: Livraria e Editora Logos, 1964. Pág. 47, 48.
[4] Esse trecho é da música ”Eu sei” da Legião Urbana, de composição de Renato Russo.