Pessoas que não se aceitam
Com certeza, muita gente lembra de que houve uma época em que era comum criar versões animadas de histórias que tinham feito sucesso no cinema. Porém, poucas eram as animações que tinham algum sucesso e a grande maioria não durou mais de uma temporada. Podemos citar várias, como Rambo, Robocop, Karate Kid, Loucademia de polícia e até De volta para o futuro. O que fez com que essas versões fossem fracassos? Talvez o fato de que a essência das histórias tenha sido drasticamente alterada, fazendo com que quem conhecia a história original tenha torcido o nariz. Quem conheceu Rambo primeiro na versão animada deve ter ficado um tanto surpreso ao ver que a versão em carne e osso do herói que tinha como grande inimigo um maligno general Warkawk que pretendia dominar o mundo, e combatia as forças do mal acompanhado dos amigos Turbo e Kat era na verdade um veterano de guerra antissocial, violento, perturbado e que trucidava os inimigos sem piedade.
Da mesma forma, se alguém assistiu primeiro ao desenho Robocop, deve ter estranhado quando assistiu depois à versão real, que era na verdade uma história violenta, futurista e pessimista. O desenho era péssimo e não fez sucesso, pois mudou totalmente a essência desse clássico dos anos 80. Quem não assistiu ao desenho, não perdeu nada. Entretanto, há um episódio a que assisti no Youtube – Gangues da velha Detroit - , que me fez refletir. Nele, o sobrinho do sargento da polícia de Detroit, um jovem que parece ter uns dezesseis anos, perdeu os pais há pouco tempo e tem um defeito na perna, sente-se rejeitado pelo tio e pensa que ninguém gosta dele por ser “aleijado”. Ele chega ao ponto de se envolver com uma gangue que o seduz mas depois se arrepende e quase morre em um conflito. No final, ele é submetido a um tratamento que lhe dá aparelhos que irão melhorar a mobilidade de suas pernas.
Que podemos dizer após assistir a esse episódio? Que o rapaz era um típico jovem revoltado por não ter atenção? Talvez não. Vemos muito bem que o tio do jovem está muito sobrecarregado com suas obrigações e com os problemas que as brigas de gangues estão causando. Como sargento, ele tem muitas obrigações. Sabemos muito bem que nem sempre os pais ou responsáveis podem ficar com os filhos. Muitas profissões sugam muito tempo das pessoas e policiais, assim como médicos e bombeiros, não são donos do seu tempo. Precisam estar prontos para as emergências que surgem. A atitude do sobrinho, que fica com raiva quando o tio diz que não pode ir com ele a um jogo de futebol, soa infantil e imatura.
Quantas crianças não entendem que os pais precisam trabalhar e que os trabalhos roubam seus tempos com a família? Pela idade que o rapaz parece ter, ele deveria entender a seriedade do trabalho de um policial, especialmente quando se trata de drogas, brigas de gangues ou coisas como armas. Caso alguém assista ao longa animado Viagem para Agartha, verá como a protagonista, uma menina de onze anos que perdeu o pai muito pequena e fica sozinha a maior parte do dia, compreende muito bem que a mãe, uma enfermeira, precisa trabalhar para sustentar as duas e, embora sinta falta da mãe, lida muito melhor com a situação.
O policial, numa conversa com uma outra oficial, fala que se preocupa com o sobrinho, entende que é a única família que o rapaz tem e sente por não ter tempo para ele. Não se sabe o estado civil do tio, porém supomos que ele seja solteiro e não tenha experiência nenhuma com família. Deve ter sido difícil para ele se ver de repente com a responsabilidade de cuidar de alguém. Talvez o sobrinho, por alguma carência afetiva, sinta-se sozinho e não entenda que nem sempre as pessoas podem estar disponíveis para ele e que, se uma pessoa nem sempre corresponde às nossas expectativas, isso não significa que ela não esteja fazendo tudo que pode.
O jovem fica o tempo todo dizendo que ninguém o quer porque ele é um aleijado. Entretanto, tirando uns adolescentes que zombam dele, não percebemos, nem da parte do tio nem de outros policiais, qualquer preconceito em relação a ele. É verdade que pode acontecer de familiares rejeitarem algum membro da família por causa de algum defeito, mas não é o caso desse rapaz. O que notamos é que ele não se aceita e tem sentimentos de autopiedade por conta de seu defeito na perna. Embora haja realmente preconceito contra quem tem deficiência física ou mental, não podemos negar que muitas vezes a pessoa já tem preconceito contra si própria e pensa que todos os demais a rejeitam por conta de sua condição. No caso desse rapaz, seria bom que o tio conversasse com ele, claro, só que ele também precisa de ajuda psicológica. Tem que entender que é mais do que suas limitações físicas.
Muitas são as pessoas que por falta de autoestima por algum defeito (real ou imaginário), pensam que todos estão olhando para elas, apontando dedos. E veem críticas ou zombarias nos comentários ou gestos mais inocentes. Se alguém não se aceita, precisa de ajuda psicológica e aprender a enxergar melhor suas necessidades para se relacionar melhor consigo mesmo e os que lhe são próximos. Uma história como a desse rapaz, se contada de forma mais inteligente, poderia ensinar como às vezes os nossos problemas começam dentro de nós mesmos, que passamos a ver o mundo como se sempre estivesse contra nós.
Claro que não se poderia esperar de um péssimo desenho como esse que se preocupasse em contar uma boa história. Enfim, se alguém nunca assistiu à versão animada de Robocop, melhor que nunca o faça.