Será que você conhece mesmo as pessoas ao seu lado?
“Prefiro ser essa metamorfose ambulante do que ter aquela velha opinião formada sobre tudo”
Raul Seixas
A gente nunca conhece ninguém e ninguém realmente nos conhece. As pessoas ao nosso lado – principalmente as da nossa família - podem pensar que sabem tudo a nosso respeito, porém, quantas vezes, elas não fazem sobre nós suposições que nada têm a ver com quem somos? Cheguei a esta conclusão ao assistir a um episódio do anime Great Teacher Onizuka* em que a presidente de um Conselho de Pais e Professores, mãe de uma aluna chamada Anko Uehara, dizia que sua filha, de quatorze anos, era gentil e obediente, ficando chocada ao descobrir que sua querida menina, que fazia o papel de garota perfeita em casa, juntamente com suas amigas, adorava praticar bullying contra um menino tímido e frágil chamado Yoshikawa. Elas o espancavam, deixando-o cheio de marcas roxas, tiravam suas roupas e o fotografavam nu e ainda por cima escreviam na sua pele vários xingamentos. Numa cena, as amigas de Anko riem com ela, dizendo que a mãe não sabe o quanto ela é suja e a jovem responde que é a jovem perfeita em casa. Que choque para a mãe ver que tinha uma filha capaz de fazer coisas tão sórdidas!
Da mesma forma, as pessoas de nossa família pensam que nos conhecem e não sabem nem um pouco do que realmente se passa dentro de nós. Acham que sabem perfeitamente o que pensamos e sentimos e não entendem que só deixamos que vejam a superfície. O engano é muito maior quando somos pessoas quietas, introvertidas. Em famílias, é comum que os pais pensem que os filhos mais quietos estão satisfeitos com suas vidas. Dizem muito: “Ela é muito quieta, fica satisfeita com tudo e não reclama de nada.” Nem imaginam que talvez esses filhos quietos não estejam satisfeitos e sintam raiva porque, muitas vezes, os pais parecem não nota-los, ignorando que eles também têm seus anseios, desejos que querem satisfazer e sentimentos. Uma filha ouviu muito o pai dizer dela: “Ah, ela faz o serviço de casa com todo prazer.” “Tudo que ela gosta na vida é estudar.” O pai nem se dava ao trabalho de conhecer realmente a filha, que se sentia sobrecarregada de tarefas domésticas e queria passar num concurso público para não ter mais de estudar, porque há tempos cansara de viver em cima dos livros e apostilas.
Não são poucos os pais que, por não se darem ao trabalho de procurar conhecer realmente seus filhos, acham que podem decidir a vida deles e que ignoram que os filhos cresceram, tratando-os como crianças, como se eles não fossem capazes de saber por si o que lhes serve mas esquecendo de se aproximar de fato deles para ouvi-los. Na pior das hipóteses, muitos pais pensam que têm até de escolher a carreira dos filhos, dizendo: “Faça esse curso que é o que serve para você.”: “Carreira boa para você é essa”. Vamos ser sinceros. Se os pais acham que precisam dizer a um filho adulto o que é bom ou não para ele, alguma coisa está muito errada. E, com certeza, não é com o filho. Alguns pais são tão cegos que, ainda que os filhos digam que não querem seguir aquela direção que eles impõem, querem que eles continuem nela a todo custo com artimanhas como:”Mas meu filho, como você pode não gostar? Isso lhe serve perfeitamente. É o melhor para você. Com o tempo, você vai gostar.” Que pais são esses que querem até decidir do que os filhos podem ou não gostar?
Uma boa prova de que nunca conhecemos ninguém é o histórico desses adolescentes que entram atirando nas escolas. Muitos eram pessoas quietas, por quem ninguém dava nada e que julgavam incapazes de fazer algo assim. Os pais desses jovens, diante das tragédias, sempre dizem que nunca podiam imaginar que os filhos fariam tais coisas. Porém, em investigações mais aprofundadas, viu-se o que muitos faziam sem que os pais soubessem: consultavam certos sites na Internet, acessavam conteúdo impróprio, tinham comprado armas por tal site e faziam parte de grupos que pregavam mensagens de ódio. Isso só nos mostra como podemos estar tão perto e, ao mesmo tempo, tão longe das pessoas com quem dividimos o mesmo teto. Um outro bom exemplo da ficção de mãe e pai que desconhecem o filho é o Solomon, de Marcas de Nascença, escrito pela canadense Nancy Huston. Tess, mãe de Solomon, superprotege o filho de seis anos e não o deixa ver programas como Innuyasha** e nem mesmo Bambi para que ele não fique traumatizado com a morte da mãe do protagonista por caçadores. Porém, quando o menino vai à casa de um amigo, eles assistem a O exterminador do futuro e Solomon – um menino inteligente, precoce e manipulador, que represente bem o papel de anjinho inocente na frente de todos - sem que a mãe saiba, acessa sites de conteúdo adulto, ficando excitado com imagens de soldados torturados na Guerra do Iraque, de estupros e zoofilia. Ele também adora ouvir as conversas dos adultos escondido. No romance, a mãe não descobre as taras do filho, mas dá para imaginar como ficaria chocada ao saber quem ele realmente é.
Ainda podemos falar sobre o livro A garota no trem, de Paula Hawkins, no qual Scott, marido da mulher desaparecida, tem de ver que sua mulher não era quem ele pensava quando a mídia fala coisas do passado dela e quando Rachel, a protagonista, por se envolver com uma história que não lhe diz respeito, vai vendo que seu ex-marido, Tom, não era o que parecia ser e que inclusive ele a manipulou a respeito de fatos do passado, deixando-a com a memória confusa para fazer parecer que ela, devido ao seu alcoolismo, tinha sido a única culpada por ele tê-la traído e deixado para casar com Anna, a amante.
Pelo fato de convivermos muito com certas pessoas, elas nos enganam mais do que as de fora. Conseguem nos manipular mais, usando de artimanhas e nos levando na conversa por confiarmos nelas e com elas dividirmos nossos sentimentos e aflições. Obviamente, ninguém nos engana uma vida inteira mas, quando percebemos que alguém em quem tanto confiávamos foi capaz de nos enganar e manipular, ficamos muito enfurecidos porque tudo que até então tinha passado despercebido parece muito claro. Tomar um choque de realidade é realmente doloroso. A gente sabe que nunca mais será quem costumava ser, porque nosso chão ruiu sob nossos pés. Entretanto, esse sofrimento tem um lado bom. Após tomarmos esse choque de realidade, se não teremos mais as mesmas ilusões do passado, não seremos mais feitos de trouxas tão facilmente. Nossa percepção aumentou e nossa visão está mais ampla. Amadurecer dói, pois implica perder a antiga inocência quando tudo antes era tão cor-de-rosa e frondoso. Mas, pelo menos, teremos desenvolvido uma espécie de “radar” que nos ajudará a identificar melhor quem merece ou não a nossa confiança. Depois que aprendemos certas coisas, não podemos mesmo voltar a ser quem somos. Dói saber que não seremos mais aquelas pessoas cheias de confiança, só que temos de admitir que quase nunca as coisas são como esperamos ou imaginamos. Então, melhor conhecermos a verdade para podermos nos defender.
Temos também de admitir que nem mesmo nós nos conhecemos de verdade. Quantas vezes não temos atitudes ou reagimos a certos fatos de uma maneira que faz com que sintamos que não sabemos quem somos? Enfim, não conhecemos de verdade a ninguém e nem a nós mesmos. Assim, melhor não formularmos opiniões absolutas a respeito das pessoas com quem convivemos. Elas, sabendo do que pensamos, podem até zombar de nós e dizer consigo mesmas:” Isso não tem nada a ver comigo. Essa pessoa não sabe mesmo nada de mim.” As pessoas também estão sempre mudando. Ninguém é hoje quem costumava ser no passado. E, pensando bem, ainda bem que é assim. É ótimo ver que não somos mais tão tolos quanto fomos um dia e que as pessoas nunca são tão óbvias como pensamos.
*Anime no qual um ex-delinquente se torna professor
**Anime sobre um rapaz que não é humano.