O CONCEITO DE JUSTIÇA EM PLATÃO: O ANEL DE GIGES
Uma das grandes questões levantadas em A República de Platão é a justiça. Platão escreve esse livro em forma de diálogos, usando Sócrates como personagem principal. No livro, Sócrates dialoga com outros personagens que apresentam suas ideias e conceitos sobre o que é a justiça. Depois de Sócrates refutar um a um, Céfalo, Polemarco e Trasímaco, chega a vez de Glauco, que surge no diálogo no início do livro II, onde Sócrates ainda continua indagando pelo conceito de justiça.
Glauco traz seu conceito de justiça argumentando que os injustos prosperam, que os que determinam seu próprio senso de justiça conforme suas conveniências prosperam, mas não só isso, ele diz também que todos, por natureza, não são justos, e conclui dizendo, ainda, que só somos justos porque somos coagidos pelo medo de sermos punidos. Analisando a primeira colocação de Glauco, notamos que ele fez referência a um fato que não é difícil de ser verificado na experiência. Inclusive, há um Salmo na Bíblia em que o salmista questiona a Deus por que o ímpio prospera: “Quanto a mim, os meus pés quase que se desviaram; pouco faltou para que escorregassem os meus passos. Pois eu tinha inveja dos néscios, quando via a prosperidade dos ímpios.” (Salmos 73: 2, 3). Se olharmos em volta, veremos que realmente prosperidade e justiça não andam sempre juntas, veremos que há justos que padecem necessidades e injustos que tem uma vida regalada.
É perfeitamente compreensível que alguém que contemple essas aparentes injustiças da vida desacredite completamente da justiça e não veja na vida uma força superior que equilibre os pratos da balança de acordo com as ações de cada um. Quando, em um segundo momento, Glauco diz que todos os homens não são justos por natureza, essa afirmação se coaduna muito bem com a ideia da natureza corrompida do homem, abundantemente tratada na teologia e defendida por filósofos medievais. Glauco parece estar pisando em um terreno firme e conhecido, e quando ele arremata seu pensamento dizendo que só somos justos por coação, ele se vale de um mito para ilustrar seu pensamento, o mito do anel de Giges, o primeiro mito contido em A República de Platão.
O mito do anel de Giges vem solidificar o argumento de Glauco, que ainda não ouviu de Sócrates a refutação. O mito conta a história de um simples pastor da região da Lídia que, após uma tempestade, ouve um estrondo e percebe uma fenda aberta no meio da terra, próximo de onde estava. Ao aproximar-se, vê que dentro da fenda há um cavalo de bronze, uma estátua oca aberta em vários lugares. Dentro da estátua há o cadáver de um gigante completamente despido, a não ser por um anel de ouro que brilhava em sua mão. Giges não resiste e toma o anel, pondo-o no dedo.
Dias depois, aconteceu a assembleia regular dos pastores, onde todos levavam o relato de seus rebanhos ao rei. Durante esse encontro, Giges vira a pedra do anel para dentro e percebe que havia ficado invisível para os demais, os quais tocavam em seu nome como se ele estivesse ausente. Perturbado, Giges torna a girar a pedra e, consequentemente, a ficar visível. Por prudência, repetiu o movimento no anel e o resultado foi o mesmo. Constatou que poderia se aproximar de pessoas, ouvir conversas, ir a lugares, tudo sem ser percebido. Giges, então, convence todos a enviá-lo como representante ao castelo para levar os relatos dos pastores. Chegando ao castelo, Giges manipulou seu anel, usou seu poder de invisibilidade para seduzir a rainha, matar o rei e usurpar o trono como novo soberano do reino, vindo a se tornar o maior tirano da região e dando início a uma longa dinastia. Com esse mito, Glauco diz que todos agiriam da mesma forma que Giges caso não pudessem ser vistos, ou seja, a conduta justa depende da publicidade ou do anonimato daquele que pratica a ação. O homem pauta suas atitudes de formas diferentes, condicionando-se ao olhar de terceiros para ser justo ou injusto.
Glauco está com isso dizendo que só se conhece se um homem é realmente justo observando o que ele faz quando ninguém o está vendo. Por conseguinte, não há como se verificar essa proposição na experiência, pois o simples ato de observar já faz com que o homem que ninguém está vendo passe a ser visto, perdendo-se, assim, o objeto a ser verificado. Em outras palavras, a proposição de Glauco não é passível de ser falseada. Todavia, se nos valermos de uma hermenêutica para absorvemos a essência do texto e abandonarmos a linha literal do texto, veremos que há várias situações em que o homem se encontra "invisível", pelo menos para a maioria da sociedade, como, por exemplo, quando está sentado na frente de um computador, ou quando está no local de trabalho, ou quando está em casa com a família. Parece que Glauco está nos dizendo que para conhecermos se um homem é justo ou injusto devemos acompanhá-lo até sua casa e vermos como ele trata a sua família, que devemos acompanhá-lo até seu trabalho e ver como ele trata seus colegas, que devemos espiá-lo e ver como ele age quando acha que ninguém o está vendo.
É um pensamento muito comum a quem conhece o mito do anel de Giges conjecturar o quanto não seria interessante ter esse poder de invisibilidade. O que fazemos quando ninguém está nos vendo? O que faríamos se tivéssemos um anel como o de Giges? Será que roubaríamos o que sempre quisemos ter sem deixar vestígios? Há coisas fantásticas e ao mesmo tempo desprezíveis que poderiam ser feitas com a posse de um anel como o de Giges. Ou será que faríamos coisas nobres para ganhar prestígio? De fato, viver como se sempre houvesse sempre alguém observando é um modo ético de vida que muitas pessoas adotam. Mas por que a mesma ética não poderia ser adotada em circunstâncias opostas, por que as ações não poderiam continuar sendo feitas com os olhos voltados para aquilo que é verdadeiramente justo, mesmo com a certeza absoluta de que ninguém está observando?
Sócrates percebe não só que a verificação da ação de um homem quando ninguém o está vendo é inviável, mas percebe também a rigidez dos argumentos de Glauco e sabe que ambos encontrarão muitas dificuldades se continuarem buscando o conceito de justiça analisando o particular de um homem hipotético em suas ações, ainda mais quando o anonimato pede lugar na observação. É aí que Sócrates resolve evocar um plano superior, a universalidade ao invés da particularidade, e é isso que dá início ao grande projeto da cidade da República. A análise do mito de Giges é a gênese da cidade onde Platão idealiza a República. A universalidade que se segue daí na obra de Platão passa pela análise de várias formas de governo, até a conclusão de que por melhor que fosse um governo ou regime, ainda assim ele cairia. Esse mito fantástico nos leva à reflexão de que buscar a justiça deve ser o alvo de cada homem, e essa busca constante se dá em um foro íntimo, interior e particular. Se os homens vivessem guiados pela justiça mesmo quando ninguém os estivesse vendo, mesmo quando a impunidade fosse uma garantia e que nada pudesse impedir seus atos, teríamos um mundo no mínimo menos injusto.
BIBLIOGRAFIA:
PLATÃO. A República. São Paulo: Nova Cultural, 2000. Tradução de Enrico Corvisieri
HAVELOCK, E. Prefácio a Platão. Tradução Enid Abreu Dobránzsky. Campinas: Papirus, 1996.
Glauco traz seu conceito de justiça argumentando que os injustos prosperam, que os que determinam seu próprio senso de justiça conforme suas conveniências prosperam, mas não só isso, ele diz também que todos, por natureza, não são justos, e conclui dizendo, ainda, que só somos justos porque somos coagidos pelo medo de sermos punidos. Analisando a primeira colocação de Glauco, notamos que ele fez referência a um fato que não é difícil de ser verificado na experiência. Inclusive, há um Salmo na Bíblia em que o salmista questiona a Deus por que o ímpio prospera: “Quanto a mim, os meus pés quase que se desviaram; pouco faltou para que escorregassem os meus passos. Pois eu tinha inveja dos néscios, quando via a prosperidade dos ímpios.” (Salmos 73: 2, 3). Se olharmos em volta, veremos que realmente prosperidade e justiça não andam sempre juntas, veremos que há justos que padecem necessidades e injustos que tem uma vida regalada.
É perfeitamente compreensível que alguém que contemple essas aparentes injustiças da vida desacredite completamente da justiça e não veja na vida uma força superior que equilibre os pratos da balança de acordo com as ações de cada um. Quando, em um segundo momento, Glauco diz que todos os homens não são justos por natureza, essa afirmação se coaduna muito bem com a ideia da natureza corrompida do homem, abundantemente tratada na teologia e defendida por filósofos medievais. Glauco parece estar pisando em um terreno firme e conhecido, e quando ele arremata seu pensamento dizendo que só somos justos por coação, ele se vale de um mito para ilustrar seu pensamento, o mito do anel de Giges, o primeiro mito contido em A República de Platão.
O mito do anel de Giges vem solidificar o argumento de Glauco, que ainda não ouviu de Sócrates a refutação. O mito conta a história de um simples pastor da região da Lídia que, após uma tempestade, ouve um estrondo e percebe uma fenda aberta no meio da terra, próximo de onde estava. Ao aproximar-se, vê que dentro da fenda há um cavalo de bronze, uma estátua oca aberta em vários lugares. Dentro da estátua há o cadáver de um gigante completamente despido, a não ser por um anel de ouro que brilhava em sua mão. Giges não resiste e toma o anel, pondo-o no dedo.
Dias depois, aconteceu a assembleia regular dos pastores, onde todos levavam o relato de seus rebanhos ao rei. Durante esse encontro, Giges vira a pedra do anel para dentro e percebe que havia ficado invisível para os demais, os quais tocavam em seu nome como se ele estivesse ausente. Perturbado, Giges torna a girar a pedra e, consequentemente, a ficar visível. Por prudência, repetiu o movimento no anel e o resultado foi o mesmo. Constatou que poderia se aproximar de pessoas, ouvir conversas, ir a lugares, tudo sem ser percebido. Giges, então, convence todos a enviá-lo como representante ao castelo para levar os relatos dos pastores. Chegando ao castelo, Giges manipulou seu anel, usou seu poder de invisibilidade para seduzir a rainha, matar o rei e usurpar o trono como novo soberano do reino, vindo a se tornar o maior tirano da região e dando início a uma longa dinastia. Com esse mito, Glauco diz que todos agiriam da mesma forma que Giges caso não pudessem ser vistos, ou seja, a conduta justa depende da publicidade ou do anonimato daquele que pratica a ação. O homem pauta suas atitudes de formas diferentes, condicionando-se ao olhar de terceiros para ser justo ou injusto.
Glauco está com isso dizendo que só se conhece se um homem é realmente justo observando o que ele faz quando ninguém o está vendo. Por conseguinte, não há como se verificar essa proposição na experiência, pois o simples ato de observar já faz com que o homem que ninguém está vendo passe a ser visto, perdendo-se, assim, o objeto a ser verificado. Em outras palavras, a proposição de Glauco não é passível de ser falseada. Todavia, se nos valermos de uma hermenêutica para absorvemos a essência do texto e abandonarmos a linha literal do texto, veremos que há várias situações em que o homem se encontra "invisível", pelo menos para a maioria da sociedade, como, por exemplo, quando está sentado na frente de um computador, ou quando está no local de trabalho, ou quando está em casa com a família. Parece que Glauco está nos dizendo que para conhecermos se um homem é justo ou injusto devemos acompanhá-lo até sua casa e vermos como ele trata a sua família, que devemos acompanhá-lo até seu trabalho e ver como ele trata seus colegas, que devemos espiá-lo e ver como ele age quando acha que ninguém o está vendo.
É um pensamento muito comum a quem conhece o mito do anel de Giges conjecturar o quanto não seria interessante ter esse poder de invisibilidade. O que fazemos quando ninguém está nos vendo? O que faríamos se tivéssemos um anel como o de Giges? Será que roubaríamos o que sempre quisemos ter sem deixar vestígios? Há coisas fantásticas e ao mesmo tempo desprezíveis que poderiam ser feitas com a posse de um anel como o de Giges. Ou será que faríamos coisas nobres para ganhar prestígio? De fato, viver como se sempre houvesse sempre alguém observando é um modo ético de vida que muitas pessoas adotam. Mas por que a mesma ética não poderia ser adotada em circunstâncias opostas, por que as ações não poderiam continuar sendo feitas com os olhos voltados para aquilo que é verdadeiramente justo, mesmo com a certeza absoluta de que ninguém está observando?
Sócrates percebe não só que a verificação da ação de um homem quando ninguém o está vendo é inviável, mas percebe também a rigidez dos argumentos de Glauco e sabe que ambos encontrarão muitas dificuldades se continuarem buscando o conceito de justiça analisando o particular de um homem hipotético em suas ações, ainda mais quando o anonimato pede lugar na observação. É aí que Sócrates resolve evocar um plano superior, a universalidade ao invés da particularidade, e é isso que dá início ao grande projeto da cidade da República. A análise do mito de Giges é a gênese da cidade onde Platão idealiza a República. A universalidade que se segue daí na obra de Platão passa pela análise de várias formas de governo, até a conclusão de que por melhor que fosse um governo ou regime, ainda assim ele cairia. Esse mito fantástico nos leva à reflexão de que buscar a justiça deve ser o alvo de cada homem, e essa busca constante se dá em um foro íntimo, interior e particular. Se os homens vivessem guiados pela justiça mesmo quando ninguém os estivesse vendo, mesmo quando a impunidade fosse uma garantia e que nada pudesse impedir seus atos, teríamos um mundo no mínimo menos injusto.
BIBLIOGRAFIA:
PLATÃO. A República. São Paulo: Nova Cultural, 2000. Tradução de Enrico Corvisieri
HAVELOCK, E. Prefácio a Platão. Tradução Enid Abreu Dobránzsky. Campinas: Papirus, 1996.