Analisando uma personagem

Quem já assistiu ao anime, às versões live action ou leu o mangá Great Teacher Onizuka, em que um ex-delinquente juvenil, Eikichi Onizuka, graduado por uma péssima universidade, assume a improvável profissão de professor, talvez lembre de uma personagem chamada Tomoko Nomura, uma jovem de quatorze anos que não faz nada direito e a quem todos chamam “Toroko”, que significa lenta. Tomoko é zombada por todos e até seus pais não acreditam que a menina possua alguma qualidade apreciável, chegando ao ponto de reclamar da filha na frente de estranhos, dizendo que ela faz tudo errado e só causa problemas. A própria menina aceitou o rótulo de lenta e não se defende dos que a maltratam.

Onizuka, ao ver a situação da menina, resolve ajuda-la. Enquanto no anime e no mangá ela é realmente estúpida, a típica moça bonita e burra, tendo como atributo mais evidente os seios avantajados – moças de seios grandes não são incomuns em animes e mangás - , nas versões live action de 1998 e de 2012 ela é apenas desajeitada e insegura, mostrando talento artístico. No de 2012 ela se revela talentosa para o canto. No anime, ela chama a atenção em um concurso de beleza juvenil e se torna modelo, ganhando o respeito de todos que até então a desprezavam. Quem fica feliz é Onizuka, o único que havia acreditado nela desde o começo.

Como podemos analisar a personagem? Não iremos problematizar o fato dela ser apenas mais um exemplo do estereótipo da menina bonita mas com pouco cérebro. Sabemos bem que isso foi apenas para dar um efeito cômico e qualquer um que leia o mangá ou assista ao anime saberá que pessoas assim não existem na vida real. O que devemos analisar é o fato de que ela aceita passivamente o fato dos pais não acreditarem nela e dos colegas a considerarem lenta e estúpida demais. Chega a ser doloroso ver a personagem Miyabi Aizawa, que tinha sido até então sua melhor amiga, passar a rejeitá-la e chama-la de lixeira e dizer que nunca mais fale com ela. E Tomoko tem tão pouco respeito por si própria que não reage e vai atrás de Miyabi, que a rejeita como se fosse um vira-lata sarnento.

O que percebemos é que, no cotidiano, em nossa realidade, muitas pessoas, de tanto ouvirem, inclusive dos seus pais, que são desajeitadas e lentas, acabam aceitando e agindo de acordo com a ideia que os outros fazem delas. Assim como ocorre com Tomoko, é frequente que certos pais reclamem dos seus filhos na frente deles para outras pessoas, como se os filhos fossem tapados ou estúpidos demais para não sentir a crueldade de suas palavras. Chegamos a ouvir pais dizendo:”Ah, essa menina é muito boba, não faz nada certo.” ; “Esse menino é lento, não consegue aprender nada.” Seria bom que os pais ouvissem alguém lhes dizer que os filhos não são tão limitados que não compreendam o que os pais estão falando e que, no futuro, ainda carregarão as sequelas psicológicas de terem percebido que os próprios pais nada davam por eles. Para uma criança, é danoso entender que os pais não lhes dão crédito e a veem como alguém que nunca fará nada e jamais será alguém capaz.

Devemos entender que a primeira noção que temos de quem somos vem dos nossos pais e, como tendemos a acreditar neles, haverá consequências: a pessoa poderá acabar entendendo que é realmente muito lenta, tapada ou desajeitada demais para qualquer atividade que exija um certo traquejo ou desenvoltura. E poderá nunca ir atrás do que sonha por se julgar incapaz, desenvolver inibição social, ter dificuldades para fazer amigos, entendendo que não é boa o suficiente e não se defendendo de quem a desrespeitar, como acontece com a Tomoko, que até ri ao ser chamada de lenta e pergunta ao professor por que ele perde tempo com alguém estúpida como ela.

Porém, o mais triste é ver a crueldade de Miyabi, sua amiga de infância, menina rancorosa e vingativa que costumava ser muito gentil mas, por algum motivo, tem raiva dos professores e se transforma completamente a ponto de descarregar sua raiva em Tomoko, que tem baixa autoestima e vive se espelhando na ex-melhor amiga como modelo de perfeição, beleza e inteligência. Tomoko se sente triste por ver que a amizade se esvaiu e até Miyabi, quando Tomoko, fazendo uma representação no festival de beleza e talento, fala de como ambas eram amigas, sente tristeza ao lembrar da amizade que ambas tinham.

Lamentavelmente, nem todos têm a sorte de Tomoko, que encontrou em Onizuka um defensor, e acabam sofrendo em suas vidas, não desenvolvendo seus potenciais por acharem que nunca serão alguém, aceitando relacionamentos abusivos devido à baixa autoestima e nem mesmo se esforçando para se destacar em algo, seja na escola ou em alguma arte ou profissão. Muitos levam anos para recuperar a autoestima esfacelada e nem podemos dizer que vão iniciar a reconstrução de suas vidas. O mais apropriado seria dizer que elas começarão a construir suas vidas a partir da recuperação da identidade que estava perdida para elas próprias. Ser criado por pais que não nos valorizam e conviver com quem nos faz sentir que não somos ninguém faz com que percamos nossa identidade, como se não tivéssemos rosto.