POR QUE APOIO O ESPECIAL DE NATAL DO PORTA DOS FUNDOS

     Eu ainda não consegui ver na íntegra o especial de Natal do coletivo Porta dos Fundos, mas busquei ver as cenas que embasam toda a polêmica que resultou dessa esquete do renomado grupo de humor, que mexeu com os brios dos religiosos ao apresentar um Jesus Cristo afetado e um Deus pegador que fornica a virgem. Também me dei ao mister de analisar críticas favoráveis e desfavoráveis. 
     A arte e a literatura sempre tiveram o condão de agradar a uns e a desagradar a outros ao veicular valores morais, ideologias, idealismos e costumes. O Marquês de Sade (1740-1814) passou quase a metade da sua vida preso por cenas que hoje são banalizadas pelos vídeos pornôs presentes, via Internet, nas casas de boa parte da família brasileira. A moralidade de época é flexível. Não vai muito tempo, uma mulher desquitada, como a personagem Clô, do genial escritor (e gaúcho) Sérgio Jockyman (1930-2011), era malvista e sofria todo tipo de preconceito. Lembrei outra: faz poucas décadas, uma adolescente ou moça que engravidava fora de um casamento era expulsa de casa, com o repúdio da própria mãe não raras vezes. E isso no momento em que ela estava mais frágil e mais necessitada de apoio.
     Essa moral de época também viu emergir vencidos e submergir vencedores. No Império Romano, o cristianismo foi perseguido por séculos e só passou a ser tolerado muito tempo depois do presumido nascimento do salvador. A mensagem dos cristãos era subversiva porque, num tempo de castas e de nobres, patrícios, plebeus e escravos, pregava que todos os homens era iguais. Naqueles idos, isso era inconveniente para os poderosos da época. Todavia, tão logo chegaram à hegemonia religiosa no mundo ocidental, começaram a perseguir opositores, dissidentes e até aliados incômodos. As fogueiras, as torturas e os envenenamentos, de almas e de corpos, tornaram-se comuns. Posteriormente, Martinho Lutero (1483-1546) teve divergências mais de forma que de conteúdo com a Igreja e acabou abrindo uma bifurcação cristã que levou a uma intolerância ainda maior que aquela que alegava combater.
     Dessa linha de Lutero descendem as igrejas evangélicas, mas o embasamento delas tem ainda muito a ver com sua matriz católica. Defendem ambas seus dogmas com unhas e dentes e têm rituais e personagens que consideram acima de qualquer suspeita. Não colocam mais os hereges na fogueira, mas amam a censura quando ela os favorece. O “calor” dos debates mostra seus argumentos frágeis e então precisam apelar para meios heterodoxos de calar seus desafetos. Entre eles, hoje está o Porta dos Fundos.
     Até pouco tempo, se dizia que a melhor censura, a única aceitável, era não ler o livro, não comprar o jornal, não sintonizar o canal. Agora, os censores e os direitistas defensores da censura não se contentam mais com isso. Querem calar, amordaçar e, se pudessem, usariam a a tortura e a eliminação física de quem os contraria. Não é à toa que o atual presidente do país, que fala muito em Deus como marketing, é um discípulo do falecido coronel Brilhante Ustras (1932-2015), conhecido torturador.
     Desde o princípio do mundo, os homens e mulheres buscaram criar narrativas desvinculadas da realidade para explicar o que não compreendiam. Assim, por exemplo, na mitologia grega, surgiram os deuses e os heróis épicos. Todos esses entes, muitas vezes, passavam a dominar seus mentores. Esse é um processo muito bem desvendado por Ludwig Feuerbach (1804-1872), que mostra que a realidade cria a consciência e não a consciência que impulsiona a realidade, como queriam Platão e Hegel (1770-1831). Portanto, isso ocorre quando a humanidade cria os deuses e os transforma em seus próprios senhores. Assim, Jesus, Deus, Virgem Maria e outros personagens nada mais são do que produto de uma época e de uma cultura que se propaga no tempo.
     Dessa forma, pode-se ver, ou até negar, que o processo de formação de entidades divinas é um ofício extremamente humano, inclusive suas escrituras. Assim, junto com essa gênese, surgem as liberdades de crer e descrer, de acreditar e de não acreditar. Ninguém pode impor nem ser levado a assumir valores de outrem, sejam individuais, sejam coletivos. Muitos arautos da fé alegam que os personagens estão sendo desrespeitados. Ora, cada um tem direito à sua versão, principalmente quando essa fé é criada de forma tão subjetiva e parcial. Veja-se que não há mitos neutros. Num tempo de conflitos, o presumido Deus flerta com os pobres, mas almoça na mesa do patrão, como bem lembrava Atahualpa Yupanqui (1908-1992). Uma visão de mundo pode virar majoritária, mas isso não a torna inquestionável, porque o ser humano, em sua incompletude, nasceu para dizer sim, nasceu para dizer não e nasceu para dizer sim e não ao mesmo tempo. A autopiedade, a ironia e a propensão para derrubar ídolos são ingredientes fundamentais na trajetória de uma humanidade que se tornou capaz de impulsionar a si mesma sempre que se rebelou na busca de controlar seu próprio destino. 
     Nesse sentido, o trabalho do Porta dos Fundos nada mais é do que uma manifestação dessa verve que não surgiu com o grupo nem vai ficar apenas nele. É intrínseco a quem quer mudar o mundo não aceitar verdades definitivas, a que damos o nome de dogma e que outros chamam de fé. Cada um pode e deve ter a liberdade de acreditar naquilo que melhor lhe aprouver. O que não é aceitável, a não ser na cabeça de lunáticos e de aproveitadores, é que essa crença seja defendida com aquela conversa fiada para o rebanho dormir sem que uma ou outra ovelha possa dissentir. Aí não é argumento, é sofisma de baixa qualidade.


 
Landro Oviedo
Enviado por Landro Oviedo em 13/01/2020
Reeditado em 14/01/2020
Código do texto: T6841202
Classificação de conteúdo: seguro