Releitura daqueles que fundamentam o saber brasileiro: os fazedores do nosso chão

Desde o ano de 2010, a crueza do Brasil profundo desencantou em mim meu lado urbano, carioca da gema, amante do mar do Rio de Janeiro para despertar meu encantamento no país que mora no interior e se constrói nos mutirões, nas partilhas, nas trocas solidárias.

Em maio de 2010, então, decidi: faria uma viagem a algum lugar do Brasil que ficasse no interior para produzir um trabalho. A pesquisa foi grande: a exigência era que o local pesquisado agrupasse um grande número de brasileiros sábios e ficasse no sertão. Busquei os rastros desses brasileiros e atinei: preciso encontrar gente que não esteja tão contaminada com os parâmetros do que vem de fora do Brasil, que conseguiu construir um saber genuíno, aquele que nos faz lembrar do Evangelho: é preciso construir sobre a rocha e não sobre a areia. Pronto! Achei! Esse lugar era o vale do Jequitinhonha.

Explodi de paixão antes mesmo de chegar no vale. Meu primeiro contato com Jequitinhonha foi através de Banu, dono de um blog que reverbera notícias da região. Foi ele que me passou contatos e dicas. Minha intenção era produzir uma página virtual que contemplasse a grande sabedoria da gente desse local e abrisse os olhos do Brasil voltado somente para as metrópoles que sim, existe muita riqueza interior adentro e que, no caso do vale do Jequitinhonha, o rico solo da região não brilha e reina sozinho: há muita gente brilhante na localidade que mesmo sem possuir as credenciais que exigem estudo, conquistaram uma proeza que poucos conseguem enxergar: fazendo de matéria-prima seu sofrimento, transformam-no em riqueza cultural e emocional Posso afirmar: quando cheguei, em nenhum momento minha imensa expectativa foi frustrada. Pelo contrário. Então, esmerei-me o máximo que pude para produzir o blog e, assim, retribuir toda hospitalidade que recebi quando estive na região.

A frase de Euclides da Cunha: “o sertanejo é antes de tudo um forte” revelou-se uma grande verdade durante minha passagem pelo vale do Jequitinhonha. Fiquei imensamente acendida espiritualmente com as colocações dos moradores com quem conversei. Nunca escutei tanta sabedoria na minha vida! Pensei: estou no paraíso. Quando refletimos a frase de Euclides da Cunha em relação aos brasileiros do vale, não dá para negar: realmente, o sertanejo é antes de tudo um forte. Um homem que carrega consigo a força da vontade. É que a vontade, no seu caso, nasce da necessidade. E é da necessidade de sustentar seu corpo físico que eles driblam as penúrias materiais e fazem dessa necessidade uma aliada, que proporciona sentido à vida e fornece força para viver a vida com dignidade.

Os brasileiros do vale são muito religiosos. Mas preciso constatar: sem destruir os dogmas da Igreja, ultrapassam aqueles que fizeram da religião uma prisão e reproduzem aquilo que o mestre deles, Jesus – não cansavam de afirmar nas conversas que eles assim o elegeram – pediu: o amor. Nossa! Como esse povo ama a vida e as pessoas. Amam mesmo na adversidade, na contrariedade, na maldade alheia. Atinei, então: por isso são felizes, sorridentes.

Eles se dizem fracos, por não possuir o poder divino e nem o poderio do dinheiro. Mas o que pude constatar foi uma força imensa. Toda essa minha reflexão me conduziu a uma decisão: fazer um mestrado – que ainda não fiz - com o seguinte tema: “’Sou fraco’, uma visão de mundo dos sertanejos do vale do Jequitinhonha”.

Colocaria minha disposição para refletir se essa fraqueza da qual falam não pode ser entendida como força. Reconhecer-se fraco seria uma poderosa maneira de lidar com os abusos dos “fortes”. Analisar esse paradoxo: como reconhecer nessa fraqueza deles uma força?

Euclides da Cunha retrata em “Os Sertões” a submissão dos sertanejos em relação aos que desfrutam de uma condição material mais abastada. Mas pensei: obedecer, no caso dos brasileiros do vale do Jequitinhonha, ao invés de indicar uma inferioridade, seria a constatação da necessidade de servir, seria a honra de poder se colocar numa situação na qual o serviço ao outro revela mais do que a admissão de sua inferioridade material, mas é possibilidade de desfrutar de realeza, é estar mais próximo do que dignifica-os. Ainda em “Os Sertões”, Euclides da Cunha, que analisa como os sertanejos se comportaram na Guerra de Canudos, percebe: o homem do sertão suporta altas doses de abusos, porém, quando certo de que precisa se insurgir contra algo que extrapola os limites de sua condição de homens e não de deuses, ele se insurge. Assim acontece também em relação aos sertanejos do vale do Jequitinhonha. Reconhecem-se fracos em relação aos mais abastados e aos que, por desfrutarem de poder econômico maior, têm maior capacidade de decisão sobre seus intentos nas terras sertanejas. Porém, não deixam de se insurgir quando detectam que o “poder” do outro destrói sua cidadania, seu direito de fazer valer sua liberdade.

Vale à pena a reflexão sobre a “fraqueza” dos sertanejos do vale do Jequitinhonha em relação ao poder dos citadinos. Os sertanejos de lá não se envergonham em constatar sua condição de fracos. Isso é bem resolvido para eles. Já os citadinos se envergonham e acham humilhante admitir se encontrarem em uma situação que a opinião pública considera desprezível. Rebaixam-se aos ditames de seu ego, que não admite “ficar por baixo” do outro que está ao seu lado. Os pareceres da aparência, para os citadinos, é o que mais conta no momento em que é analisado pelo outro.

Enquanto eu puder, não deixarei de recomendar a leitura do blog Fazedores do nosso chão (www.fazedoresdonossochao.com). Há muito o que aprender com a coragem de Olímpio, o bom humor de Gonçalo, a firmeza de Lira, a doçura de Antenor, a bravura de Maria Joana, a sapiência de Zé do Ponto e a meiguice de Ambrosina.