A VERDADE É ABSOLUTA

 

     Pensemos um pouco, agora, sobre a existência metafísica da verdade. embora negada por filósofos, como Nieztsche e Kant, e bombardeada por escolas filosóficas como o subjetivismo, o relativismo, o ceticismo, o marxismo, o evolucionismo e o idealismo alemão, ela ainda permanece firme e inabalável. Todos esses movimentos colocaram os homens modernos em um areal movediço, condenados a uma morte intelectual e espiritual lenta e indolor. Ora, se a verdade não existe, então tudo é mentira e tudo é verdade ao mesmo tempo.
     Negando-se a existência da verdade, uma boa recomendação seria o fechamento das escolas, dos tribunais, e o fim de toda busca pelo saber, pois, afinal de contas, a verdade não existe, tudo é mentira, tudo é falso, tudo é palpite, tudo é espírito crítico, tudo é opinião, e qualquer coisa que se diga, por mais absurda que seja, merece respeito! O mestre de Alexandre, o Grande, já demonstrou a contradição da negação da verdade há mais de dois mil anos: “De fato, se todas as opiniões e todas as aparências sensoriais são verdadeiras, todas elas deverão, necessariamente, ser verdadeiras e falsas ao mesmo tempo”.[1]
     É diante dessa realidade que as opiniões perdem qualquer valor, porque o que realmente importa saber é a verdade e não uma vasta gama de opiniões contradizentes sem qualquer aderência à verdade mesma, sendo que se um pessoa respeitar todas as opiniões como respeita sua própria opinião, estará, então, formada uma pessoa confusa.
     Por isso, o que merece respeito não são as opiniões enquanto tais, mas sim o direito de alguém dizer o que pensa, de expressar sua opinião, seja ela a mais sincera e honesta crença em um engano, seja a bobagem que for. Assim sendo, quando a verdade é encontrada, por exemplo, de que dois mais dois são quatro, em nada interessa conhecer ou respeitar opiniões que dizem que o resultado é 19,34, ou que é 27, ou 3, ou 5, e assim por diante. Aristóteles escreveu em sua Metafísica: “De fato, quem possui apenas opinião, comparado a quem possui ciência, certamente não está em boas condições de saúde relativamente à verdade”.[2]
     Aliás, a resposta certa para um cálculo é somente uma. Já as respostas erradas são ilimitadas: Passa-se uma vida toda se for dada atenção a todas as opiniões e forem catalogadas todas as respostas erradas para um simples cálculo. É demasiado producente e perspicaz, depois de encontrada a verdade, ater-se a ela, desprezar as opiniões discordantes, não lhes dando a mínima atenção, e prosseguir em busca de outras respostas estofadas de verdade. Toda energia a ser empregada em uma investigação deve ser sempre em busca da verdade, é ela que merece a mais inflamada das paixões, e isso passa bem longe das opiniões ou do respeito que elas pretensiosamente arrogam para si. Aqui reside a Filosofia. A constante caça e perseguição da verdade. Ela não é uma discussão generalizada e sem fim, muito menos é um conjunto de opiniões totalmente esparsas reunidas como se fossem uma louvável expressão da inteligência humana. A Filosofia é uma investigação sistemática, criteriosa e contínua em direção a um alvo sublime.
     Aristóteles, um dos maiores filósofos que já existiu, quando não o maior, deixou um livro escrito somente com perguntas, investigações para as quais ainda não havia encontrado resposta, para as quais seu tempo de vida se mostrava terrivelmente fugaz. Tal livro chega como uma carta. Uma carta vinda de Estagira e assinada pelo “mestre dos que sabem” (como dizia Dante), lembrando sempre de que a Filosofia não é uma empreitada com prazo para entrega nem uma corrida em direção a uma linha de chegada, mas um exercício para toda uma vida e para todos os tempos.
     Aristóteles dizia que a verdade deveria ser procurada na realidade, não na percepção do ser: quem quisesse aprender sobre minerais, deveria olhar com prioridade para a realidade porque há mais conhecimento sobre minerais em uma pedra do que em todos os livros de mineriologia do mundo.
     Na contramão de Aristóteles, Kant traz em sua Filosofia uma Teoria do Conhecimento onde a verdade não está no objeto em si, mas sim na estrutura perceptiva do ser que captura recortes bem determinados e específicos  do objeto observado. Neste sistema, a verdade de um objeto nunca pode ser apreendida por causa das limitações cognitivas e sensoriais do sujeito que o percebe. Em suma, o sujeito cognoscente só pode captar do objeto aquilo que os seus sentidos e a sua estrutura cognoscitiva permitem capturar.
     É claro que, antes de Kant, Descartes já havia estabelecido o pensamento humano como a única certeza indubitável na qual alguém poderia se ancorar, o famoso “Cogito, ergo sum”: Penso, logo existo. A filosofia de Descartes foi concretada a partir de um exercício mental, a chamada dúvida cartesiana, onde depois de duvidar de tudo, o filósofo francês concluiu que não poderia duvidar de que estava duvidando, colocando a residência das suas certezas no pensar, concluindo que é o pensamento, em última instância, o fundamento de toda realidade.
     Protágoras já havia dito que “O homem é a medida de todas as coisas”, endossando um relativismo que descambou na Idade Moderna no subjetivismo. Protágoras só está certo se sua fala for deslocada de contexto de uma maneira que se coadune ao princípio antrópico, onde não é o subjetivismo que ordena e unifica o universo, mas onde o “homem como medida de todas as coisas” é, antes, o universo considerado como não apresentando nenhuma hostilidade à existência humana. Segundo o princípio antrópico, se houvesse o mínimo e mais sutil desvio que fosse nas leis que estruturam o universo ou mesmo na estrutura do átomo, o homem não existiria.
 
     "...As estruturas atômicas e moleculares das quais a vida depende requerem um equilíbrio muito delicado, ou um quase-equilíbrio de forças opostas, e que as constantes da Natureza assumam os valores para elas descobertos com uma margem de tolerância quase nula: é como se a distância entre a Terra e a Lua, por exemplo, tivesse que ser a que é com uma precisão tão grande que nem  a distância de um fio de cabelo se lhe pudesse acrescentar."[3]
 
     Se os humanos existem, isso não só era possível como também existe um ajuste fino para que essa possibilidade viesse à existência. “Vemos o universo da maneira como ele é porque, se fosse diferente, não estaríamos aqui para vê-lo”.[4] O Doutor Wolfgang Smith, físico e Ph.D. em matemática pela Universidade de Columbia, assim escreveu em seu livro intitulado A Sabedoria da Antiga Cosmologia sobre o princípio antrópico: “É agora evidente que o cosmos, por alguma razão, foi finamente sintonizado para a recepção da vida, e que até mesmo as partículas que formam o universo provam “importar-se com ela”.[5]
     Mas, uma vez já admitido definitivamente o subjetivismo na modernidade, Kant propôs fazer na Filosofia a mesma revolução que Copérnico fez na astronomia, a qual mudou o eixo de centralidade universal da Terra para o sol. Kant propôs uma “Revolução Copernicana” na Filosofia: o eixo epistemológico deveria se mover do objeto para o sujeito cognoscente. A escola kantiana do subjetivismo e do relativismo epistemológico diz que a verdade não pode ser apreendida; o sujeito está limitado a somente poder capturar as parcas impressões que chegam até ele do objeto fenomênico como formas a priori. A coisa em si permanece, portanto, definitivamente inacessível ao sujeito.
     Se, por exemplo, essa teoria kantiana do conhecimento fosse adotada para se investigar acerca do destino ou do sentido da vida, este livro poderia parar por aqui. Qualquer esforço em busca de uma verdade se tornaria inútil; todas as palavras aqui escritas não passariam de uma corrida de ratos. Tal qual um cachorro que gira sem parar com uma salsicha amarrada no rabo, estaria também essa investigação condenada à perseguição absurda de um objetivo que nunca pode ser alcançado.
     Contudo, a epistemologia apresentada por Kant não se sustenta: Quando são percebidas de um objeto apenas algumas informações que chegam por meio dos sentidos e que são enquadradas em formas a priori, isso não se dá por uma deficiência da percepção, mas em função da estrutura mesma do objeto, que não pode se mostrar em sua inteireza ao sujeito que o observa. Em miúdos, Quando se percebe de um dado com seis faces apenas três de seus lados, isso não se dá em função da incapacidade do sujeito de captar a verdade ontológica do dado, mas porque o próprio dado é incapaz de se mostrar com seus seis lados ao mesmo tempo; se ele o pudesse, não seria um dado, seria uma outra coisa.
     Da mesma forma, não se pode, por exemplo, olhar para uma pessoa e enxergá-la de frente e de costas ao mesmo tempo, assim como ela também não pode ser vista como criança e como velha em uma mesma época. Todas essas limitações não são uma deficiência da percepção do sujeito observador, mas sim do objeto observado, o qual não pode se manifestar em sua inteireza de constituição, muito menos em todos os seus momentos de forma simultânea.
     O que Kant chama de “a coisa em si” só pode ser então a manifestação do ser em todos os seus momentos e em todas as suas perspectiva. Todavia, existir é existir no tempo, e sendo o tempo uma sucessão de momentos, o fato, portanto, de o ser não poder se mostrar em sua inteireza de constituição e momentos não o torna uma verdade inacessível. Ao contrário, é justamente esse aspecto limitador que o caracteriza como um ser existente, essa limitação intrínseca é parte da sua estrutura ontológica. Mais ainda, existir em uma estrutura limitada e com propriedades mutáveis não torna a verdade ontológica do ser inabarcável de forma alguma. A própria existência que se manifesta na temporalidade é em si mesma uma verdade ontológica e metafísica. o ser é. E ser é existir no tempo.
     Olhando por esse prisma, conclui-se que a “coisa em si” de Kant simplesmente não existe! Para que existisse, ela teria que se manifestar no tempo somente e exclusivamente por um único momento e em toda a sua inteireza, vindo, necessariamente, logo após esse momento, a ser riscada para sempre da existência, deixando de existir de uma vez por todas. E isso porque se ela continuasse existindo, haveria então outros momentos em sua existência e, logo, continuação no tempo, o que já determinaria, segundo Kant é claro, que ela não seria mais abarcável. Tal existência momentânea e fugaz, que surge e logo se torna um nada é impossível, porque tudo que uma vez vem à existência nunca mais é riscado dela, o ser nunca mais retorna ao nada.[6]
     Dito isso, anote-se agora que, embora o objeto seja limitado em sua aparência fenomenica e isso limite também as percepções do sujeito, isso não significa que seja impossível capturar qualquer verdade que seja do objeto observado. Mais ainda, não significa, em última análise, que os fenômenos que chegam ao sujeito pela percepção sejam falsos. Embora as aparências sejam limitadas pela estrutura formal do objeto, não há impedimento para que cheguem ao sujeito como verdades ontológicas objetivas.
     Um conceito de verdade, profundamente influenciado pelo aristotelismo, foi dado por Tomás de Aquino. Para ele, a verdade é uma correspondência, é a “adequação do pensamento à coisa real” (Adequatio rerum et intellectus). Embora esse conceito tenha se estabelecido como um dos mais célebres sobre o tema, o conceito de verdade como correspondência antecede em muito a Escolástica medieval, ele já permeava as entrelinhas de algumas filosofias pré-socráticas e já estava claramente explícito nas filosofias de Platão e Aristóteles.
     Para fins de investigação filosófica é necessário refinar e apurar um pouco mais o conceito de verdade. A verdade se refrata em diferentes prismas, há a verdade lógica, a verdade metafísica ou ontológica e a verdade moral. Tais distinções são de extrema importância e merecem a máxima diligência para que não aconteçam os tão comuns desencontros objetivos que destroem diálogos, fazendo dois interlocutores discordarem enquanto tratam supostamente do mesmo objeto quando, na verdade, sem que percebam nem saibam, cada um tem uma definição e um conceito diferente do que está sendo tratado.
     A verdade ontológica é a que está presente metafisicamente no objeto determinando o seu ser. Quando a ideia está adequada à verdade do objeto, tem-se a verdade lógica. A verdade moral, por sua vez, é a expressão oral da ideia que se tem na mente, formada a partir da verdade do objeto, é quando o que sai da boca é o mesmo que está no pensamento. Essa classificação remonta à educação clássica, ao que era ensinado nas primeiras universidades da Europa durante o medievo, mais especificamente ao Trivium, que tinha como disciplinas a Lógica, a Gramática e a Retórica. O Quadrivium, por sua vez, tinha como disciplinas a Aritmética, a Astronomia, a Música e a Geometria. Juntos, Trivium e Quadrivium compunham as Sete Artes Liberais. A Doutora e irmã Miriam Joseph Raugh, que escreveu o livro O Trivium: As Artes Liberais da Lógica, da Gramática e da Retórica, assim descreveu a classificação da verdade em sua obra:
 
Três tipos de verdade
 
Verdade metafísica é a conformidade de uma coisa com a ideia desta, primeiramente na mente de Deus e secundariamente na mente dos homens; todo ser tem verdade metafísica.
 
Verdade lógica é a conformidade do pensamento à realidade; seu oposto é a falsidade.
 
Verdade moral é a conformidade da expressão ao pensamento; seu oposto é a mentira.[7]
 
     Na definição de Tomás de Aquino, é o pensamento que tem que se adequar ao objeto e não o contrário e, sendo assim, a verdade não é subjetiva, como de forma revolucionária propôs Kant, mas objetiva! Trezentos anos antes de Cristo, Aristóteles já havia demonstrado e provado a objetividade da verdade em sua obra Metafísica:
 
     "O ser verdadeiro e falso das coisas consiste na união ou na sua separação, de modo que estará na verdade quem considera separadas as coisas que, efetivamente, são separadas e unidas as coisas que, efetivamente, são unidas; ao contrário, estará no erro quem considera que as coisas são contrárias a como efetivamente são. Então, quando temos e quando não temos uma afirmação verdadeira ou falsa? É preciso examinar o que entendemos por isso. De fato, não és branco por pensarmos que és branco, mas porque és branco, nós, que afirmamos isso, estamos na verdade."[8]
 
     Quando duas folhas caem de uma árvore e se juntam no chão a outras duas já caídas, o que se tem são quatro folhas. Ainda que se diga que são sete folhas ou mesmo que se negue que são quatro, não é a opinião que cria a realidade nem a percepção que determina a verdade, mas é o objeto que detém a posse da sua própria verdade ontológica! A realidade se impõe à inteligência e não o contrário. É por isso que “não se deve considerar a verdade como se fosse apenas verdade lógica. Verdade é também um atributo ontológico (por ser ente)”.[9] Nas palavras de Aristóteles, a falsidade é que é relativa, e é relativa à verdade. A verdade no sentido metafísico e ontológico é absoluta, e mesmo que alguma concessão seja esboçada a essa absolutidade, sempre será possível encontrar um terreno firme onde ancorar com segurança:
 
     "De fato, certamente não poderemos dizer que são pares o dois e o três, nem poderemos dizer que erra do mesmo modo quem confunde o quatro com o mil. Se, portanto, eles não erram do mesmo modo, é evidente que um dos dois erra menos e que está mais na verdade. Ora, se estar mais na verdade quer dizer próximo da verdade, deverá também haver uma verdade – absoluta –, acerca da qual o que está mais próximo é também mais verdadeiro. E mesmo que não exista essa verdade absoluta, existe pelo menos algo seguro e mais verídico e, portanto, seremos libertados dessa intransigente doutrina, que veta à mente determinar qualquer coisa."[10]
 
     Levando-se em conta que a Bíblia fala em Gênesis que foi Deus quem pensou a realidade e a verbalizou trazendo à existência aquilo que não existia, tem-se que somente em Deus a verdade é subjetiva, pois quando ele pensou uma árvore, ele trouxe à existência uma árvore, sendo a verdade ontológica da árvore a correspondência entre seu ser e aquilo que Deus pensou dela. É o que o apóstolo João escreveu na abertura de seu Evangelho, se referindo a Deus como o Verbo, do grego Logos: “No princípio era o Verbo.” (João 1:1). Como se lê no livro Cosmos e Transcendência:
 
     "Quem consegue entender uma palavra não só antes de ela ser pronunciada, mas ainda antes de se formarem no pensamento os sons imaginários dela, já vislumbrou uma semelhança daquele Verbo do qual se diz: No princípio era o Verbo."[11]
 
     Quando o subjetivismo diz que é a ideia que cria a realidade, está transformando homens em deuses, plantando o conceito dominante no mundo moderno: o antropocentrismo.
     A verdade, além de ser una — incompatível com a dualidade —, é também universal e atemporal, sendo que dois mais dois são quatro, e não sete nem nove, em qualquer país e em qualquer parte do universo, independentemente do sistema de educação utilizado, e isso, desde muito tempo, passando pelas idades Antiga e Medieval; para ser mais exato, desde a eternidade. É justamente a atemporalidade da verdade que faz doer os tímpanos dos progressistas que pregam que a história caminha de estados menos sofisticados para estados cada vez mais evoluídos, tornando estes últimos não só preferíveis, mas também superiores aos anteriores, taxando quem deles discorda, com explícita intenção pejorativa, de conservadores, medievais, antiquados e retrógrados. Ora, esquecem-se os progressistas de que a verdade é conservadora e imutável! Se Adão tropeçasse no Jardim do Éden, ele cairia um tombo, muito antes de Newton descrever a lei da gravidade!
 
     "Essa dificuldade deve-se, em parte, à teoria progressista da história vastamente predominante, com sua crença de que o ponto mais avançado no tempo representa o ponto de maior desenvolvimento, auxiliada, sem dúvida alguma, por teorias da evolução que sugerem às pessoas sem critério uma espécie de passagem necessária do simples ao complexo."[12]
 
     O evolucionismo se coaduna muito bem ao progressismo, porque se tudo está em constante evolução, então a verdade não pode ser apreendida. No momento em que se começa a descrever um objeto e enunciar uma verdade acerca dele, ele já deixou de ser o que era e se tornou em outra coisa. Essa evolução acontece simultaneamente à expressão da verdade; assim, antes mesmo que a expressão verbal possa ser concluída, a verdade que estava sendo enunciada já se tornou obsoleta. O evolucionismo nega o atributo da eternidade à verdade ao mesmo tempo em que a decepa e a torna impossível. As origens desse pensamento são muito anteriores ao darwinismo, muito mesmo. As raízes podem ser encontradas na filosofia pré-socrática, tanto que Aristóteles já tratava desse problema em sua Metafísica:
 
     "...vendo que toda a realidade sensível está em movimento e que do que muda não se pode dizer nada de verdadeiro. Eles concluíram que não é possível dizer a verdade sobre o que muda, pelo menos que não é possível dizer a verdade sobre o que muda em todos os sentidos e de todas as maneiras. Dessa convicção derivou a mais radical das doutrinas mencionadas professada pelos que se dizem seguidores de Heráclito e aceita também por Crátilo. Este acabou por se convencer de que não deveria nem sequer falar, e limitava-se simplesmente a mover o dedo, reprovando até mesmo Heráclito por ter dito que não é possível banhar-se duas vezes no mesmo rio; Crátilo pensava não ser possível nem mesmo uma vez."[13]
 
     A verdade é também íntegra e indivisível, não havendo meias verdades, tanto que até a própria mentira, para surtir seus efeitos, tenta ao máximo se aproximar da verdade. Uma mentira só é aceita se for formulada como verossímil. É assim com cédulas falsas de dinheiro, elas não são feitas de ferro, nem de massa de pão, tampouco de vidro, mas aproximadas o máximo possível de uma cédula verdadeira, tanto nas inscrições quanto nos valores e nos matérias gráficos utilizados. Foi assim quando Satanás tentou Jesus no deserto: ele citou a Bíblia, citou a verdade, mas fez desvios muito sutis para tentar levar Jesus ao engano. A mentira não se apresenta de forma escancarada, se exibindo ou se evidenciando, ela precisa se parecer com a verdade. Se preciso for, para que uma mentira seja aceita como verdade, chega-se ao ponto de serem usadas dez frases verdadeiras para só então, na décima primeira, uma mentira ser introduzida e ser desferido o golpe mortal. Por estar a mentira sempre disfarçada de verdade, ela é facilmente imperceptível, tamanha a sutileza com que ela se apresenta e é oferecida. As piores mentiras e os maiores enganos são os que estão mais próximos da verdade, têm aparência de verdade e arrastam multidões atrás delas.
 
SEGUNDO O PROFESSOR ORLANDO Fedeli, dizer que a verdade não existe é o maior argumento que alguém pode oferecer em favor da verdade. Toda e qualquer afirmação ou é falsa ou é verdadeira. É impossível uma firmação ser verdade e mentira ao mesmo tempo, porque isso seria um erro lógico, colidiria com o princípio da não-contradição: algo não pode ser e não ser ao mesmo tempo e sob o mesmo aspecto! Ao dizer-se “a verdade não existe” e analisar-se essa frase, verifica-se que, se ela for verdadeira, então eis aí a única coisa que o homem pode tocar com certeza, o único terreno firme onde pode caminhar, eis aí a única verdade absoluta, mas eis aí também, junto a essa verdade absoluta, a fatal conclusão de que, de fato, a verdade existe. Mas, se por outro lado a frese for falsa, então a afirmação contraditória a ela é verdadeira; como a negação de uma negação é uma afirmação, chega-se também fatalmente à conclusão de que a verdade existe! Tomás de Aquino já havia proposto essa demonstração de modo muito simples, sugerindo que a reação ao se ouvir alguém negando a verdade deveria ser chamá-lo de mentiroso e, diante da má reação e da resposta que se ouviria do negacionista, evidenciar então a prova de que, enfim, a verdade existe.[14]
 
     "Todas essas doutrinas caem no inconveniente de se destruírem a si mesmas. De fato, quem diz que tudo é verdadeiro [...] assume também como verdadeira a tese oposta à sua; do que se segue que a sua não é verdadeira (dado que o adversário diz que a tese não é verdadeira). E quem diz que tudo é falso diz que é falsa a tese que ele mesmo afirma. E mesmo que queiram admitir exceções, um dizendo que tudo é verdadeiro exceto a tese contrária á sua, o outro que tudo é falso exceto própria tese, serão obrigados a admitir infinitas proposições verdadeiras e falsas. Com efeito, quem diz que uma proposição verdadeira é verdadeira, afirma outra proposição verdadeira, e assim ao infinito."[15]
 
     Negar a existência metafísica da verdade é um argumento ps cornuto, uma frase suicida, autodestrutiva, e quem nela se atola não tem para onde fugir, não há saída, quem comete a tolice de enunciar que a verdade não existe se comporta como uma mosca presa a uma teia de aranha, quanto mais tenta escapar, mais enredada fica. Nas duas pontas desse dilema a verdade existe, reinando absoluta e soberana; as duas pontas do dilema levam fatalmente à conclusão de que a verdade existe. Mesmo um livro ou uma sentença que nega a existência da verdade tem como seu objetivo último ensiná-la, tem o firme propósito de apresentar-se como uma verdade digna de credibilidade.
     No mesmo resultado chega o relativismo que nega a existência da verdade absoluta. O relativismo está na mesma linha que afirma que “o homem é a medida de todas as coisas”, que em outras palavras quer dizer “cada cabeça, uma sentença”. Ora, quando se diz que algo é relativo, esse algo precisa ser relativo a alguma coisa, a algum ponto, porém esse ponto com a qual todo o resto se relaciona precisa, necessariamente, ser fixo, o que acaba fatalmente tornando-o também absoluto. Sendo a verdade do objeto um atributo ontológico e absoluto, o ponto fixo e absoluto não está no pensamento, mas sim no objeto. A verdade não é relativa ao pensamento, não é, definitivamente, a ele subordinada. O objeto é proprietário da verdade e a verdade ontológica é propriedade do objeto.
     Quando se é dito que a verdade é relativa, a única verdade dessa afirmação reside no processo de verificação entre a verdade lógica relativamente à verdade ontológica, metafísica. É a verdade lógica que permite identificar a falsidade lógica, justamente quando não há adequação entre o pensamento e a verdade ontológica do objeto. É pela relação pensamento x objeto que se chega ao conceito de falsidade: a inadequação do pensamento à verdade do objeto. Assim, a verdade só é relativa quando o objeto é considerado como o ponto fixo e absoluto com o qual os juízos lógicos se relacionam. A relatividade somente se aplica quando se verifica se o pensamento está adequado em relação ao objeto, ou seja, quando se avalia se a verdade lógica está adequada com a verdade ontológica. A falsidade reside justamente no descompasso entre o pensamento e o objeto, reside sempre no pensamento do sujeito, nunca no ponto absoluto fixado no objeto. Essa rigidez absoluta do objeto implica uma grande verdade metafísica: O ser nunca é falso, o ser é sempre verdadeiro!
     Mesmo uma nota de dinheiro falsa é falsa, tem em si o ser falsa, e quando alguém é por ela enganado cometendo a inadequação de tê-la como verdadeira, a nota falsa não se torna uma falsidade em si, ela é uma nota falsa, ou seja, ela é verdadeiramente uma nota falsa, é ainda um ser, um ser uma nota falsa. A falsidade reside no erro lógico do sujeito a quem cabe a adequação, em quem trata a nota falsa como não-falsa, em quem a trata como uma nota válida para realizar operações financeiras e comerciais. Como se lê em Ontologia e Cosmologia:
 
     "Pode haver falsidade em dizer que isto é isto, ou aquilo, mas não há falsidade, nisto, em ser isto, nem em aquilo ser aquilo, pois o ser ontológico do que é, é sempre verdadeiro, embora os nossos juízos possam ser inadequados ao que dele predicamos, o que seria apenas uma falsidade lógica. O ser nunca é falso, a falsidade é apenas lógica; o ser é sempre eminentemente verdadeiro."[16]
 
     Considerando-se então que o ser é sempre verdadeiro e que o descompasso entre o pensamento e o objeto é a falsidade lógica, que reside sempre no sujeito e nunca no objeto, tem-se agora que a mentira difere da falsidade especificamente por ser ela o oposto da verdade moral, não da verdade lógica. Ou seja, a falsidade é sempre lógica, a mentira é sempre moral. Se a verdade moral é a verbalização daquilo que está na ideia, a mentira é saber, conhecer, sentir uma coisa e falar outra. A mentira é tanto uma verbalização quanto uma intenção deliberada de injetar no discurso o descompasso com a ideia.
     Essa distinção reforça ainda mais a rigidez que possui a verdade metafísica. Esta não pode ser contaminada pela falsidade lógica do sujeito: quando o sujeito erra ao adequar o pensamento ao objeto, ele comete um erro lógico e a falsidade reside apenas em seu pensar, não atingindo em nada a verdade ontológica do objeto. O mesmo não acontece com o discurso, ele pode ser contaminado, e é contaminado justamente porque a verdade ontológica não o pode. Ao mentir, o sujeito detém a verdade lógica no pensamento e deliberadamente injeta no discurso uma dissonância, nascendo assim a mentira. A verdade moral depende sempre do compromisso moral integral do sujeito que a verbaliza e está o tempo todo à mercê desse compromisso, carregando em si uma fragilidade que é proporcional à integridade moral do sujeito. Por sua vez, a verdade metafisica não pode ser compelida por ninguém, é sempre objetiva, absoluta e imutável. Ainda que o discurso transmutado em mentira se volte contra a verdade ontológica, a sua armadura metafísica é tão rígida e impenetrável que nada a poderá nem sequer arranhar; fragilidade é um adjetivo que ela desconhece. O máximo que se conseguirá fazer é tornar mais evidente a rebeldia, a soberania, a autonomia e a independência da verdade metafísica em relação a qualquer discurso, a qualquer sujeito observador.
     Quando Jesus falou “seja, porém, o vosso falar: sim, sim; não, não; porque o que passa disto é de procedência maligna.” (Mateus 5:37), era sobre a verdade moral que ele estava falando. O “sim”, a afirmação, portanto, é sempre um compromisso moral integral que o ser assume, assim como também o “não”, a negação, pois ela é também uma positividade, uma afirmação. A mentira é sempre um erro moral, não lógico, quem verbaliza uma coisa enquanto pensa outra, sabe dentro de si que está mentindo, que está enganando. A mentira é, pois, sempre deliberada, diferente da falsidade lógica, na qual o ser pode estar enganado, pode estar em um descompasso acidental e involuntário com a verdade ontológica do objeto, e verbaliza aquilo que ele pensa ser a verdade, mas sem nenhuma intenção de mentir ou enganar. É justamente na intencionalidade da mentira que reside o seu aspecto diabólico. Além de Jesus ter dito “o que passa disto é de procedência maligna”, ele ainda disse referindo-se ao próprio Satanás: “Quando ele profere mentira, fala do que lhe é próprio, porque é mentiroso, e pai da mentira.” (João 8:44). Mas o que denuncia mais enfaticamente a degradação moral e a familiaridade com o  mal naquele que profere a mentira está na fala  de Jesus quando ele diz “Vós tendes por pai ao diabo”.
     A verdade absoluta, portanto, deve ser sempre procurada no ser ontológico porque ela é um ser. Não é no discurso que a verdade absoluta deve ser procurada porque, embora exista a verdade moral, ela é discursiva, e não tem uma estrutura apodítica que a torne imune à mentira. Já a verdade metafísica é sempre verdade, nunca podendo ser atingida nem pela falsidade lógica nem pela mentira discursiva. Por isso, a verdade não é um pensamento, não é um discurso, não é um raciocínio, um tratado, um compêndio, uma teoria ou um silogismo, antes, ela é pessoal, ela é um ser, tem um caráter ontológico. Daí Jesus ter dito “Eu sou a Verdade”. (João 14:6)
     A verdade metafísica não pode ser abarcada em um discurso universal, em uma “teoria de tudo”, porque ainda que haja o compromisso moral de se dizer somente o que se está na ideia e que toda a construção mental seja correspondente à verdade do objeto mesmo, a verdade metafísica ainda assim permaneceria com seu caráter ontológico, ainda existiria para além do discurso e do pensamento. Ou seja, a verdade moral é sempre um compromisso assumido pelo sujeito, a verdade lógica é sempre uma relação sujeito-objeto, mas a verdade metafísica é absoluta e tem existência em si mesma, ela não pode ser algemada, submetida ou aprisionada para se tornar uma propriedade do sujeito cognoscente.
 
O PROBLEMA DAS AFIRMAÇÕES negacionistas está, na maioria das vezes, na fragilidade do uso de argumentos universais como tudo, todo, nada, nenhum. Aqueles que visam à verdade como alvo de suas armas, sempre falham em seus ataques e acabam por se autodestruírem, poupando o trabalho apologético de defesa da verdade. Por isso o que fazem é um ataque por levante, por guerrilha, por batalhas pontuais intermináveis, porque sabem que a guerra está perdida, que nunca atingirão seus objetivos, que quanto mais tentam derrubar a verdade, mais a colocam em evidência e a fortalecem. Construir argumentos e filosofias buscando negar a validade de juízos universais válidos é como serrar o galho onde se está apoiado, se o galho cair, todo o argumento cai junto.
     Quando se é dito “tudo é relativo”, no sentido de “cada cabeça, uma sentença”, querendo dizer que o que é verdade para um pode não ser para todos os demais e que, portanto, não existe nenhum juízo universalmente válido, essa afirmação tem de ser, necessariamente, aplicada a si mesma. Quando isso é feito, a afirmação “tudo é relativo” também acaba sendo necessariamente relativa, pois o “tudo” abarca também essa afirmação, e sendo ela relativa, então nem tudo é relativo, admite-se exceções, sendo ela mesma a principal exceção. A própria relatividade da verdade se torna relativizada. Mas, se de outra forma essa afirmação é absoluta e não pode se relativizada, então ela se autodestrói, pois nem tudo é relativo e ela é a única verdade absoluta que não pode ser relativizada, estaria nela então o único juízo universalmente válido a “todas as cabeças”.
     Outro exemplo da implosividade dos universais é a afirmação “toda regra tem exceção”. Essa afirmativa tira de qualquer regra ou afirmação o seu caráter absoluto e definitivo, conferindo a ela uma disposição intrínseca a fazer concessões. Mas, se toda regra tem exceção, isso inclui essa mesma afirmação, essa mesma regra, fazendo com que ela mesma admita exceções e, se ela admite exceções, então algumas regras não têm exceções. Ou a frase “toda regra tem exceção” é uma regra que se aplica a si própria e se autonega concluindo que nem toda regra tem exceção, ou ela não se aplica a si própria e se transforma na única regra que não tem exceção. De uma forma ou de outra, a afirmação se autoimplode.
     Como já dantes observado, não é necessário estender muito a lista de exemplos de argumentos autodestrutíveis porque eles mesmos dispensam a empreitada de desmontá-los, eles já carregam consigo mesmos o germe de suas próprias falências. O apologeta, nesse combate, pode abrir sua cadeira, refrescar-se com sua água, erguer os pés em descanso e apenas observar os inimigos caindo, um a um, vítimas de fogo amigo. Tais argumentos são como soldados que puxam os pinos de suas granadas e as deixam explodir em suas próprias trincheiras. Quando o apóstolo Paulo escreveu “Porque nada podemos contra a verdade, senão pela verdade” (II coríntios 13:8), era sobre a apoditicidade, a indestrutibilidade da verdade que ele falava. Já sabia o apóstolo que qualquer ataque contra a verdade acabaria por se reverter inevitavelmente em um argumento involuntário a favor da própria verdade.

 

CITAÇÕES E NOTAS:

 

[1] Aristóteles. Metafísica. Livro IV (Gamma) Capítulo 5, 1039 a, 8-10.

 

[2] Ibidem. Capítulo 4, 1008 b 29-32.

 

[3] Smith, Wolfgang. A Sabedoria da Antiga Cosmologia. Tradução de Adriel Teixeira, Bruno Geraidine e Cristiano Gomes. Campinas-SP: Vide Editorial, 2017. Pág. 315.

 

[4] Hawking, Stephen. Uma Breve História do Tempo, do Big Bang aos Buracos Negros. Lisboa: Gradiva, 3º edição, 1994. Pág. 180.

 

[5] Wolfgang, Wolfgang. Opus Citatum. Pág. 320.

 

[7] Joseph, Miriam. O Trivium: As Artes Liberais da Lógica, Gramática e Retórica: Entendendo a Natureza e a Função da Linguagem.

Tradução e adaptação de Henrique Paul Dmyterko. São Paulo-SP: É Realizações, 2008. Pág. 131.

 

[8] Aristóteles. Opus Citatum. Livro IX (theta), capítulo 10, 1051 b 1-9.

 

[9] Santos, Mário Ferreira dos. Ontologia e Cosmologia - A Ciência do Ser e a Ciência do Cosmos. 4ª Edição. São Paulo-SP: Livraria e Editora Logos, 1964. Pág. 45.

 

[10] Aristóteles. Op. Cit. Livro IV (Gamma) Capítulo 5, 1008 b, 32-38; 1009 a 1-6.

 

[11] Smith, Wolfgang, Cosmos e Transcendência: Rompendo a Barreira da Crença Cientificista. Tradução de Percival de Carvalho. Campinas-SP: VIDE Editorial, 2019. Pág. 81.

 

[12] Weaver, Richard M. As Ideias Têm Consequências. Tradução de Guilherme Ferreira Araújo. São Paulo-SP: É Realizações, 2016. Pág. 13.

 

[13] Aristóteles. Opus Citatum. Livro IV (Gamma) Capítulo 5, 1010 a 5-15.

 

[14] A aula completa pode ser vista no Youtube sob o título: O problema da verdade (Orlando Fedeli) – MONFORT, no seguinte link:
 https://www.youtube.com/watch?v=NXVMNjA83KU. Ou ainda no site
 www.legadomonfort.com.br.

 

[15] Aristóteles. Opus Citatum. Livro IV (Gamma), capítulo 8, 1012 a, 13-20; 1012 b 20-22.

 

[16] Santos, Mário Ferreira dos. Opus Citatum. Pág. 47, 48.

    

Diogo Mateus Garmatz
Enviado por Diogo Mateus Garmatz em 28/12/2019
Reeditado em 11/04/2023
Código do texto: T6828977
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