HEROÍNAS DE MANGÁS E ANIMÊS (3): HOJO KURIKO
HEROÍNAS DE MANGÁS E ANIMÊS (3) HOJO KURIKO
Miguel Carqueija
Texto escrito para uma lista de discussão, já faz muito tempo, mas que conservei impresso e faz pouco localizei casualmente nos meus papéis:
Agora que terminei de assistir “Shangri-La” vou falar mais alguma coisa sobre este animê recente e de excelente qualidade.
Como ficção científica chega a ser grandioso, embora eu faça restrições ao fato de ter como público-alvo os adolescentes (o que fica evidente pela suavidade dos traços, sem o realismo cru de desenhos adultos (nota em 27/12/2019: mesmo sendo suaves os traços dos personagens, a história é realmente adulta) e mesmo assim entrar em assuntos sexuais sem que esse público esteja maduro para as abordagens (a presença marcante de dois travestis; por sinal personagens simpáticos e que alinham com os heróis; além de uma vilã lasciva e perversa e uma meia-vilã (porque acaba se redimindo) sádica e torturadora).
Entretanto o verdadeiro eixo dessa epopeia de um futuro decadente, onde a população japonesa vive quase toda na miséria e uma elite ocupa uma cidade-fortaleza chamada Atlas, é Hojo Kuriko, a heroína virginal e idealista de 15 anos, e seu confronto com a ditadora de Atlas, Narase Ryoko, e o sistema Zeus (uma inteligência artificial que controla Atlas) e seu plano de destruir o mundo colocando um monstro virtual “haker”, a Medusa, para penetrar nos sistemas nucleares dos Estados Unidos, disparar os mísseis e lançar sobre a Terra o inverno nuclear. O sinistro objetivo da lública Ryoko é tão insano assim, já que ela considera o mundo grande demais para controlar e se contenta em controlar o mundo fechado de Atlas.
Kuriko, pequena, ruiva e com aspecto quase infantil, porém rija, corajosa, ágil e sem medo da morte (mesmo diante de armas de fogo) evolui ao longo de um entrecho envolvente, de ex-presidiária numa instituição correcional de meninas (onde ela fôra parar ao assumir a culpa no lugar de uma amiga) a líder guerrilheira da comunidade Doumo e da organização “Era do Metal”, até chegar aos capítulos finais, à condição messiânica de salvadora da raça humana e do planeta Terra.
Em Doumo, como em outros lugares do Japão — um Japão tomado por uma vegetação venenosa e incontrolável, produzida por manipulação genética a partir de Atlas — vive-se mal, com péssima comida, casas mal construídas e severamente atingidas pelo granizo que cai violentamente na ilha. O mundo está transformado — transtornado — climaticamente.
Kuriko faz o possível para proteger a população mas, finalmente, terá de enfrentar a inimiga maior. Ryoko nem é um ser humano: é uma interface de Zeus ocupando um corpo humano, mas dotada de poderes sobre-humanos. Há nisso um caráter altamente simbólico: que a monstruosidade tem forma humana.
Uma parcela importante da trama gira em torno de Karin, uma menina que foi isolada numa torre onde, como gênia “haker” que é, controla o programa Medusa de sua invenção, com o qual penetra em sistemas financeiros e os derruba como quer na “brincadeira” de ficar rica, sem saber que é manipulada por Atlas; e quando a Medusa foge de seu controle,ataca o sistema de defesa nuclear dos EUA, colocando o mundo em xeque-mate, à beira do inverno nuclear que destruirá a humanidade e as espécies animais e vegetais. A guerra se desenrola em vários níveis; no nível virtual Karin, conscientizada por Kuriko, agora luta para “hakear” a Medusa e retomar o seu controle; enquanto isso Kuriko e seus amigos lutam dentro de Atlas mas na batalha final ela se verá sozinha para enfrentar a poderosa Ryoko.
Embora a descrição possa fazer pensar em simples maniqueísmo a definição das duas personagens e várias outras da história (Momoka, Sayoko, Karin são personagens extraordinariamente definidos e marcantes) é sensacional. Kuriko, de sentimentos puros, destemida, determinada, altruísta e generosa, é a antítese de Ryoko, cruel, lúbrica, debochada e manipuladora, e sem nenhum amor para com a humanidade (afinal, ela nem é humana). Mas a diferença entre as duas vai mais além, incide em escolhas opostas: a favor da vida integral ou pela cultura da morte. Revela-se que, em verdadeira tecnomagia, a criação de Atlas valeu-se, no passado antes do nascimento de Kuriko, de sacrifícios humanos, de crianças, para “estabilizar” a construção. Algo que faz lembrar o romance “Salambô”, de Gustave Flaubert, onde os cartagineses acreditavam que deviam sacrificar crianças ao “deus” Moloch.
Assim, num entrecho de fato emocionante, a trama se encaminha para o confronto da pró-vida Kuriko com a anti-vida (ou culturista da morte) Ryoko, no capítulo 24 (final) do seriado. E a sequência dramática é precedida pelo admirável discurso que Kuriko pronuncia:
“Tenho coisas a proteger: pessoas, lugares e o futuro! Tu zombas destes sentimentos. Mas vou derrotar-te... em nome de todos aqueles a quem eu amo!”
Detalhes como esse, frases significativas e contundentes, reveladoras de fortes opções, perpassam mangás e animês de alta qualidade e justificam a sua criação.
“Shangri-La” — seriado japonês de animação do Estúdio Gonzo, produzido em 2009, com 24 episódios dirigidos por Makoto Bessho e escritos por Hiroshi Ônogi. Com base em novela de ficção cientifica assinada por Eiichi Ikegami (2004). Existe também o mangá em dois volumes, escrito pelo mesmo Ikegami e ilustrado por Tasuku Karasuma
Rio de Janeiro, digitado em 27/12/2019. Escrito em data incerta, anos atrás.
HEROÍNAS DE MANGÁS E ANIMÊS (3) HOJO KURIKO
Miguel Carqueija
Texto escrito para uma lista de discussão, já faz muito tempo, mas que conservei impresso e faz pouco localizei casualmente nos meus papéis:
Agora que terminei de assistir “Shangri-La” vou falar mais alguma coisa sobre este animê recente e de excelente qualidade.
Como ficção científica chega a ser grandioso, embora eu faça restrições ao fato de ter como público-alvo os adolescentes (o que fica evidente pela suavidade dos traços, sem o realismo cru de desenhos adultos (nota em 27/12/2019: mesmo sendo suaves os traços dos personagens, a história é realmente adulta) e mesmo assim entrar em assuntos sexuais sem que esse público esteja maduro para as abordagens (a presença marcante de dois travestis; por sinal personagens simpáticos e que alinham com os heróis; além de uma vilã lasciva e perversa e uma meia-vilã (porque acaba se redimindo) sádica e torturadora).
Entretanto o verdadeiro eixo dessa epopeia de um futuro decadente, onde a população japonesa vive quase toda na miséria e uma elite ocupa uma cidade-fortaleza chamada Atlas, é Hojo Kuriko, a heroína virginal e idealista de 15 anos, e seu confronto com a ditadora de Atlas, Narase Ryoko, e o sistema Zeus (uma inteligência artificial que controla Atlas) e seu plano de destruir o mundo colocando um monstro virtual “haker”, a Medusa, para penetrar nos sistemas nucleares dos Estados Unidos, disparar os mísseis e lançar sobre a Terra o inverno nuclear. O sinistro objetivo da lública Ryoko é tão insano assim, já que ela considera o mundo grande demais para controlar e se contenta em controlar o mundo fechado de Atlas.
Kuriko, pequena, ruiva e com aspecto quase infantil, porém rija, corajosa, ágil e sem medo da morte (mesmo diante de armas de fogo) evolui ao longo de um entrecho envolvente, de ex-presidiária numa instituição correcional de meninas (onde ela fôra parar ao assumir a culpa no lugar de uma amiga) a líder guerrilheira da comunidade Doumo e da organização “Era do Metal”, até chegar aos capítulos finais, à condição messiânica de salvadora da raça humana e do planeta Terra.
Em Doumo, como em outros lugares do Japão — um Japão tomado por uma vegetação venenosa e incontrolável, produzida por manipulação genética a partir de Atlas — vive-se mal, com péssima comida, casas mal construídas e severamente atingidas pelo granizo que cai violentamente na ilha. O mundo está transformado — transtornado — climaticamente.
Kuriko faz o possível para proteger a população mas, finalmente, terá de enfrentar a inimiga maior. Ryoko nem é um ser humano: é uma interface de Zeus ocupando um corpo humano, mas dotada de poderes sobre-humanos. Há nisso um caráter altamente simbólico: que a monstruosidade tem forma humana.
Uma parcela importante da trama gira em torno de Karin, uma menina que foi isolada numa torre onde, como gênia “haker” que é, controla o programa Medusa de sua invenção, com o qual penetra em sistemas financeiros e os derruba como quer na “brincadeira” de ficar rica, sem saber que é manipulada por Atlas; e quando a Medusa foge de seu controle,ataca o sistema de defesa nuclear dos EUA, colocando o mundo em xeque-mate, à beira do inverno nuclear que destruirá a humanidade e as espécies animais e vegetais. A guerra se desenrola em vários níveis; no nível virtual Karin, conscientizada por Kuriko, agora luta para “hakear” a Medusa e retomar o seu controle; enquanto isso Kuriko e seus amigos lutam dentro de Atlas mas na batalha final ela se verá sozinha para enfrentar a poderosa Ryoko.
Embora a descrição possa fazer pensar em simples maniqueísmo a definição das duas personagens e várias outras da história (Momoka, Sayoko, Karin são personagens extraordinariamente definidos e marcantes) é sensacional. Kuriko, de sentimentos puros, destemida, determinada, altruísta e generosa, é a antítese de Ryoko, cruel, lúbrica, debochada e manipuladora, e sem nenhum amor para com a humanidade (afinal, ela nem é humana). Mas a diferença entre as duas vai mais além, incide em escolhas opostas: a favor da vida integral ou pela cultura da morte. Revela-se que, em verdadeira tecnomagia, a criação de Atlas valeu-se, no passado antes do nascimento de Kuriko, de sacrifícios humanos, de crianças, para “estabilizar” a construção. Algo que faz lembrar o romance “Salambô”, de Gustave Flaubert, onde os cartagineses acreditavam que deviam sacrificar crianças ao “deus” Moloch.
Assim, num entrecho de fato emocionante, a trama se encaminha para o confronto da pró-vida Kuriko com a anti-vida (ou culturista da morte) Ryoko, no capítulo 24 (final) do seriado. E a sequência dramática é precedida pelo admirável discurso que Kuriko pronuncia:
“Tenho coisas a proteger: pessoas, lugares e o futuro! Tu zombas destes sentimentos. Mas vou derrotar-te... em nome de todos aqueles a quem eu amo!”
Detalhes como esse, frases significativas e contundentes, reveladoras de fortes opções, perpassam mangás e animês de alta qualidade e justificam a sua criação.
“Shangri-La” — seriado japonês de animação do Estúdio Gonzo, produzido em 2009, com 24 episódios dirigidos por Makoto Bessho e escritos por Hiroshi Ônogi. Com base em novela de ficção cientifica assinada por Eiichi Ikegami (2004). Existe também o mangá em dois volumes, escrito pelo mesmo Ikegami e ilustrado por Tasuku Karasuma
Rio de Janeiro, digitado em 27/12/2019. Escrito em data incerta, anos atrás.