Um outro retrato da Marta de Páginas da Vida

É frequente que reclamemos de uma ou outra pessoa dizendo que ela é revoltada, amarga e dura. Porém, nada surge espontaneamente. Se uma pessoa é amarga ou revoltada, com certeza foi por bons motivos que se tornou assim. Ela pode ter tido decepções, não ter conseguido realizar seus sonhos, ter sofrido injustiças e muitas outras razões que a fizeram se desiludir com a vida e endurecer seu coração. Não raro elas terminam por descontar(ainda que inconscientemente) os seus problemas em quem nada tem a ver. Podemos ver bons exemplos na vida real. Se analisarmos as vidas de muitos desses delinquentes juvenis, descobriremos histórias tristes, de jovens que foram abusados, espancados e/ou negligenciados. Claro que não se pretende justificar os seus muitos delitos, apenas mostrar que muito dificilmente alguém se torna mau sem motivos.

A partir destas observações, vamos analisar o perfil de Marta, a antagonista de Páginas da Vida, interpretada por Lília Cabral. Durante toda a novela, ela foi apresentada como a mãe vilã e insensível que rejeitou a filha que voltou grávida da Holanda e a neta com Síndrome de Down. Claro que a atitude de Marta para com a neta foi monstruosa e podíamos ver que era difícil conviver com ela. Porém, se você assistir à novela outra vez, pode se perguntar: “Marta era totalmente errada?” Vejamos bem muitos aspectos que não vimos a primeira vez: Marta era quem sustentava a casa, ao passo que Alex era desempregado e aparentemente não ia atrás de emprego. O Alex de Marcos Caruso teve o mérito de ser um pai carinhoso e de ter apoiado a filha ao saber que estava grávida, mas podemos ver bem que não era uma grande ajuda para sustentar a casa. Para Marta, devia ser muito duro ter de arcar com as despesas praticamente sozinha.

Era claramente perceptível que Marta enfrentava dificuldades financeiras e, mesmo assim, fez de tudo para Nanda (sua filha) conseguir ir para a Europa realizar o sonho de estudar História da Arte. E Nanda já não era uma adolescente, tinha conhecimentos de como prevenir uma gravidez. Mas não se preveniu como deveria e engravidou. Ao voltar, qual não deve ter sido o choque de Marta ao ver que a filha tinha voltado com uma barriga enorme? É verdade que ela reagiu com muita violência e não deveria ter expulsado Nanda de casa, entretanto qualquer mãe que, enfrentando dificuldades econômicas, houvesse feito de tudo para que a filha pudesse investir no seu futuro, ficaria decepcionada ao ver que todo o dinheiro e investimento haviam sido desperdiçados. E Nanda não ajudou ao esconder que esperava gêmeos.

Podemos ver bem que, em algum momento de sua vida, Marta foi uma pessoa cheia de esperanças e sonhos, só que a vida os frustrou, o que a tornou uma pessoa dura e amarga. Outro problema era sua inveja da irmã, casada com um homem bem-sucedido. Analisemos também as posturas de Alex, seu marido e de seus filhos. Numa cena, a personagem de Louise Cardoso, ao conversar com seu marido, fala que Sérgio, o irmão de Nanda, parecia não ter nada na cabeça e que nunca vira Nanda batalhar por nada. A irmã de Marta também comentou algumas vezes que Alex era um encostado. Sejamos justos. Para Marta, devia ser muito cansativo aguentar tudo isso. Ninguém também pode lhe tirar o direito de sentir raiva ao ver que Nanda desperdiçara a chance que recebera de estudar na Europa. Nanda até chegou a dizer a Marta que procuraria emprego após dar à luz, mas a atitude da personagem dá bem a entender que ela não o faria. O mais provável seria – se ela depois não houvesse morrido por causa do trágico acidente – que Marta tivesse de sustentar sozinha mais duas bocas.

Entender Marta não diminui os seus muitos erros como o de ter sido cruel com Nanda, acusando-a de dar o golpe da barriga e de dizer que sua neta com Síndrome de Down morrera. Apenas se está tentando mostrar que ela com certeza sofreu muito e que a crueldade que a caracterizava tinha uma causa. Há muitos personagens amargos que nos mostram o quanto o sofrimento pode transformar uma pessoa, tornando-a irreconhecível. Teteriev, o cantor bêbado da peça Pequenos Burgueses de Gorki, é um homem amargo e niilista. Podemos ver que ele tinha sonhos, mas foi frustrado e alquebrado pela vida. Odeia a tudo e todos e tem sempre palavras ácidas na ponta da língua. Outra personagem bastante amarga é Maria Rosa, de O feijão e o sonho. Ela desconta todas suas frustrações nos filhos e só a entendemos melhor ao ver como seu marido, Campos Lara, é inerte para prover as necessidades da família, chegando ao ponto de gastar quase todo seu ordenado em uma estatueta de marfim quando a filha precisava de um xarope para a tosse. Quando o livro mostra o começo do namoro dos dois, vemos que Maria Rosa era uma jovem cheia de vida e de esperanças.

Enfim, precisamos entender que tudo tem razões profundas e que não podemos simplesmente julgar uma pessoa, acusando-a de ser revoltada e amarga. Se ela é assim, talvez a entendamos melhor após conhecermos bem sua história.