A época do Fantasma
A ÉPOCA DO FANTASMA
Miguel Carqueija
Continuarei aqui a discussão sobre as revistas de super-heróis e todo esse universo complexo e que acabou se tornando este pesadelo de violência e ódio dos nossos dias, tanto nas telas como nas bancas.
Nem sempre foi desse jeito mesmo que as “sementes de violência” já estivessem plantadas de há muito.
Falemos do Fantasma, criado por Lee Falk em 1934, nos Estados Unidos. Não confundam, por favor, Lee Falk com Stan Lee, que muitos anos depois criou o Hulk, o Homem Aranha e muitos outros personagens.
Veja-se que o Fantasma (cognominado “O Espírito-que-anda”) é anterior ao Super-Homem, criado em 1938 e que muita gente dá erradamente como o primeiro dos super-heróis. Além do Fantasma, Lee Falk criou pela mesma época o mágico Mandrake. Todavia, no Japão já existia o Fantomas; e o Tarzan, surgido primeiramente nos romances de Edgar Rice Burroughs, é ainda mais antigo.
Não sendo figura dos universos DC ou Marvel, o Fantasma, junto com o Mandrake, sempre correu por fora. E se examinarmos muitas de suas histórias veremos que, nelas, havia ingenuidade e conteúdo. O Espírito-que-anda não enfrentava monstros alienígenas, mas criminosos comuns ou até incomuns, porém claramente humanos. Talvez por isso ele acabou saindo da mídia, não se enquadrando no predomínio do teratológico e brutal que a gente vê hoje em dia nos super-heróis.
Lembro ainda de algumas histórias que li no passado, em geral nas tirinhas diárias que saíam no jornal “O Globo” e que ocupavam uma página inteira dividida em duas meias-páginas. Cada meia-coluna tinha, creio, mais de dez tirinhas de séries diversas. Meu pai trazia o jornal diariamente ao chegar do trabalho e eu lia avidamente as HQ’s, especialmente as de super-heróis: Super-Homem, Mandrake, Fantasma, Tarzan e Flash Gordon.
Uma das histórias do Fantasma abordava, já naquele tempo, o difícil tema do “bullying”.
O Fantasma é uma figura muito conhecida, na verdade uma sucessão de heróis. O original, um homem que, vítima de piratas, fez o juramento da caveira, de combater sempre os piratas, e assim também os seus descendentes. Esse tipo de heroísmo patético era bem aceito, e o Fantasma das histórias fingia ter 400 anos (a essa altura teria 500). Isso porque os nativos da África, equivalentes aos nossos índios, tinham sobre ele crenças supersticiosas. Cada um dos fantasmas estimulava isso e, curiosamente, ao que prece sempre nascia um único filho homem, que mantinha a lenda. E praticamente nada se fala nas esposas. A história era paternalista em relação aos negros da África: apareciam cidades habitadas por brancos; os negros eram de tribos selvagens e esses mesmos, menos importantes que os pigmeus amigos do Fantasma. E os pigmeus são considerados outra etnia. Era recorrente naqueles tempos (primeira metade do século 20 e parte da segunda metade) a figura do herói ou da heroína branca em terra de negros: Tarzan, Jim das Selvas, Nyoka, Sheena. E, claro, o Fantasma. Mas eram histórias “made in USA”. Com certeza nos países africanos existe ficção com heróis locais, mas não os conhecemos.
Na história referida vemos como um menino de óculos, que morava somente com a mãe, uma senhora humilde e de poucas posses, começa a ser perseguido pelo valentão da classe. Apanha, tem seus óculos quebrados várias vezes e não tem coragem de contar em casa o que lhe sucedia. Até que um dia, não aguentando mais, foge de casa, deixando um bilhete, e se interna na selva.
É claro que vai ser encontrado pelo Fantasma, que vai então cuidar do caso. Faz com que o menino escreva para casa, tranquilizando sua mãe, e com a ajuda dos pigmeus o vai treinando. Então o garoto acostumado com o protecionismo da mãe (que, por exemplo, nunca o deixava andar descalço) vai se tornando forte e corajoso. O final é compreensível: ele retorna para a mãe e para a escola e na primeira oportunidade sova o rufião. Até repetindo palavras do Fantasma. E este, com seu disfarce para andar na cidade, assistiu à briga e depois cumprimentou seu protegido. “Acha que eu ia perder?”
Em outra história interessante, um bandido descobre um gigante talvez com dois metros e meio de altura, creio que exibindo-se num circo, e que portava uma clava assustadora. Ele o contrata como capanga. O Fantasma acaba se atravessando no caminho e tendo que enfrentar o gigante. O próprio herói, impressionado apesar de lutar muito bem e possuir força descomunal, pensa com seus botões: “Nunca vi um homem tão grande”. Mas depois de receber o primeiro soco o sujeito desmonta, se ajoelha e pede misericórdia. Chorando, ele confessa ao Espírito-que-anda: era grande e metia medo em todo mundo sim, mas era covarde e fraco, e não aguentava apanhar. Espantado, o Fantasma pergunta: “Mas e a clava?” Então ele pega o objeto e comenta: “É de balsa. É leve como uma pluma!” A balsa é um tipo de madeira muito leve, serve bem para pequenas embarcações por ser flutuante. Mais tarde, já preso, o chefe dos bandidos pergunta ao pobre gigante inofensivo: “Por que você não me disse que era fraco?” “Eu tive vergonha!”
Numa outra história dois grandalhões arruaceiros (não tão grandes como o gigante mencionado), creio que irmãos (anotando que estou mencionando tudo de memória e já fazem décadas que li tais quadrinhos) são presos e obrigados pelo xerife local a acompanharem um cientista numa expedição selva a dentro, em busca de borboletas. Os dois gajos vão de má vontade, mas por alguma razão acabam querendo cometer algum ato ilícito (já não recordo, creio que eles pretendiam se apossar de alguma coisa). O sábio excêntrico tenta inutilmente dissuadi-los, mas aparece o Fantasma e acaba com a farra usando seus punhos de aço, que marcam os adversários no rosto com o sinal da caveira em seu anel. Aí resolve puni-los obrigando-s a participar da olimpíada das selvas (sic).
A disputa com atletas nativos deixa os dois infelizes em palpos de aranha, o lance mais engraçado é quando um deles tem de enfrentar um dos nativos (os negros nativos da África eram equivalentes aos nossos índios; dizem que não existem mais essas tribos africanas, todas estão civilizadas; mas confesso que não tenho informação clara a respeito) num jogo pelo qual, usando uma espada tipo katana ou coisa que o valha, cada jogador tentava cortar o cinto do adversário, fazendo sua roupa cair. Mas o outro, além de vencer, agitara a espada muito alta. O valentão vai se queixar ao Fantasma: “Ele quase me decapitou!”
A resposta do Fantasma foi antológica: “Se isso tivesse acontecido, ele seria desclassificado!”
Como se pode ver, pelo menos as histórias do Fantasma, no universo dos super-heróis, tinham aspectos simpáticos e humanos, além de humor, tinham conteúdo.
Continuarei com esses estudos, assim espero, para tentar esclarecer a gênese e evolução do fenômeno dos super-heróis e de como eles degeneraram até o atual aspecto teratológico e brutal.
Rio de Janeiro, 5 a 13 de novembro de 2019.