Vícios e virtudes da antropologia norte-americana (com ênfase em Boas)
Franz Boas apresenta uma ênfase no dinamismo cultural e propõe uma etnografia que concede atenção ao indivíduo em sua relação conflitante-mimetizadora com seu meio cultural. Aceita-se, finalmente, que o indivíduo deixe de ser somente efeito (tendências behavioristas) e torne-se também a causa dos fenômenos sociais. Boas começa a se desbaratar do mecanicismo reinante justamente aí, embora não o possa vencer (a procura de uma “metafísica dos costumes”, que o faz execrar os evolucionistas, é o ponto vigoroso e ao mesmo tempo o invólucro da grande debilidade desta escola – mais detalhes no final do documento).
Conforme mencionado, a antropologia norte-americana (Lewis Morgan, por exemplo, é estadunidense, mas obviamente discrepante deste movimento; considera-se Boas o fundador, ou um dos fundadores, deste paradigma, cujo adjetivo pátrio não deve ser encarado de forma tão séria e inflexível) é acima de tudo uma ruptura com as concepções evolucionistas e uma crítica do método comparativo da Antropologia. Em seu lugar, Boas delineia um método histórico. O homem não pode comparar fragmentos de uma cultura com fragmentos de outra, mas apenas culturas entre si como um todo, dois sistemas totalizantes absolutamente lógicos e coerentes de uma perspectiva interna – a do nativo. Evitam-se assim erros de conclusão diante de metonímias – características isoladas sem uma etnografia profunda e abrangente por trás não seriam mais do que isso: características isoladas, ainda amorfas, incapazes de caracterizar com precisão um povo ou etnia. É, em suma, o descarte da idéia de “estágios lineares”, como se a espécie humana percorresse uma escada e os que estivessem mais acima fossem as civilizações greco-romano-européias (Morgan), haja vista a falta completa de qualquer possibilidade de verificação da hipótese (pressuposto etnocêntrico). Há dados perdidos que podem ser recuperados e levam tempo; e há dados perdidos para sempre (limites inerentes à Paleontologia, por exemplo): o pesquisador deve se adaptar a esse estado de coisas e tirar conclusões com o que está à disposição, consciente de que contribuirá comparativamente pouco para a ciência antropológica, “aguardando” que seus sucessores possam cobrir lacunas de seu legado pela continuação do estudo histórico dos povos “primitivos” semi-afastados de nossa cultura (sobre esta intensa modéstia do prisma antropológico boasiano, também reservo palavras ao final). “Até agora temos nos divertido demais com devaneios mais ou menos engenhosos. O trabalho ainda está todo à nossa frente” (BOAS, Franz. 2004 [1896]. “As limitações do método comparativo da antropologia”. In Antropologia Cultural, Celso Castro (org.). Rio de Janeiro: Jorge Zahar. p. 39).
Aliás, entra em campo aqui a idéia do processo de “aculturação”, quer seja, as trocas culturais inevitáveis entre dois ou mais povos, choques recorrentes de onde nem uma nem outra cultura saem ilesas (não há um “modo de ser” dominante que sobrepuje o outro – o homem branco europeu também sofre modificações profundas após conhecer vivências alternativas, como demonstra a revolução eclesiástica que teve que se promover para acolher os “indígenas” e os negros africanos no seio da “raça humana” conforme postulados da Igreja Católica, que até antes das Grandes Navegações não os reconhecia como seres humanos).
O método histórico (ou neo-comparativo, porque obviamente não é uma metodologia que prescinda da comparação, mas a “aperfeiçoa”) de Boas está num ponto-médio entre as influências geográficas, o causalismo das interações culturais exógenas e endógenas e a anatomia. Ou, antes, em “algum lugar no meio”, só que mais tendente à interação social que à geografia e a qualquer traço fisiológico: o Homo sapiens desenvolve técnicas que permitem a adaptação a diferentes espaços sem que isso leve povoações vizinhas a evoluírem de modo parecido. Há, inclusive, uma firme denúncia de Freud como mero discurso arbitrário, não menos arbitrário que quase toda a psicologia europeia desenvolvida até então.
Boas não só renega o evolucionismo mas também o difusionismo, sublinhando a possibilidade de desenvolvimentos análogos paralelos (nem toda similaridade cultural se explica por uma raiz comum do costume – dada a finitude de aspectos apresentáveis na realidade, natural que eles se repitam de forma espontânea entre variados agrupamentos humanos). Cada povo primitivo tem sua história, o que ainda era negligenciado àquela época. Ou seja: internamente, há desenvolvimentos característicos. As coisas novas não nascem somente do intercâmbio cultural (em que pese Boas ressaltar bastante este evento). Negá-lo seria pensar que o próprio Ocidente como unidade nunca houvesse existido. Uma ilustração do próprio autor se refere à gênese da religião cristã: “O Cristianismo não nasceu na Europa ou na América” (BOAS, Franz. 2004 [1932]. “Os objetivos da pesquisa antropológica”. In Antropologia Cultural, Celso Castro (org.). Rio de Janeiro: Jorge Zahar. p. 99), apesar de ser forte hoje justamente nestas regiões. Nota-se a veemência de Boas em esclarecer o quanto a crença no difusionismo puro seria algo “hipertrófico”, que reduz por demais a importância de cada instância cultural e nada explica, porque a origem de dado costume, em cujas costas todas as variantes hoje observadas se debruçariam, jamais poderia ser encontrada. Eis uma espada de dois gumes que será aprofundada na conclusão do artigo.
Nos textos dos antropólogos da vertente norte-americana transpira-se um reforço da cultura, a afirmação da autonomia do campo cultural. “O superorgânico” – de Kroeber – é uma espécie de manifesto dessa corrente, expondo o abismo crítico entre o Homo sapiens e seus parentes remanescentes no mundo. Já que mencionei um autor auxiliar, devo lembrar do freqüente recurso, por parte desses pensadores, a exemplos facilmente compreensíveis a fim de consolidar o conceito de aculturação. Benedict e Kroeber são os que me vêm à mente: crianças “criadas” por lobos que jamais aprendem a falar qualquer dialeto humano; um macaco criado com um bebê humano em seus primeiros anos de vida e que logo é ultrapassado pelas capacidades cognitivas imensamente superiores do segundo; uma criança francesa que cresce indistinta entre chineses, exceto, claro, por sua fenotipia; sociedades de insetos – que são “sociedades” apenas no sentido mais pobre da palavra, visto que apenas o homem seria capaz de gerar processos não-inatos em seu meio; o famosíssimo paralelo kroeberiano do vôo do pássaro e do avião – o animal levou milhões de anos para conquistar os céus, e pagou um alto preço biológico por isso (perder características reptilianas, entre as quais os membros superiores em formato de pata, com vistas a ganhar asas), enquanto o homem pôde lográ-lo pelo seu intelecto, “sem nada perder” (embora tivesse transformado o mundo de forma irreversível ao produzir esta célebre máquina). Outras analogias são utilizadas pelos autores, mas a variedade listada já é satisfatória.
Sobre as limitações do método histórico – Ora, assumir, como evocado no primeiro parágrafo, que tudo é causa-e-efeito, é tautológico. Cada coisa é o que é, justamente por não poder existir dissociada do todo, ou seja, não ser em-si nem para-si, mas ligada ao mundo, esse “devir caótico”. Claro, porque “mundo” é só uma palavra, e a observância desse mundo é modificada de cultura para cultura (e Boas é um ensaio desse perspectivismo que penetra, então, nas ciências humanas). E dizer que não existem “fenômenos” culturais independentes é atribuir sempre à sua origem uma dúvida. Isto é acertado. Mas o que ocorre é que se torna uma dúvida insolúvel: o método histórico não poderá alcançar a metafísica dos costumes de todas as tribos afirmando, soberanamente, quando e em que localidade principiou tal coisa, simplesmente porque as interações entre os povos são muito complexas e não há confiabilidade em registros do passado (que já podem ter se dissipado no presente). Além disso, os “porquês” continuariam indefinidos. Não seria possível apurar a motivação do homem “que descobriu o fogo”, não sendo este homem mesmo (conceituação absurda). É uma Antropologia ambiciosa mas manca, carente de essência. Como tudo está imbricado com aspectos ao seu redor, é nulo pretender-se uma gênese. Afirmar a falta de independência do fenômeno acarreta a impossibilidade de chegar a tal fenômeno na forma pura: “Queremos saber as razões pelas quais tais costumes e crenças existem – em outras palavras, desejamos descobrir a história de seu desenvolvimento” (BOAS, Franz. 2004 [1896]. “As limitações do método comparativo da antropologia”. In Antropologia Cultural, Celso Castro (org.). Rio de Janeiro: Jorge Zahar. p. 33). Há que se tomar cuidado com a preponderância da investigação histórica: não é raro o historiador que se depara com a cauda da cobra e quando a agarra percebe se tratar meramente da cabeça! De qualquer modo, se há um “ponto crítico”, suscitado pela escola, que separa indizivelmente a animalidade da humanidade, e seu alvo é a cultura, deveriam se concentrar nos fenômenos – coisa que não fazem, buscando causações remotas quase na natureza. Portanto, o empreendimento ontológico de Boas é seu maior mérito, idéia que vence concepções de progresso ilimitado e irrestrito de um povo etnocêntrico, um sinal de amadurecimento da Antropologia, porém, outrossim, um sintoma de sua necrose, da crise dos valores ocidentais, da impotência em encontrar essa mesma metafísica. O pensamento de Boas se encontra em uma interessante encruzilhada!
Há, adicionalmente, a questão do “simples” e do “complicado” – voltar-se para o Ocidente tem sido praxe somente em paradigmas mais recentes da ciência antropológica: os norte-americanos se recusam, neles impera a modéstia! Tais facetas ficam patentes nas seguintes passagens, diluídas na obra de Boas: “Abstemo-nos de tentar solucionar os problemas fundamentais do desenvolvimento geral da civilização até que estejamos aptos a esclarecer os processos que ocorrem diante de nossos olhos.” (BOAS, Franz. 2004 [1920]. “Os métodos da etnologia”. In Antropologia Cultural, Celso Castro (org.). Rio de Janeiro: Jorge Zahar. p. 47); “A menos que saibamos como a cultura de cada grupo humano se tornou aquilo que é, não podemos ter a esperança de alcançar qualquer conclusão relativa às condições que controlam a história geral da cultura”, e um pouco mais adiante: “Seria necessário, portanto, desistir e considerar o problema insolúvel?” (BOAS, Franz. 2004 [1932]. “Os objetivos da pesquisa antropológica”. In Antropologia Cultural, Celso Castro (org.). Rio de Janeiro: Jorge Zahar. pp. 97-98). Percebe-se aí a contradição: a humildade se torna arrogância quando se pensa que considerar os outros “estruturas simples” e a si mesmo “imensamente complexo” é parecido com o que vinham fazendo os evolucionistas... Uma postura parecida, em sua miopia, com o projeto linguístico chomskyano, natimorto pois estereotípico e “procrastinador” (exigente de uma neurociência avançada que jamais chega).
Agora, as contribuições do modelo, para além das que já foram citadas: efetua-se um duro golpe nas concepções eugênicas/racialistas típicas das décadas de 20, 30 e 40 do século XX ao se destrinchar o mito da pureza racial, de frágil sustentação ideológica. Além de Boas, Mead é exímia nesta modalidade (desnudar o “bode expiatório”): sua exposição sobre os “desajustados” demonstra o quanto é errôneo perceber o erro no indivíduo-em-si, posto que tal “erro” só existe quando contrastado com um padrão cultural anterior ao surgimento do ser. O desajustado é uma figura onipresente em todas as culturas e constitui as pessoas-exceção. Para contrapor a visão ocidental de que o louco está à margem da sociedade, vêem-se até povos primitivos em que ser epiléptico é, ao contrário, um sinal de ligação entre o imanente e o transcendente.
[Redigido em 22/09/08 - Revisado e ampliado em 19/09/19]