Gaston Bachelar, ao prefaciar a obra de Paul Diel, Simbolismo na Mitologia Grega”, diz que o mito cobre toda a extensão do psiquismo revelado pela psicologia moderna e que a personalidade mítica tem um supra consciente, um ego e um subconsciente. Seu eixo de sublimação e sua vertical de queda localizam-se no inconsciente mais profundo.
É verdade. O mesmo podemos falar das criaturas míticas que vivem nas estórias de assombração e nas sombrias experiências realizadas por algumas pessoas na busca de um êxtase espiritual, que diga-se, no mais das vezes, são motivados por confusas elocubrações de um espirito doentio que não encontra a realização de suas aspirações na realidade em que vive.
Da mesma forma, as lendas que falam do mundo sobrenatural não são mais do que um aspecto do inconsciente humano, presente naquele território que Jung chama de “sombra”, onde se alojam as fontes dos nossos sentimentos de medo, ansiedade, insegurança, insatisfação, sensibilidades essas cuja fonte é a ignorância do que realmente somos, e  a nossa angústia de não saber de onde viemos e para onde vamos depois da morte.
 
De uma maneira geral, a maioria das pessoas acredita na existência de vida após a morte. Essa é uma crença que, em nossa opinião, está vinculada ao nosso inconsciente desejo de continuar uma existência, quiçá, em outro plano, porque a ideia de extinção, pura e simples da nossa consciência, nos parece insuportável.
Queremos crer na existência de um mundo sobrenatural porque essa crença é necessária para suportamos a experiência definitiva da morte. Por outro lado também necessitamos de um sentimento que se contraponha a nossa natural tendência de tudo submeter ao crivo da razão e à peneira da lógica, porque sem esse contraponto a nossa própria existência seria apenas um acontecimento compreendido entre dois fatos sociais, que são o nascimento com vida e a morte, simbolizados pelo parto e pelo funeral.
Assim, podemos dizer que o sobrenatural existe. Se não existisse o cérebro humano não faria imagens dele, pois é sabido que o cérebro só pode trabalhar com conteúdos que ele consegue formalizar em termos de linguagem.
As histórias de fantasmas e outras aparições do gênero podem ser colocadas no catálogo que trata do simbolismo. São próprias da linguagem do inconsciente. Todo fantasma, bem como os enredos em que estão envolvidos têm estreita relação com conteúdos da mente inconsciente do grupo humano que as elabora. Assim é que, a Miota, por exemplo, um fantasma estreitamente ligado à tradição dos sertanejos paulistas e mineiros, reflete bem o inconsciente desses caboclos, formado nas vicissitudes da vida na roça, sujeita aos caprichos da natureza, e informado por crenças e tradições cujas lógicas eles estão longe de entender.
 
O presente livro enfeixa uma série de contos, cujos enredos foram desenvolvidos em cima de conhecidas lendas do sobrenatural. Algumas deles, como a lenda da Miota, da Pedra do Frade, da Procissão de Finados, são histórias populares que me chegaram através da minha mãe, que as contava para mim quando eu era criança. Outros, como as lendas do Negro Sebastião, da Bailarina, do Corpo Seco, da Árvore dos Enforcados, são lendas conhecidas do povo de Mogi das Cruzes e de algumas outras cidades do Brasil. Outros, ainda, como a lenda de Branca Dias, do ídolo Baphomet e Gilles de Rais, por exemplo, foram desenvolvidas a partir de histórias contadas sobre personagens e fatos históricos, cuja interação com o sobrenatural geraram uma tradição que atravessou séculos. Sobre essa camada de linguagem que o inconsciente das pessoas, em vários lugares e tempos deste nosso mundo, desenvolveu, nós colocamos a nossa própria metalinguagem, na forma de contos do sobrenatural.
Como diz Paul Diel, (Simbolismo da Mitologia Grega,1991) “os mitos falam do destino humano, sob o seu aspecto essencial; destino do funcionamento sadio ou doentio (evolutivo ou involutivo) do psiquismo”. As nossas assombrações também. Talvez as que foram recenseadas nestes nossos contos possam deslindar para o leitor alguns significados que seu próprio inconsciente ainda não logrou elaborar.

(introdução ao livro - A biografia do Diabo- Contos do Sobrenatural), no prelo para publicação