As verdadeiras raízes da ciência? Estão na cristandade medieval

Tradução do artigo de Rino Cammilleri

Quando se vêem as atrocidades cometidas pelo Islã, não há jornalista ou comentador que não fale de “Idade Média”. Mas os jihadistas sonham com o século VII apenas porque é este o século do alvorecer do Islã.

Não é necessário (para quem se informa) recordar aqui aquilo que é um fato: a Europa medieval inventou a universidade, o mercado, a democracia representativa e levou a sério os brinquedos chineses como a bússola e a pólvora. Mas o elenco é longo. Basta apenas pensar na mudança trazida pelo relógio mecânico e no quanto a civilidade moderna deve à conseqüente racionalização do tempo. A editora D’Ettoris publicou um livro que supera todos os outros sobre esse assunto, um texto excepcional que, com linguagem simples e um toque de humor, explica como a “revolução científica” do século XVII é uma balela, porque Copérnico, Kepler, Galileu e Newton nada poderiam descobrir se não tivessem atrás de si séculos de descobertas e aquisições. Séculos, diga-se, medievais. James Hannam (físico e filósofo da ciência de Cambridge) em “God’s Philosophers: How the Medieval World Laid the Foundations of Modern Science” (https://www.amazon.com/Gods-Philosophers-Medieval-Foundations-Science/dp/1848311508) nos informa que o termo “cientista” nasce no ano de 1833 na British Association for the Advancement of Science: “esse vocábulo foi cunhado somente em 1833 porque até então ninguém havia sentido a necessidade de tal termo. Somente no século XIX a ciência tornou-se uma disciplina autônoma, separada totalmente da filosofia e da teologia. É verdade: a ciência tinha chegado assim tão longe graças a uma particular concepção de Deus e da criação; mas, então, estava já tão firme que não precisava mais dessas bases”.

Contudo tinha sido exatamente aquela concepção particular de Deus a incentivar os homens a estudar a natureza porque “através da natureza o homem podia aprender algo do seu criador”, o qual era “coerente e não caprichoso”. Era esta, e nenhuma outra, a intenção, declarada, dos religiosíssimos Copérnico, Kepler, Galileo e Newton. Mas se tratava, no entanto, de uma “particular concepção” diferente, por exemplo, daquela da concorrência, do Islã. Para a religião islâmica, os caminhos de Allah são imperscrutáveis. Os cristãos, diversamente, pensavam que Deus deu leis ao universo porque Ele é a Suma Racionalidade; e mais, Ele aprecia que suas criaturas o estudem (também através da criação) porque quer ser amado. E não se pode amar aquilo que não se conhece. Por isso os cristãos absorveram com felicidade a contribuição árabe ao conhecimento: “muitas sociedades não aceitam facilmente a idéia de precisar aprender algo com seus inimigos. Este não foi o caso dos medievais europeus”. Ao contrário, é o caso do atual Boko Haram, cujo fundamentalismo rejeita na totalidade a cultura ocidental.

Em 1805 os cristãos reconquistaram Toledo, Gerardo de Cremona transferiu-se para a imensa biblioteca da cidade, aprendeu árabe e traduziu mais de sessenta obras, entre as quais o Almagesto de Ptolomeu, ápice da astronomia grega. Todos esses trabalhos se difundiram em todas as universidades européias. Mas por que aos árabes interessava a astronomia? “No momento em que o Islã se difundia do Atlântico até a Índia ao longo do século VIII, tornava-se cada vez mais difícil estabelecer em qual direção se encontrava Meca. Para assegurar que a orientação fosse individuada de forma correta, os doutos foram, então, incentivados a estudar a posição das estrelas, e isso estimulou a astronomia e a trigonometria”. Cada fiel devia rezar voltado para Meca. “No século IX um califa fundou em Bagdá um centro de estudos chamado ‘Casa da Sabedoria’, onde a fina flor da ciência e da filosofia grega foi traduzida para o árabe” por estudiosos bizantinos, cristãos, que falavam grego, língua que no ocidente ninguém mais conhecia. Os europeus precisaram retraduzir do árabe para o latim. Mas, quando muitos estudiosos gregos fugiram de Constantinopla que havia sido conquistada pelos turcos, os europeus fizeram aquilo que nunca tinha passado pela cabeça dos islâmicos: tornar obrigatório o estudo de grego nas escolas, coisa que ainda hoje se conserva em muitos lugares.

Mas por que os estudiosos muçulmanos, depois de dar uma contribuição importantíssima às ciências, simplesmente pararam? Por um motivo que, periodicamente, por assim dizer faz retroceder a cultura islâmica: ascende uma corrente religiosa que hoje chamaríamos de fundamentalista e todo estudo que não seja estritamente corânico é marginalizado e, freqüentemente, banido. Entre os século XI e XII acontecesse isso: impõe-se a doutrina hanbalita, rigorosa e literalista, e o califa abássida al-Ma’m n, seu seguidor, começa a perseguir quem concordava com tal doutrina. É nesse ponto que o jogo virou para os europeus. Não há espaço aqui para dar conta da miríade de surpresas (e de lugares-comuns demolidos) que a leitura das páginas de James Hannam reserva, só resta admitir, com o autor, que no fim das contas a ciência “neutra” não existe. Ela é sempre guiada, e condicionada, por uma ideologia (que é uma religião laica). Foi o cristianismo, goste-se ou não, a colocá-la e direcioná-la no sentido daquilo que ela veio a se tornar. E hoje, subtraída de seu primeiro motor, ela subjaz sobre o positivismo materialista. Uma ideologia (a mesma do “mercado”) que a orienta e domina, não raramente levando-a a perder tempo em becos sem saída.