Falando de Cultura - Mercearia e Vinhos

Não é tarefa fácil discorrer sobre as contradições imaginadas entre o título e o subtítulo desta crónica.

Em meados do século passado, havia, na urbe que hoje é cidade de Santo Tirso, quarenta e oito estabelecimentos comerciais designados, nos registos municipais, “Mercearia e Vinhos”. 48!

De arquitetura variável, conforme a organização do espaço, estes negócios tinham muito em comum.

Tratava-se de uma atividade recente, cujo exemplar mais antigo pertenceu a José Ribeiro Cataluna, porque fundado em 1874, com domicílio na Rua Ferreira de Lemos. Seguiam-se, datados do século XIX, apenas os estabelecimentos de Domingos Arcos e Filhos, no Parque, fundado em 1882, e de Francisco José do Vale, na então Rua Cirilo Machado, fundado em 1891.

Antes destas nobres modernices, os locais e visitantes empiteiravam-se (embriagavam-se) naquilo que Camilo Castelo Branco – «Serões de S. Miguel de Seide» – chamou o “hotel da terra, na tasca do Caroço”.

Resta, em Santo Tirso, apenas um destes curiosíssimos espaços comerciais, dado que procuramos embalde encontrar aberto um outro, nas cercanias da Rua dos Cravos.

O antigo “Luis da Esquina”, que labora sob a firma António & Francisco, Lda., na esquina da Rua de S. Bento com a Rua Monsenhor Gonçalves da Costa, é uma relíquia da cultura do século XX. Se desaparecer, o que seria triste e nefando, as gerações vindouras jamais conhecerão a realidade que perdurou por muitas décadas, incrementando-se com as duas Grandes Guerras, e que antecedeu os supermercados.

Não se trata de um saudosismo bacoco – saudosismo que os vanguardistas atacam figadalmente, desde que não lhes toquem no fantasma do velho Hotel Cidenai ou na Casa de Chá – mas de ligar à cultura da cidade uma realidade que coincidiu com a passagem das serrações a fiações de algodão, com a incipiente iluminação pública, com a duplicação da Associação de Bombeiros, com o Estado Novo, com o Teatro, com a Legião, com o Futebol Clube Tirsense, com os característicos edifícios dos CTT e do Mercado, as cabines do Largo do Cidnay, a rede telefónica, a Loja do Povo, os Grémios da Lavoura e do Comércio, o Liceu e… limonetes e jesuítas!

Então, para quem não sinta curiosidade a ponto de a dissipar “in loco”, o que eram estas “Mercearias e Vinhos”?

Os exemplos mais vivos na minha memória, e que servirão para esta definição, são os de Bernardino José do Vale, Fânzeres & Vale (Casa “Mifra”) e a Mercearia Pereira, Pereira & Cardoso, de João Pereira Ferraz.

As outras mercearias, siamesas de tasca, que a minha memória ainda conserva e, se não trai, são: o Jacinto, o Aleixo, o Gaspar, o “Fua”, o Festa, o Narciso Sousa (Além-do-Rio), a “Cezília”, a Casa Melo, o Fernando Silva (no mercado), o Toninho Adonias (nas proximidades do velho Carvoeiro e o Elétrico.

Havia uma secção em que se vendia praticamente de tudo com algumas especializações: desde cafés moídos, aos vinhos verdes da região, champanhes, vinhos finos, sabão de esfrega, sediela, louças, artigos de papelaria, bichas de rabiar e confettis, além dos cereais e açúcar, bacalhau, óleos alimentares e sabões. Os produtos secos, seja painço, arroz carolino ou café, eram pesados e aviados em espessos cartuchos de papelão cinzento. Havia de tudo, debaixo do lema: “Ganhar pouco para vender muito”!

O negócio corria supervisionado por dois instrumentos de chocante sobranceria: a balança “António Pessoa” ou “Avery”, cujo mostrador anterior era uma complicadíssima escala de converter as pesagens em valor, e a caixa registadora, que a ambição dos marçanos e a protérvia sagaz dos merceeiros fez implantar sobre a velha “gaveta” do dinheiro, ficando esta reduzida a depósito dos grossos e sebáceos livros de fiados.

Ao lado, em compartimento estanque que só comunicava com a mercearia pela parte de dentro do balcão e para abastecer, aos domingos e feriados ou a horas mortas de legalidade sub-reptícia, alguma dona de casa tardia, ficava uma modesta “casa de pasto”, com um balcão corrido trescalando à higiénica lixívia e, normalmente, manchado de vinho tinto escorrido das canecas de porcelana, com serviço de apoio em duas ou três mesas, em suma, a tal taberna justificativa do “… e vinhos”, enramalhetada de louro. Modernamente, se as gargantas dos amesendados ainda não dilaceravam o ambiente pela rouquidão e pelos pigarros dos depósitos dos maus vinhos, ouvia-se um ruido irritante de eletrocussão de moscas.

Na Casa Mifra a taberna deitava para um degrau exterior, onde alguns ébrios tropeçavam à saída, e, no Pereira, os “comes e bebes”, naquela ruela pomposamente denominada “Zulmira Azevedo” e que já se chamou Rua das Taipas, davam para um recanto imundo em que, na tentativa gorada de evitar que servisse de urinol, alguém colocou uma barriga de cimento.

Nestas tascas, nunca entrava uma garrafa de vinho fino. Os frequentadores eram avessos a provas e adeptos declarados das tresfegas.

As cervejas, gasosas e pirulitos só muito mais tarde acederam a esses lugares de vícios, troça de bagaço e iscas de bacalhau.

Eis a lista camarária das quarenta e oito lojas (número de ordem, idem do rol municipal, ano de fundação e local à data do registo):

1 – 1 - Pereira & Cardoso, João Pereira Ferraz, 1920, Rua Sousa Trepa

2 – 2 – Fânzeres & Vale, Bernardino José do Vale, 1913, Parque

3 – 7 – Paiva & Correia, Pedro Dias de Paiva, 1920, Parque

4 – 8 – Francisco José do Vale, 1891, Rua Cirilo Machado, fechou em 1-7-1893

5 – 10 – António Carlos de Sousa Dias, 1908, Rua de Vilalva

6 – 11 – David Pereira da Silva, 1920, Friães

7 – 12 – Joaquim Ferreira – Luis da Silva Godinho, 1922, Rua da Fábrica

8 – 13 – Alfredo Teixeira da Rocha Junior, 1915, Rua Sousa Trepa

9 – 14 – Luis Francisco de Araújo Filhos, António Ferreira de Araújo, 1908, Rua Sousa Trepa

10 – 15 – Narciso Eduardo de Sousa Sucessor, Bernardino Correia de Sousa, 1900, Pinheirinho

11 – 16 – Mário António Pinto Guimarães, 1914, Rua Sousa Trepa

12 – 17 – António Pereira da Costa, 1919, Rua Cirilo Machado

13 – 18 – Joaquim da Silva Barros, 1923, Areal

14 – 22 – Manuel Correia de Sousa Dias e Augusto Monteiro de Oliveira – Leopoldina Augusta dos Santos, 1904, Avenida de Vilalva

15 – 23 – José Ribeiro Cataluna, 1874, Rua Ferreira de Lemos (em 15-6-1868, existia uma loja de António Francisco Cataluna)

16 – 24 – Emília Rosa Leite, 1916, Rua da Indústria

17 – 31 – Manuel Fonseca, 1919, Rua da Indústria

18 – 33 – Joaquim Rodrigues Guimarães, 1918, Rua Ferreira de Lemos

19 – 37 – Manuel Alves de Sá Barbosa, Manuel Dias Alves, 1904, Praça da República (deixou de vender bebidas)

20 – 38 – Joaquim Ribeiro da Silva, 1922, Friães

21 – 39 – Domingos Arcos & Filho - José Arcos, 1882, Parque

22 – 40 – António Maria da Silva Almeida, 1914, Rua Ferreira de Lemos

23 – 41 – Manuel Narciso da Silveira, 1922, Rua Ferreira de Lemos

24 – 42 – Joaquim da Silva Carvalho, 1923, Fontiscos

25 – 43 – Serafim Pinto Soares, 1922, Fontiscos

26 – 44 – Joaquim Passos Guimarães, 1923, Arco

27 – 48 – Belmiro Coelho Rebelo, 1923, Rua do Norte

28 – 49 – Clementina Rosa Pinheiro de Miranda, 1912, Arco

29 – 50 – António de Sousa Gonçalves, Fânzeres & Correia, David de Sousa Grilo, 1923, Pinheirinho

30 – 51 – José de Lima, 1926, Friães

31 – 58 – Júlio Dias de Oliveira, 1927, Praça ou Parque

32 – 59 – Lino de Castro, 1927, Orgal

33 – 62 – Eusébio da Costa, 1930, Rua da Indústria

34 – 63 – Albino Ferreira de Moura, 1931, Rua Cirilo Machado

35 – 64 – António Pedro da Silva, 1931, Lagoa

36 – 65 – António de Sousa Gomes, 1931, S. Bento da Batalha

37 – 66 – Manuel de Sousa Festa, 1931, Rua de S. Bento

38 – 67 – Adelino da Silva, 1932, Rua Cirilo Machado

39 – 68 – Pórcio Pereira Baltar, 1932, Rua da Fábrica

40 – 69 – Joaquim Narciso da Silveira, 1932, Sobregião

41 – 70 – José Gonçalo da Silva, 1932, Rua de S. Bento

42 – 71 – Maria Leça Carneiro, 1932, Orgal

43 – 72 – Manuel Ferreira de Oliveira, 1932, Rua Cirilo Machado

44 – 73 – José Gonçalves, 1932, Portela

45 – 74 – Manuel António Martins, 1932, Praça da República (em 16-12-1868, existia uma loja de José Martins, nesta mesma Praça que, então, se chamava “Campo 29”)

46 – 75 – Maria da Glória Ferreira da Silva, 1932, Rua de S. Bento

47 – 76 – Aleixo Rodrigues de Andrade, 1940, Portela

48 – 77 – José Ferreira, 1941, Rua José Bento Correia

Encerro com o mesmo autor com que abri – Camilo Castelo Branco – e que por cá procurou bons ares e bons médicos: “Bêbado é um homem que se embebeda na taberna. Ao bebedor que se embriaga nos cafés e nas salas, a não se lhe dar o nome de espirituoso, também não deve chamar-se bêbado. Os glossários, que conheço, carecem desta distinção, que se quer observada entre pessoas que se tratam.”

ANTONIO JORGE
Enviado por ANTONIO JORGE em 30/01/2019
Reeditado em 21/10/2019
Código do texto: T6563231
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