ONDE ESTÁ O LEITOR?
Acaba de sair na imprensa brasileira a triste notícia de que a crise editorial no país tomou proporções de tragédia. As duas maiores redes de livrarias, Cultura e Saraiva, se encontram em processo de recuperação judicial, o que significa dizer que não pagarão suas dívidas às editoras e, por via indireta, direitos autorais aos escritores enquanto o processo perdurar. O apelo que fazem nas redes sociais é dramático: dêem livros de presente no fim do ano. A campanha de fim de ano #dêlivrosdepresente promete ser o que é do gosto do empresário brasileiro: um movimento temporário destinado a desaparecer de cena assim que entrar 2019. Mero oportunismo barato, não um propósito consistente para salvar e fortalecer o mercado do livro.
Mas o que realmente me assustou foi ver a curva de variação do número de (livrarias + papelarias) com o tempo na sequência de anos que vai de 2007 a 2017. Os dados são da Confederação Nacional do Comércio de Bens, Serviços e Turismo (CNC) mostrando uma queda de 21083 estabelecimentos em 10 anos, aproximadamente 29%. E o que é pior, o decrescimento é uma função bem definida, com redução das taxas de modo não linear. Basta lembrar que em cidades pequenas do interior e até mesmo nos bairros de periferia das grandes cidades papelarias também acumulam funções de livrarias – atualmente elas se resumem aos livros didáticos, talvez o único segmento ainda promissor.
O efeito cascata previsto por Luiz Schwarz, editor da Companhia de Letras, projeta que a inadimplência das duas livrarias trará mais dificuldades ainda para vender livros e recuperar os prejuízos acumulados. A recessão do setor, já observada em 2017, tende a aumentar em 2018. Os novos autores praticamente estão fora dos planos de lançamento e corre-se o risco de haver fechamento de lojas físicas em cidades do interior do país. Não se pode poupar de culpa o setor, por sua tradicional inércia em relação às mudanças. Sempre acreditam em “recuperação” e “fidelidade”.
Mais pessimista que os acomodados editores, Pedro Herz, o presidente do Conselho de Administração da Livraria Cultura declarou à FECOMERCÍO nos meados de agosto de 2018 que o leitor está acabando – e esta é a justificativa para presumir que a recuperação da economia editorial no Brasil será mais lenta do que a economia do país em geral. Sua afirmativa tem base em um argumento que merece comprovação, mas, em tese é interessante: os que não lêem com regularidade, alegam que isto se deve ao fato de o livro ser caro, forçando as livrarias a praticarem preços muito baixos. Em suas palavras: quando se discute o preço do livro se está defendendo o não leitor. Particularmente, não tenho dúvidas de que o leitor é uma semente a ser plantada e cuidada; de dentro para fora, do lar para a instituição escolar e da escola para a sociedade.
Herz define magistralmente o ato de ler como “atividade silenciosa, solitária e sem interação”. Como fazer isso nos dias em que a má Psicologia, em nome da busca sem limites da felicidade, impôs como única obrigação a vida social? Como esperar que tais pessoas leiam se elas pensam que quem não levar a vida na farra não a aproveita? E a “escola” que foi jogada no lixo, nivelando por baixo o ensino e exterminando a disciplina e a cobrança? Ademais, ler é algo que se aprende na família, mas nos últimos anos até o conceito de família foi destruído. A “scholé” dos gregos, sinônimo de lugar do ócio digno, onde o trabalho braçal cedia a vez ao pensamento e à introspecção criativa, não passa nem perto dos nossos fundamentos atuais de educação.
Já em 2016 o Estado de Minas postava uma matéria de meio de ano indicando a adaptação ao formato digital de livros no Brasil, ao mesmo tempo em que acusava acordo entre editoras na manutenção injustificada de preço elevado de e-books em relação a outros países. O representante de uma editora chegou a afirmar que uma das razões era a conversão do texto físico para o digital. Um reconhecido consultor internacional que trabalhou para a Amazon informou que o e-book tem custo irrisório, mas o propósito das editoras em manter preços elevados é para não canibalizar o formato impresso. No Brasil esta política foi levada a sério e, como resultado, na média o e-book custa o dobro do que custa nos EUA (aqui ele chega ao consumidor em torno de R$ 16,00, contra R$ 23,00 do livro impresso).
Em julho deste ano o caderno de literatura da Folha de Pernambuco apresentou uma importante matéria sob o título “Perspectivas sobre o mercado do livro digital no Brasil: será o fim do papel impresso?” onde é apontado que “formato físico e digital devem conviver por bastante tempo”. A autora, Mariana Mesquita, reporta às previsões apocalípticas e ao mesmo tempo instigantes de filósofos do porte de Walter Benjamin (anos 1920) e Marshall McLuhan (década de 1960) antecipando o declínio do livro analógico.
Embora se constate que essas previsões estão longe de se materializar em qualquer parte do mundo, tem-se como certo que, num futuro incerto, isso irá ocorrer efetivamente. A apologia ao livro de papel e ao seu valor lúdico está longe de ser uma questão central nessas discussões. Parece mesmo que o único sentido de trazer à tona as agruras financeiras das editoras e distribuidoras brasileiras está na defesa da saúde financeira do setor – algo que, objetivamente, não pode ser descartado. Mas ninguém luta com a necessária obstinação para se ter uma política permanente em defesa do livro, inclusive nos mecanismos de incentivo e controle que façam os preços de mercado baixarem a níveis estimuladores para o consumo. Seria necessário haver uma Lei Rouanet para ensinar a ler? Pois os preços só baixam, mantendo a capacidade de sobrevivência do empreendimento, se o volume de vendas aumentar.
O e-book não tem uma porcentagem significativa de vendas (1,9% segundo levantamentos recentes), mas promete revolucionar o mercado livreiro em algum momento difícil de ser previsto. Mais vitalidade representa o segmento de vendas dos usados. Menos mal! Dessa forma, livros digitais e sebos representam uma ameaça real à indústria gráfica, um duro golpe nos investimentos e nos empregos. É um poderoso conflito de interesses essa luta pelo ganho financeiro; de um lado os eventuais e raros leitores fiéis desejando economizar e de outro toda a cadeia de editores e distribuidores precisando sobreviver. E, no meio disso, está o autor.
Mesmo que o livro digital continue desprestigiado no Brasil (representam, em média, apenas 3% das receitas das grandes editoras) as perspectivas de crescimento são boas, projetando a tendência de crescimento e deixando gráficos, editoras, indústria do papel, distribuidoras, pontos de venda e outra série de coisas em estado de preocupação. Entre 2014 e 2015 houve um incremento de 4,2%, mas o faturamento aumentou em 21%. Mas será que nós, criados dentro de bibliotecas e livrarias manuseando e cheirando páginas, com livros sob os travesseiros para nos fazer companhia em noites de insônia, vamos aceitar esta virada com caras de derrotados? Será que não temos nenhuma convicção, que achamos inevitável entregar os pontos, nos auto-declararmos vencidos?
Hoje, a praticidade inclui a lei do caminho mais curto, quase sempre sinônimo de indolência e inimigo do aprendizado. Tocar um botão e “ouvir” um livro é mais fácil do que limpar os óculos, sentar e ler. Komo e Kindle são objetos de desejo, vulgarizados, que provavelmente contarão com todas as funcionalidades para que o leitor interaja em tempo real com o escritor, algo impossível quando se lê um livro físico. Herz conclui que esse não é exatamente um leitor. O leitor de fato anda sumido e talvez nem mais possa ser recuperado. Você que é pai ou mãe: não se sente tentado a presentear seus filhos com um livro por mês? Alguns são do preço de um hambúrguer.
Em meio ao fogo cruzado e ferozes debates sobre o movimento “Escola Sem Partido” não se tem visto discussões mais profundas sobre a crise do livro no Brasil, que não é de hoje, mas se agrava em velocidade preocupante. Exceto por ocasionais orquestrações da mídia, que se engaja voluntariamente nesta causa, tudo o mais é silêncio. A ressalva importante é que o tema foi mais frequente neste conturbado 2018.
Realmente, sob o ponto de vista cultural, não interessa muito a questão da plataforma de leitura, embora a tradição de manusear o livro impresso tenha um insubstituível conteúdo de magia. Uma pesquisa feita nos EUA em 2016 detectou que os norte-americanos têm ampla preferência por esta modalidade, mas também informa que os leitores de livros digitais consomem mais títulos por ano, numa relação de 24:15. Antes que os apressados tomem estes números como atestado de avanço cultural naquele país é necessário investigar um pouco mais e então é inevitável interrogar: as pessoas estão realmente treinadas para ler mais e manter o mesmo nível de concentração na leitura?
O presidente do Sindicato Nacional dos Editores de Livros garante que o mercado de livros digitais só funciona para leitores assíduos, o que é uma constatação interessante. Além disso, destaca que mesmo na pátria dos livros digitais, os EUA, eles ainda não superaram o patamar de 15% do mercado total de livros. Devemos ter a consciência de que a indústria gráfica brasileira representa um mercado de mais de dezenove mil empresas, gerando cerca de centro e oitenta mil empregos e representando uma movimentação financeira anual da ordem de 500 milhões de dólares, entre importações e exportações de livros. Uma quantia equivalente é investida na compra de máquinas e equipamentos. A triste notícia é a derrocada do setor: os números indicam redução de empregos, exportação e fechamento de empresas. Comparado com 2016 o ano de 2017 apresentou uma redução de 134% no saldo comercial. E tudo isso acontecendo mesmo com a predominância dos livros impressos sobre os digitais, não menos que 98,9% do total das vendas.
Diz-se que a Amazon, pioneira na venda de e-book, pensa agora em aumentar o número de lojas físicas nos EUA. Monteiro Lobato, desejando eliminar a intermediação na venda de seus livros, foi inovador quando empreendeu uma caçada aos leitores enviando-os, sob consignação, às bancas de jornais. Talvez tenha inaugurado a onda de novos pontos de vendas; hoje, não é incomum encontrarmos livros em supermercados e em lojas de conveniência.
Mas vamos discutir a falta de leitores e a decadência do mercado livro sob outro ponto de vista. O Projeto Gutenberg, criado por Michael Hart em 1971 com a montagem da primeira biblioteca digital da história, já tem quase cinco décadas. Como se vê, é muito tempo para que o sucesso da plataforma digital fosse mais longe. Se ela não representa uma ameaça real e verdadeiramente competitiva com os livros impressos, por que o setor está em crise? Vamos apresentar uma pauta de lacunas: a) ousadia e criatividade aos livreiros; b) maior divulgação dos produtos; c) facilitação de preços; d) promoção de mais eventos; e) formação de novos leitores críticos. Quantas vezes a mídia já se engajou na nobre causa da leitura de modo permanente e não apenas no dia do escritor ou no dia do livro?
De qualquer forma o que importa é que as pessoas leiam. O autor Guilherme Cavallari, mesmo admitindo que não gostava de estudar afirma: “Tudo o que sei aprendi com os livros”. Ademais, chegar-se-á ao ponto de levantar bandeiras em prol dessa ou daquela modalidade; uns vão admitir, em defesa do e-book que milhões de árvores serão poupadas por ano ou que poderão ser eliminados os custos de transporte e armazenamento de livros; outros pensarão no óbvio keynesianismo de proteção do Estado ao segmento e outros ainda pensarão no livre mercado com a expansão de investimentos, renda e emprego. O que nos falta é um diagnóstico muito simples: onde estão os leitores, onde eles foram parar?
Mesmo assim se chegou ao Brasil, em 2017, a um total de quase 4,5 milhões de livros comercializados (uma média de 4,96 livros/ano para os brasileiros alfabetizados). Todavia, não há garantia de que todos os livros tenham sido lidos: presenteia-se com livros pessoas que não gostam de ler ou compra-se livros para enfeitar estantes e ostentar cultura para visitantes.
Tenho piedade pelos que sonham devotar suas vidas a escrever contando com algum retorno financeiro. Certa vez li uma frase de Gabriel Garcia Marquez que tentarei reproduzir sem ser exatamente fiel às suas palavras: se você quiser ser escritor que seja um baita escritor, pois se não for haverá melhores meios de morrer de fome. Mesmo do alto de meu habitual otimismo sou obrigado e concordar e até ir mais longe: morrerão mesmo, principalmente quando o e-book substituir completamente o livro impresso. Ou, caetaneando: “ou não”.
Pois, se caetanear for possível talvez haja um ganho interessante com o mercado digital conquistando novos adeptos da leitura pensando na vantagem de se comprar um livro em qualquer livraria do mundo e tê-lo à disposição para leitura com um único clique, que vai demorar poucos segundos. Mas o verdadeiro leitor amante do livro impresso, desde que ele tenha paciência para esperar a chegada do correio, terá um prazer redobrado, simbolicamente iniciado com a abertura do pacote. Mas temos de admitir que em tempos de substituição célere de comportamentos e produtos migrar num sentido e depois caminhar no sentido inverso é prova de capacidade adaptativa. E se chegar o momento em que o livro digital prevalecer sobre o impresso?
Os mais flexíveis dirão que o mercado se adaptará. Lembrarão que a popularização dos tênis praticamente extinguiu as profissões de sapateiros e engraxates, mas não são esses os que aumentaram a violência social; que o prêt-à-porter desinstituiu a alfaiataria, mas os alfaiates se adaptaram a novas modalidades de prestação de serviços; que a Internet está matando os jornais impressos, mas as bancas continuam funcionamento, vendendo chaveiros e doces de amendoim junto a livros para concursos e livros de piadas; e os autores continuarão protegidos em seus direitos, talvez até mesmo exercendo maior controle sobre eles.
Mesmo assim empresários da indústria e distribuição realmente amantes de livros continuarão a produzir e a comercializar. Tenho uma saudade imensa de quando fui universitário no Rio de Janeiro, nos anos 1970. Um dos programas dos jovens era passear pelas ruas do Centro procurando livrarias, desde a Rua Sete de Setembro até a Rua das Marrecas na Cinelândia. Por isso escolho essas palavras de Guilherme Cavallari para fechar este artigo:
“Livros são bandeiras que proclamam nosso compromisso com tudo aquilo que é etéreo e fundamental, impalpável e essencial, profundamente humano. Bandeiras devem ser carregadas em lugar visível, hasteadas acima de nossas cabeças. Livros são ideias, ideais, conceitos, teorias, possibilidades, culturas, olhares e vozes. Vidas encadernadas e organizadas para serem perscrutadas e absorvidas. Quem lê livros vive muitas vidas.”
Mas o que realmente me assustou foi ver a curva de variação do número de (livrarias + papelarias) com o tempo na sequência de anos que vai de 2007 a 2017. Os dados são da Confederação Nacional do Comércio de Bens, Serviços e Turismo (CNC) mostrando uma queda de 21083 estabelecimentos em 10 anos, aproximadamente 29%. E o que é pior, o decrescimento é uma função bem definida, com redução das taxas de modo não linear. Basta lembrar que em cidades pequenas do interior e até mesmo nos bairros de periferia das grandes cidades papelarias também acumulam funções de livrarias – atualmente elas se resumem aos livros didáticos, talvez o único segmento ainda promissor.
O efeito cascata previsto por Luiz Schwarz, editor da Companhia de Letras, projeta que a inadimplência das duas livrarias trará mais dificuldades ainda para vender livros e recuperar os prejuízos acumulados. A recessão do setor, já observada em 2017, tende a aumentar em 2018. Os novos autores praticamente estão fora dos planos de lançamento e corre-se o risco de haver fechamento de lojas físicas em cidades do interior do país. Não se pode poupar de culpa o setor, por sua tradicional inércia em relação às mudanças. Sempre acreditam em “recuperação” e “fidelidade”.
Mais pessimista que os acomodados editores, Pedro Herz, o presidente do Conselho de Administração da Livraria Cultura declarou à FECOMERCÍO nos meados de agosto de 2018 que o leitor está acabando – e esta é a justificativa para presumir que a recuperação da economia editorial no Brasil será mais lenta do que a economia do país em geral. Sua afirmativa tem base em um argumento que merece comprovação, mas, em tese é interessante: os que não lêem com regularidade, alegam que isto se deve ao fato de o livro ser caro, forçando as livrarias a praticarem preços muito baixos. Em suas palavras: quando se discute o preço do livro se está defendendo o não leitor. Particularmente, não tenho dúvidas de que o leitor é uma semente a ser plantada e cuidada; de dentro para fora, do lar para a instituição escolar e da escola para a sociedade.
Herz define magistralmente o ato de ler como “atividade silenciosa, solitária e sem interação”. Como fazer isso nos dias em que a má Psicologia, em nome da busca sem limites da felicidade, impôs como única obrigação a vida social? Como esperar que tais pessoas leiam se elas pensam que quem não levar a vida na farra não a aproveita? E a “escola” que foi jogada no lixo, nivelando por baixo o ensino e exterminando a disciplina e a cobrança? Ademais, ler é algo que se aprende na família, mas nos últimos anos até o conceito de família foi destruído. A “scholé” dos gregos, sinônimo de lugar do ócio digno, onde o trabalho braçal cedia a vez ao pensamento e à introspecção criativa, não passa nem perto dos nossos fundamentos atuais de educação.
Já em 2016 o Estado de Minas postava uma matéria de meio de ano indicando a adaptação ao formato digital de livros no Brasil, ao mesmo tempo em que acusava acordo entre editoras na manutenção injustificada de preço elevado de e-books em relação a outros países. O representante de uma editora chegou a afirmar que uma das razões era a conversão do texto físico para o digital. Um reconhecido consultor internacional que trabalhou para a Amazon informou que o e-book tem custo irrisório, mas o propósito das editoras em manter preços elevados é para não canibalizar o formato impresso. No Brasil esta política foi levada a sério e, como resultado, na média o e-book custa o dobro do que custa nos EUA (aqui ele chega ao consumidor em torno de R$ 16,00, contra R$ 23,00 do livro impresso).
Em julho deste ano o caderno de literatura da Folha de Pernambuco apresentou uma importante matéria sob o título “Perspectivas sobre o mercado do livro digital no Brasil: será o fim do papel impresso?” onde é apontado que “formato físico e digital devem conviver por bastante tempo”. A autora, Mariana Mesquita, reporta às previsões apocalípticas e ao mesmo tempo instigantes de filósofos do porte de Walter Benjamin (anos 1920) e Marshall McLuhan (década de 1960) antecipando o declínio do livro analógico.
Embora se constate que essas previsões estão longe de se materializar em qualquer parte do mundo, tem-se como certo que, num futuro incerto, isso irá ocorrer efetivamente. A apologia ao livro de papel e ao seu valor lúdico está longe de ser uma questão central nessas discussões. Parece mesmo que o único sentido de trazer à tona as agruras financeiras das editoras e distribuidoras brasileiras está na defesa da saúde financeira do setor – algo que, objetivamente, não pode ser descartado. Mas ninguém luta com a necessária obstinação para se ter uma política permanente em defesa do livro, inclusive nos mecanismos de incentivo e controle que façam os preços de mercado baixarem a níveis estimuladores para o consumo. Seria necessário haver uma Lei Rouanet para ensinar a ler? Pois os preços só baixam, mantendo a capacidade de sobrevivência do empreendimento, se o volume de vendas aumentar.
O e-book não tem uma porcentagem significativa de vendas (1,9% segundo levantamentos recentes), mas promete revolucionar o mercado livreiro em algum momento difícil de ser previsto. Mais vitalidade representa o segmento de vendas dos usados. Menos mal! Dessa forma, livros digitais e sebos representam uma ameaça real à indústria gráfica, um duro golpe nos investimentos e nos empregos. É um poderoso conflito de interesses essa luta pelo ganho financeiro; de um lado os eventuais e raros leitores fiéis desejando economizar e de outro toda a cadeia de editores e distribuidores precisando sobreviver. E, no meio disso, está o autor.
Mesmo que o livro digital continue desprestigiado no Brasil (representam, em média, apenas 3% das receitas das grandes editoras) as perspectivas de crescimento são boas, projetando a tendência de crescimento e deixando gráficos, editoras, indústria do papel, distribuidoras, pontos de venda e outra série de coisas em estado de preocupação. Entre 2014 e 2015 houve um incremento de 4,2%, mas o faturamento aumentou em 21%. Mas será que nós, criados dentro de bibliotecas e livrarias manuseando e cheirando páginas, com livros sob os travesseiros para nos fazer companhia em noites de insônia, vamos aceitar esta virada com caras de derrotados? Será que não temos nenhuma convicção, que achamos inevitável entregar os pontos, nos auto-declararmos vencidos?
Hoje, a praticidade inclui a lei do caminho mais curto, quase sempre sinônimo de indolência e inimigo do aprendizado. Tocar um botão e “ouvir” um livro é mais fácil do que limpar os óculos, sentar e ler. Komo e Kindle são objetos de desejo, vulgarizados, que provavelmente contarão com todas as funcionalidades para que o leitor interaja em tempo real com o escritor, algo impossível quando se lê um livro físico. Herz conclui que esse não é exatamente um leitor. O leitor de fato anda sumido e talvez nem mais possa ser recuperado. Você que é pai ou mãe: não se sente tentado a presentear seus filhos com um livro por mês? Alguns são do preço de um hambúrguer.
Em meio ao fogo cruzado e ferozes debates sobre o movimento “Escola Sem Partido” não se tem visto discussões mais profundas sobre a crise do livro no Brasil, que não é de hoje, mas se agrava em velocidade preocupante. Exceto por ocasionais orquestrações da mídia, que se engaja voluntariamente nesta causa, tudo o mais é silêncio. A ressalva importante é que o tema foi mais frequente neste conturbado 2018.
Realmente, sob o ponto de vista cultural, não interessa muito a questão da plataforma de leitura, embora a tradição de manusear o livro impresso tenha um insubstituível conteúdo de magia. Uma pesquisa feita nos EUA em 2016 detectou que os norte-americanos têm ampla preferência por esta modalidade, mas também informa que os leitores de livros digitais consomem mais títulos por ano, numa relação de 24:15. Antes que os apressados tomem estes números como atestado de avanço cultural naquele país é necessário investigar um pouco mais e então é inevitável interrogar: as pessoas estão realmente treinadas para ler mais e manter o mesmo nível de concentração na leitura?
O presidente do Sindicato Nacional dos Editores de Livros garante que o mercado de livros digitais só funciona para leitores assíduos, o que é uma constatação interessante. Além disso, destaca que mesmo na pátria dos livros digitais, os EUA, eles ainda não superaram o patamar de 15% do mercado total de livros. Devemos ter a consciência de que a indústria gráfica brasileira representa um mercado de mais de dezenove mil empresas, gerando cerca de centro e oitenta mil empregos e representando uma movimentação financeira anual da ordem de 500 milhões de dólares, entre importações e exportações de livros. Uma quantia equivalente é investida na compra de máquinas e equipamentos. A triste notícia é a derrocada do setor: os números indicam redução de empregos, exportação e fechamento de empresas. Comparado com 2016 o ano de 2017 apresentou uma redução de 134% no saldo comercial. E tudo isso acontecendo mesmo com a predominância dos livros impressos sobre os digitais, não menos que 98,9% do total das vendas.
Diz-se que a Amazon, pioneira na venda de e-book, pensa agora em aumentar o número de lojas físicas nos EUA. Monteiro Lobato, desejando eliminar a intermediação na venda de seus livros, foi inovador quando empreendeu uma caçada aos leitores enviando-os, sob consignação, às bancas de jornais. Talvez tenha inaugurado a onda de novos pontos de vendas; hoje, não é incomum encontrarmos livros em supermercados e em lojas de conveniência.
Mas vamos discutir a falta de leitores e a decadência do mercado livro sob outro ponto de vista. O Projeto Gutenberg, criado por Michael Hart em 1971 com a montagem da primeira biblioteca digital da história, já tem quase cinco décadas. Como se vê, é muito tempo para que o sucesso da plataforma digital fosse mais longe. Se ela não representa uma ameaça real e verdadeiramente competitiva com os livros impressos, por que o setor está em crise? Vamos apresentar uma pauta de lacunas: a) ousadia e criatividade aos livreiros; b) maior divulgação dos produtos; c) facilitação de preços; d) promoção de mais eventos; e) formação de novos leitores críticos. Quantas vezes a mídia já se engajou na nobre causa da leitura de modo permanente e não apenas no dia do escritor ou no dia do livro?
De qualquer forma o que importa é que as pessoas leiam. O autor Guilherme Cavallari, mesmo admitindo que não gostava de estudar afirma: “Tudo o que sei aprendi com os livros”. Ademais, chegar-se-á ao ponto de levantar bandeiras em prol dessa ou daquela modalidade; uns vão admitir, em defesa do e-book que milhões de árvores serão poupadas por ano ou que poderão ser eliminados os custos de transporte e armazenamento de livros; outros pensarão no óbvio keynesianismo de proteção do Estado ao segmento e outros ainda pensarão no livre mercado com a expansão de investimentos, renda e emprego. O que nos falta é um diagnóstico muito simples: onde estão os leitores, onde eles foram parar?
Mesmo assim se chegou ao Brasil, em 2017, a um total de quase 4,5 milhões de livros comercializados (uma média de 4,96 livros/ano para os brasileiros alfabetizados). Todavia, não há garantia de que todos os livros tenham sido lidos: presenteia-se com livros pessoas que não gostam de ler ou compra-se livros para enfeitar estantes e ostentar cultura para visitantes.
Tenho piedade pelos que sonham devotar suas vidas a escrever contando com algum retorno financeiro. Certa vez li uma frase de Gabriel Garcia Marquez que tentarei reproduzir sem ser exatamente fiel às suas palavras: se você quiser ser escritor que seja um baita escritor, pois se não for haverá melhores meios de morrer de fome. Mesmo do alto de meu habitual otimismo sou obrigado e concordar e até ir mais longe: morrerão mesmo, principalmente quando o e-book substituir completamente o livro impresso. Ou, caetaneando: “ou não”.
Pois, se caetanear for possível talvez haja um ganho interessante com o mercado digital conquistando novos adeptos da leitura pensando na vantagem de se comprar um livro em qualquer livraria do mundo e tê-lo à disposição para leitura com um único clique, que vai demorar poucos segundos. Mas o verdadeiro leitor amante do livro impresso, desde que ele tenha paciência para esperar a chegada do correio, terá um prazer redobrado, simbolicamente iniciado com a abertura do pacote. Mas temos de admitir que em tempos de substituição célere de comportamentos e produtos migrar num sentido e depois caminhar no sentido inverso é prova de capacidade adaptativa. E se chegar o momento em que o livro digital prevalecer sobre o impresso?
Os mais flexíveis dirão que o mercado se adaptará. Lembrarão que a popularização dos tênis praticamente extinguiu as profissões de sapateiros e engraxates, mas não são esses os que aumentaram a violência social; que o prêt-à-porter desinstituiu a alfaiataria, mas os alfaiates se adaptaram a novas modalidades de prestação de serviços; que a Internet está matando os jornais impressos, mas as bancas continuam funcionamento, vendendo chaveiros e doces de amendoim junto a livros para concursos e livros de piadas; e os autores continuarão protegidos em seus direitos, talvez até mesmo exercendo maior controle sobre eles.
Mesmo assim empresários da indústria e distribuição realmente amantes de livros continuarão a produzir e a comercializar. Tenho uma saudade imensa de quando fui universitário no Rio de Janeiro, nos anos 1970. Um dos programas dos jovens era passear pelas ruas do Centro procurando livrarias, desde a Rua Sete de Setembro até a Rua das Marrecas na Cinelândia. Por isso escolho essas palavras de Guilherme Cavallari para fechar este artigo:
“Livros são bandeiras que proclamam nosso compromisso com tudo aquilo que é etéreo e fundamental, impalpável e essencial, profundamente humano. Bandeiras devem ser carregadas em lugar visível, hasteadas acima de nossas cabeças. Livros são ideias, ideais, conceitos, teorias, possibilidades, culturas, olhares e vozes. Vidas encadernadas e organizadas para serem perscrutadas e absorvidas. Quem lê livros vive muitas vidas.”