Viewfinder: um caso extremo de depravação sexual

Ninguém ignora que os mangás yaoi ( que mostram relacionamentos entre homens) têm como característica recorrente o estupro romantizado. Entretanto, poucos chegam a extremos como Viewfinder, de autoria de Yamane Ayano (também autora de Crimson Spell). Neste mangá, todas as perversões sexuais são retratadas como parte normal do relacionamento entre duas pessoas.

O seme (ativo) é Asami Ryuichi, um chefe da yakuza e o uke (passivo) é Takaba Akihito, jornalista fotográfico em início de carreira que deseja ter o seu furo jornalístico e tira fotos que comprometem o criminoso. Em vez de fazer o habitual, que seria mandar matar o fotógrafo, Asami se interessa por ele. Segundo o mafioso, o jovem faz seu coração pular. Assim, ele deseja capturá-lo e torná-lo seu.

A premissa – a relação entre duas pessoas de lados opostos da lei - é bastante interessante e costuma render boas tramas nas mãos de um autor preocupado em construir uma trama verossímil. Dois bons exemplos são outros dois mangás yaoi cujos títulos são Honto Yajuu e Tightrope. Entretanto, não é preciso ler muitas páginas para ver que a verossimilhança não é uma preocupação de quem escreveu Viewfinder.

Além do estupro romantizado, Viewfinder tem um monte de inverossimilhanças grosseiras que não deixam de passar despercebidas a qualquer leitor com o mínimo de consciência crítica. A própria construção do perfil de Akihito é um bom exemplo. Em um volume especial, diz-se do jovem que ele foi delinquente juvenil, tendo sido detido várias vezes e se regenerado graças aos conselhos do pai. Porém, ninguém que tenha um passado desses seria infantil e ingênuo, sempre se metendo em encrencas e precisando ser salvo como Akihito. Qualquer um presume que um ex-delinquente é uma pessoa com um histórico de violência e delitos e é de se esperar que saiba, no mínimo, se defender. Soa muito estranho que alguém que foi delinquente seja bobo e não saiba identificar o perigo.

Outro problema é que a profissão de jornalista - especialmente investigativo - exige que se seja esperto e saiba identificar situações de perigo. E Akihito vive se envolvendo em problemas por causa da sua ingenuidade. A autora também comete um grande erro ao mostrar que ele, sendo jornalista, só fala japonês. Isso soa estranho num país tão avançado em questão de globalização e tão exigente com a educação como o Japão. Quem é jornalista precisou estudar e deveria falar pelo menos inglês, língua essencial num mundo globalizado. Com certeza, na vida real, Akihito saberia da importância de se falar outras línguas para que crescesse na profissão.

Asami, para possuir Akihito, arma uma armadilha e o captura, estuprando-o com instrumentos de fetiche sadomasoquista. Ver o rapaz sendo estuprado pelo seme sádico e cruel é um desafio à nossa resistência. As expressões de Akihito são de dor e medo, mas tudo é conduzido de forma a se entender que Asami o está estuprando porque está apaixonado pois, de acordo com suas palavras, Akihito é lindo demais para que ele o deixe ir.

Se a história fosse escrita de forma diferente, focando no desenvolvimento do relacionamento, - com cada um aprendendo a conhecer o outro – conflitos internos e tensão sexual, até daria para torcermos pelo casal principal. O traço do desenho é muito bem-feito e tanto o seme quanto o uke são lindos, formando um par bastante atraente.

Não bastasse ser estuprado e perseguido por Asami ( que o persegue mesmo depois de soltá-lo, chegando a ir a seu apartamento), Akihito tem o azar de conhecer Feilong, chefe mafioso chinês. Feilong foi amante de Asami por um breve tempo no passado e deseja se vingar dele, pois acredita que Asami o traiu e abandonou em Hong Kong, anos atrás. Então, ele sequestra Akihito e o leva para Hong Kong, onde o estupra e força a ser seu escravo sexual.

Que palavras podemos usar para definir quem faz isso com outro ser humano que nada tem a ver com seus problemas ? Com certeza, é uma pessoa vil e abusiva. Todavia, a autora conduz a trama de forma a que se simpatize com Feilong. Ele age assim porque está magoado com Asami e se sente solitário. Como se hovesse justificativa para o fato de você estuprar, sequestrar e forçar a uma vida de servidão sexual alguém que nada tem a ver com sua rixa pessoal com outra pessoa. Ver o sofrimento de Akihito ao lado do chinês só nos faz perguntar: como ele não enlouqueceu? No entanto, com o tempo, Feilong desenvolve afeto pelo pobre uke (síndrome de Lima*) e chega a pedir que se torne seu amante e viva com ele. Mas Asami, como um príncipe encantado, vai a Hong Kong e resgata Akihito.

Feilong, deixado para trás, arrepende-se de ter capturado o jovem, que nada tinha a ver com sua rixa com Asami. Ele também pensa que, se tivesse agido de outra forma, talvez Akihito houvesse querido ficar com ele. Vale mencionar que, após o resgate, Feilong se tornou um personagem desnecessário na história. Aliás, seria melhor que ele nunca houvesse aparecido.

O engraçado é que Asami e Feilong - dois estupradores - são adorados por fãs de Viewfinder e do gênero yaoi. Asami é o seme preferido de muitas fujoshis(garotas fãs de yaoi) por ser dominante, lindo e sádico. Embora a maioria de fãs torça por um final feliz entre Asami e Akihito, não falta quem torça por um final feliz entre Asami e Feilong e até entre Feilong e Akihito. É bem possível que isso se deva ao fato de Asami e Feilong serem jovens, bonitões e charmosos. Se eles fossem velhos, feios e repulsivos, ninguém acharia lindo vê-los estuprando Akihito.

Uma outra inverossimilhança grosseira é que Akihito não fica com nenhuma sequela física e/ou emocional decorrente de todas as violências que sofreu. E sabemos bem que nenhuma pessoa – por mais forte que seja sua estrutura emocional – ficaria sem traumas depois de ser sequestrada e estuprada. Mas ele se recupera depois de Asami levá-lo para passar um tempo numa ilha tropical depois de resgatá-lo do cativeiro em Hong Kong. Tudo isso é um desrespeito a quem sofreu essas violências na vida real. Minimiza todos os danos sofridos por quem foi abusado, humilhado e privado de sua liberdade como Akihito o foi.

Está certo que estupro, sequestro, escravidão sexual e relacionamentos abusivos existem na vida real e podem ser mencionados na ficção. Só que eles devem ser retratados como são, nunca de forma romantizada, como se ser estuprado não fosse nada de mais. Não se exige que o autor levante uma bandeira. Apenas que mostre que tais coisas são erradas e prejudiciais a quem as sofre. Quem foi estuprado e obrigado a ser escravo sexual se sentiria ofendido ao ler algo que romantiza violência sexual.

O mangá ainda não foi finalizado, mas já evoluiu bastante. Akihito, como todo bom uke, desenvolveu Síndrome de Estocolmo ** e caiu de amores pelo seme estuprador. Os dois inclusive passaram a viver juntos, como se fossem marido e mulher. Asami – que começou sequestrando e estuprando o uke - se tornou um marido protetor e amoroso e Akihito, uma perfeita rainha do lar, cozinhando e cuidando da casa. Todavia, é importante acrescentar que, mesmo ambos vivendo juntos, Asami continua forçando Akihito a ter relações sexuais. O mangá tem muitos capítulos extras – que não fazem parte da trama principal – em que o seme avança sobre o uke, ainda que este lhe suplique para que pare. Isso configura uma situação similar ao estupro dentro do casamento. Em outras palavras, Asami continua a estuprar Akihito regularmente.

Que se pode concluir ao ler Viewfinder? Que é um caso extremo de depravação sexual e um amontoado de situações inverossímeis. Leitoras de todo o mundo acham lindo ver o seme abusador dominando o uke submisso, mas certamente pensariam muito diferente se passassem pelo mesmo que ele passou. Também não se pode esquecer que homossexuais odeiam histórias yaoi porque, conforme suas palavras, elas associam a homossexualidade à perversão sexual.

*Síndrome de Lima é o oposto da Síndrome de Estocolmo. Nela, o sequestrador desenvolve empatia e afeto pela vítima de sequestro.

** Na síndrome de Estocolmo, a pessoa que foi sequestrada ou abusada desenvolve afeto pelo sequestrador ou abusador.