Entrevista histórica - Fernando Pessoa
Raras entrevistas ao poeta Fernando Pessoa em 1923.
Da série: Fernando Pessoa (e seus eus) que poucos conhecem.Raras entrevistas ao poeta Fernando Pessoa em 1923.
[grifo meu – “texto fiel, sem correção e palavras em português da época” ]
Entervista - I
Boa tarde, Fernando Pessoa. Agradeço a sua disponibilidade e espero que lhe agrade o local que escolhemos para a nossa entrevista.
Fernando Pessoa – Agrada-me o local, mas estou surpreendido com a estátua que de minha pessoa aqui colocaram?!..
O Chiado também está mais agitado e barulhento… As pessoas que passam quase que correm… Os seus rostos são fechados.
Mas diga, que curiosidade tem a meu respeito?
Primeiro gostaríamos que nos fornecesse alguns dados biográficos.
Fernando Pessoa – Pois bem, nasci em Lisboa, às 15:20 horas, do dia de Sto. António do ano de 1888.
Meu pai, Joaquim de Seabra Pessoa, natural de Lisboa, era funcionário público do Ministério da Justiça e crítico musical do “Diário de Notícias”; minha mãe, D. Maria Magdalena Pinheiro Nogueira Pessoa, era natural da ilha Terceira.
Por acaso, estamos junto da igreja em que fui baptizado, sabe, foi aqui mesmo, na Igreja dos Mártires.
Então Lisboa foi a sua cidade, não?
Fernando Pessoa – Bem, nasci em Lisboa mas parte da minha infância e a adolescência e juventude foram passadas em Durban, na África do Sul.
E porquê tão longe e em terras estrangeiras?
Fernando Pessoa – O meu destino assim o determinava; estava escrito nos astros.
Meu pai morre aos 43 anos, vítima de tuberculose e o meu irmão Jorge morre no ano a seguir, antes de completar 1 ano. Eu e minha mãe ficamos sozinhos e com problemas em subsistir. Até a mobília leiloamos e mudamos de casa, para um modesto 3º andar da Rua de São Marçal.
Minha mãe volta a casar com o cônsul de Portugal em Durban e daí a minha ida e vida em África.
Que recordações tem desse período da sua vida?
Fernando Pessoa – Ora, senti-me longe e estranho, senti saudade e solidão, mas também me enriqueci. Recebi uma educação britânica, rigorosa, mas que me proporcionou um óptimo conhecimento da língua inglesa e da sua literatura.
Mais tarde foi-me muito útil a nível profissional, quando me tornei correspondente comercial em Lisboa.
É verdade que também escreveu em inglês?
Fernando Pessoa – Claro que sim! Tenho publicada com escritos em português?!
Os outros livros eram colectâneas dos meus poemas ingleses: Antinous e 35 sonetos e English Poems I – II e III.
Quando começou a escrever? Recorda-se?
Fernando Pessoa – Sim, sim… Logo após a morte de meu pai.
Comecei a escrever com o pseudónimo Chevalier de Pas, e o meu primeiro poema tinha a seguinte epígrafe: À Minha Querida Mamã.
Como faço o curso primário e toda a formação académica em Durban, escrevo tanto em português como em inglês. Cheguei mesmo, entre 899 candidatos, a receber o Queen Victoria Memorial Prize na minha prova de “ensaio de estilo inglês”, aquando da minha candidatura à Universidade do Cabo da Boa Esperança.
Com que idade regressa a Lisboa?
Fernando Pessoa – Só regressei em 1905, com 17 anos e os meus estudos completos.
Então e iniciou logo a sua vida profissional?
Fernando Pessoa – Não. Em 1906 matriculei-me no Curso Superior de Letras, mas não cheguei a completar o primeiro ano.
Salve, entrei em contacto com importantes escritores da nossa língua e interessei-me pela obra de Cesário Verde e pelos sermões do nosso Padre António Vieira.
Havia tanto para ler, tanto para descobrir e conhecer…
Quantas horas aqui passei em discussões filosóficas, sociológicas, político-religiosas e literárias.
A minha vida profissional iniciou-se em 1908 e consistia na tradução de correspondência comercial. Era um trabalho que me deixava liberdade para a minha grande vocação de poeta e escritor.
Em 1912 iniciei a publicação de ensaios e críticas literárias na revista “Águia”, tendo colaborado também na “Orfeu”, no “Centauro”, no “Portugal Futurista” e noutras.
Como explica a existência dos seus heterónimos?
Fernando Pessoa – Bom, talvez em mim coexistam várias personalidades, várias sensibilidades, várias realidades de Realidade…
O que é a para Álvaro de Campos?...
Será que é o mesmo para Ricardo Reis e Alberto Caeiro? Será que a sua noção de Realidade é a mesma daquele estranho transeunte? (passa um “gótico” do outro lado da rua). A sua Verdade é a minha Verdade?...
Então, mas assim não há certezas, não há verdades?
Fernando Pessoa – Até as certezas/verdades científicas se têm mostrado erradas ao longo dos tempos… Há tantas verdades! A minha, a sua, a daquela personagem que passou… Há que procurar, há que questionar e reflectir.
Encontramo-nos já no século XXI. Considera que o Homem realizou grandes progressos e o mundo avançou?
Fernando Pessoa – Ao longo da sua existência, o Homem tem realizado grandes avanços técnicos e científicos, mas parece’me que mesmo no século XXI a Ignorância, a Tirania e o Fanatismo permanecem nas sociedades modernas.
Se pudesse em prosa e em poesia, continuaríamos a lutar para o “…progresso da civilização e o alargamento da consciência da humanidade”.
Agradecemos imenso o tempo que nos dispensou e, sobretudo, a beleza, o sentimento e a grandiosidade da sua obra.
Fernando Pessoa – O prazer foi meu. Sei que depois de morto têm compilado e publicado os meus escritos e agradeço esse favor. Gostaria de vos deixar com umas palavras do meu heterónimo Bernardo Soares: “minha pátria é a língua portuguesa”.
Até sempre meu Amigo e mestre Poeta Fernando Pessoa
Entevista – II
Outra com fieis palavras 1923
Outra com fieis palavras 1923
[grifo meu – “texto fiel, sem correção e palavras em português da época” ]
O escritor Fernando Pessoa expõe-nos as suas ideias sobre os vários aspectos da arte e da literatura portuguesas.
Entrevistar Fernando Pessoa não é fácil. Só é fácil entrevistar os que não pensam, os que não se importam de jogar palavras, ao acaso, atirando-as impudicamente ao vento.
Fernando Pessoa, quer como Fernando Pessoa, quer como Álvaro de Campos – o engenheiro alucinado que comporta o seu segundo eu, e que aparece em toda a parte, enchendo a voz de louvores e raios para a Vida – raios partam a Vida e quem lá ande! -é sempre um voluptuoso do raciocínio, um amante da inteligência, podemos dizer: um criador duma nova Razão. Paradoxal? Sem dúvida. Mas há tantas maneiras de ser paradoxal!
A entrevista que se segue, toda escrita por Fernando Pessoa – nem podia deixar de ser, visto Fernando Pessoa possuir uma sintaxe própria para a lógica própria dos seus pensamentos, misto de seriedade e de ironia, vai decerto prender o espírito dos leitores…
Fernando Pessoa responde às perguntas que lhe fizemos:
– Que pensa da nossa crise? Dos seus aspectos – político, moral e intelectual?
– A nossa crise provém, essencialmente, do excesso de civilização dos incivilizáveis. Esta frase, como todas que envolvem uma contradição, não envolve contradição nenhuma. Eu explico.
Todo povo se compõe de uma aristocracia e de ele mesmo. Como o povo é um, esta aristocracia e este ele mesmo têm uma substância idêntica; manifestam-se, porém, diferentemente A aristocracia manifesta-se como indivíduos, incluindo alguns indivíduos amadores; o povo revela-se como todo ele um indivíduo só. Só colectivamente é que o povo não é colectivo.
O povo português é, essencialmente, cosmopolita. Nunca um verdadeiro português foi português: foi sempre tudo. Ora ser tudo em um indivíduo é ser tudo; ser tudo em uma colectividade é cada um dos indivíduos não ser nada. Quando a atmosfera da civilização é cosmopolita, como na Renascença, o português pode ser português, pode portanto ser indivíduo, pode portanto ter aristocracia. Quando a atmosfera da civilização não é cosmopolita – como no tempo entre o fim da Renascença e o princípio, em que estamos, de uma Renascença nova – o português deixa de poder respirar individualmente. Passa a ser só portugueses. Passa a não poder ter aristocracia. Passa a não passar. (Garanto-lhe que estas frases têm uma matemática íntima.)
Ora um povo sem aristocracia não pode ser civilizado. A civilização, porém, não perdoa. Por isso esse povo civiliza-se com o que pode arranjar, que é o seu conjunto. E como o seu conjunto é individualmente nada, passa a ser tradicionalista e a imitar o estrangeiro, que são as duas maneiras de não ser nada. É claro que o português, com a sua tendência para ser tudo, forçosamente havia de ser nada de todas as maneiras possíveis. Foi neste vácuo de si próprio que o português abusou de civilizar-se. Está nisto, como lhe disse, a essência da nossa crise.
As nossas crises particulares procedem desta crise geral. A nossa crise política é o sermos governados por uma maioria que não há. A nossa crise moral é que desde 1580 – fim da Renascença em nós e de nós na Renascença – deixou de haver indivíduos em Portugal para haver só portugueses. Por isso mesmo acabaram os portugueses nessa ocasião. Foi então que começou o português à antiga portuguesa, que é mais moderno que o português, e é o resultado de estarem interrompidos os portugueses. A nossa crise intelectual é simplesmente o não termos consciência disto.
Respondi, creio, à sua pergunta. Se V. reparar bem para o que lhe disse, verá que tem um sentido. Qual, não me compete a mim dizer.
– Que pensa dos nossos escritores do momento, prosadores poetas e dramaturgos?
– Citar é ser injusto. Enumerar é esquecer. Não quero esquecer ninguém de quem me não lembre. Confio ao silêncio a injustiça. A ânsia de ser completo leva ao desespero de o não poder ser. Não citarei ninguém. Julgue-se citado, quem se julgue com direito a sê-lo. Resolvo assim todos. Lavo as mãos, como Pilatos; lavo-as, porém, inutilmente, porque é sempre inutilmente que se faz um gesto simplificador. Que sei eu do presente, salvo que ele é já o futuro? Quem são os meus contemporâneos? Só o futuro o poderá dizer. Coexiste comigo muita gente que vive comigo apenas porque dura comigo. Esses são apenas os meus conterrâneos no tempo; e eu não quero ser bairrista em matéria de imortalidade. Na dúvida, repito, não citarei ninguém.
– Estaremos em face de uma renascença espiritual?
– Estamos tão desnacionalizados que devemos estar renascendo. Para os outros povos, na sua totalidade eles próprios, o desnacionalizar-se é o perder-se. Para nós, que não somos nacionais, o desnacionalizar-se é o encontrar-se. Apesar dos grandes obstáculos à nossa regeneração – todas as doutrinas de regeneração – estamos no início de tornar a começar a existir. Chegámos ao ponto em que colectivamente estamos fartos de tudo e individualmente fartos de estar fartos. Extraviámo-nos a tal ponto que devemos estar no bom caminho. Os sinais do nosso ressurgimento próximo estão patentes para os que não vêem o visível. São o caminho-de-ferro de Antero a Pascoaes e a nova linha que está quase construída. Falo em termos de vida metálica porque a época renasce nestes termos. O símbolo, porém, nasceu antes dos engenheiros.
Nada há a esperar, é certo, das classes dirigentes, porque não são dirigentes; e ainda menos da proletariagem, porque ser inferior não é uma superioridade. Com razão lhes chamei eu, a estes, subgente, num artigo da antiga Águia – da Águia que voava. Só a burguesia, que é a ausência da classe social, pode criar o futuro. Só de uma classe que não há pode nascer uma classe que não há ainda. Seja como for, avancemos confiadamente. Todos os caminhos vão dar à ponte quando o rio não tem nenhuma.
– O que se deve entender por arte portuguesa? Concorda com este termo? Há arte verdadeiramente portuguesa?
– Por arte portuguesa deve entender-se uma arte de Portugal que nada tenha de português, por nem sequer imitar o estrangeiro. Ser português, no sentido decente da palavra, é ser europeu sem a má-criação de nacionalidade. Arte portuguesa será aquela em que a Europa – entendendo por Europa principalmente a Grécia antiga e o universo inteiro – se mire e se reconheça sem se lembrar do espelho. Só duas nações – a Grécia passada e Portugal futuro – receberam dos deuses a concessão de serem não só elas mas também todas as outras. Chamo a sua atenção para o facto, mais importante que geográfico, de que Lisboa e Atenas estão quase na mesma latitude.
– O regionalismo na literatura e na pintura?
– O regionalismo é uma degeneração gordurosa do nacionalismo, e o nacionalismo também. E como o nacionalismo é anti-português (sendo bom, cá no Sul, só para os povos latinos e ibéricos), o regionalismo em Portugal é uma doença do que não há. Amar a nossa terra não é gostar do nosso quintal. E isto de quintal também tem interpretações. O meu quintal em Lisboa está ao mesmo tempo em Lisboa, em Portugal e na Europa. O bom regionalismo é amá-lo por ele estar na Europa. Mas quando chego a este regionalismo, sou já português, e já não penso no meu quintal. (O facto de o meu quintal ser inteiramente metafórico não diminui a verdade de tudo isto: Deus, e o próprio universo, são metáforas também.)
– Teriam existido em toda a nossa história literária períodos de criação?
– O nosso único período de criação foi dedicado a criar um mundo. Não tivemos tempo para pensar nisso. O próprio Camões não foi mais que o que esqueceu fazer. Os Lusíadas é grande, mas nunca se escreveu a valer. Literariamente, o passado de Portugal está no futuro. O Infante, Albuquerque e os outros semideuses da nossa glória esperam ainda o seu cantor. Este poderá não falar deles; basta que os valha em seu canto, e falará deles. Camões estava muito perto para poder sonhá-los. Nas faldas do Himalaia o Himalaia é só as faldas do Himalaia. É na distância, ou na memória, ou na imaginação que o Himalaia é da sua altura, ou talvez um pouco mais alto. Há só um período de criação na nossa história literária: não chegou ainda.
– Continuará sendo o lirismo a nossa feição literária predominante?
– Há duas feições literárias -a épica e a dramática. O lirismo é a incapacidade comovida de ter qualquer delas. O que é ser lírico? É cantar as emoções que se têm. Ora cantar as emoções que se têm faz-se até sem cantar. O que custa é cantar as emoções que se não têm. Sentir profundamente o que se não sente é a flâmula de almirante da inspiração. O poeta dramático faz isto directamente; o poeta épico fá-lo indirectamente, sentindo o conjunto da obra mais que as partes dela, isto é, sentindo exactamente aquele elemento da obra de que não pode haver emoção nenhuma pessoal, porque é abstracto e por isso impessoal. Fomos esboçadamente épicos. Seremos inviolavelmente dramáticos. Fomos líricos quando não fomos nada. O lirismo só continuará sendo a nossa feição predominante se não formos capazes de ter feição predominante.
– O que calcula que seja o futuro da raça portuguesa?
-O Quinto Império. O futuro de Portugal —que não calculo mas sei —está escrito já, para quem saiba lê-lo, nas trovas do Bandarra, e também nas quadras de Nostradamus. Esse futuro é sermos tudo. Quem, que seja português, pode viver a estreiteza de uma só personalidade, de uma só nação, de uma só fé? Que português verdadeiro pode, por exemplo, viver a estreiteza estéril do catolicismo, quando fora dele há que viver todos os protestantismos, todos os credos orientais, todos os paganismos mortos e vivos, fundindo-os portuguesmente no Paganismo Superior? Não queiramos que fora de nós fique um único deus! Absorvamos os deuses todos! Conquistámos já o Mar: resta que conquistemos o Céu, ficando a terra para os Outros, os eternamente Outros, os Outros de nascença, os europeus que não são europeus porque não são portugueses. Ser tudo, de todas as maneiras, porque a verdade não pode estar em faltar ainda alguma coisa! Criemos assim o Paganismo Superior, o Politeísmo Supremo! Na eterna mentira de todos os deuses, só os deuses todos são verdade.
Créditos:
Ultimatum e Páginas de Sociologia Política . Fernando Pessoa.
1ª publicação. in Revista Portuguesa, nº 23-24.
Revista Prosa Verso e Arte - Lisboa: 13-10-1923.
Arquivo pesquisas Bibloiteca Nacional Portugal de domínio público, mesmo assim com créditos autorais ás fontes de pequisa. (Imagem Google editada) - Revista Prosa Verso e Arte e sapo.pt - Portugal e BNP.
Formação e edição para o Recanto: JUDD MARRIOTT MENDES
Revista Prosa Verso e Arte e sapo.pt - Portugal.