Apropriação do Urbano- a cidade pela lente e traços das crianças
A manhã do dia 2 de abril de 2016 foi mais do que um simples sábado de passeio pelas ruas de São Paulo. Junto com a professora Márcia Gobbi, nós, alunos de pedagogia da Universidade de São Paulo, realizamos uma pesquisa de campo referente a disciplina Apropriações do Urbano: A Cidade Pelas Lentes e Traços de Meninos e Meninas, que proporcionou uma nova visão sobre o centro desta cidade, principalmente no que diz respeito aos aspectos arquitetônicos e históricos dessa localidade, bem como os aspectos sociais, culturais e raciais dos indivíduos que transitam nesta região, assim como as diferentes razões pelas quais o fazem.
Iniciamos o trajeto no Pátio do Colégio, passando por vários outros locais do centro de São Paulo. Alguns, contemporaneamente denominados pontos turísticos, já foram mais que apenas prédios tombados e preservados em razão de sua importância histórica, mas locais de fato utilizados pela população que ali vivia. Outros, ainda mantém as mesmas “utilidades” pelas quais foram construídos anos atrás.
Observando a dinâmica atual e comparando-a com a passada, a qual tivemos acesso através dos textos lidos em aulas da disciplina, pela fala da professora, ou por conhecimentos gerais anteriores, foi possível perceber como alguns locais passaram por grandes mudanças e outros mantiveram-se os mesmos. Muitas vezes também, não houve uma mudança geral, mas sim de um aspecto específico.
Sendo um sábado de manhã, foi importante se atentar ao fato de que as atividades ocorridas naquele momento diferem das que ocorrem durante outros dias da semana e horários, uma vez que a cidade está em constante mudança e movimento. Assim, a turma avistou uma feira de trocas quando se aproximavam da Catedral Metropolitana de São Paulo, na Praça da Sé. Essa feira era composta por um grupo bem heterogêneo com homens, mulheres, crianças e idosos de todas as idades. Entretanto, a sua maioria era formada por homens adultos, por volta de, aparentemente, 20-40 anos de idade.
O momento foi um choque para alguns integrantes do grupo, pois de fato haviam muitas pessoas aglomeradas, muitas das quais encaravam o nosso grupo com olhares curiosos. A maioria dos outros locais pelos quais passamos anteriormente com a turma da disciplina foram mais tranquilos e vazios. Assim, quando nos aproximámos da Praça da Sé, a quantidade de pessoas e o barulho que geravam possibilitaram diferentes sentimentos no momento, como medo, insegurança e curiosidade.
Uma das integrantes do grupo estava com uma câmera fotográfica nas mãos, para registrar qualquer nuance que chamasse a atenção. Lembrando que, assim como o estudado em sala e visto nas leituras de Martins, “a fotografia ainda procura o seu lugar na Sociologia. Tanto como forma peculiar de expressão do imaginário social e da consciência social quanto como recurso da Sociologia para compreendê-los. ” (MARTINS. p.33). Dessa forma, quando estávamos atravessando a feira, um dos integrantes do grupo avistou, de longe, um menino (que não devia ter mais do que 10 anos de idade) que segurava com muita firmeza um saco de lixo. Em meio a uma maioria de adultos, o menino não parecia se sentir deslocado. Pelo contrário, se comunicava com os outros, como se fossem iguais.
A foto foi tirada de longe com uma câmera Canon T3i e foi preciso utilizar o zoom, pois a aluna que segurava a câmera não se sentiu confortável para aproximar-se das pessoas observadas. Uma das razões pela qual o grupo escolheu essa foto foi porque, no momento em que um dos integrantes comentou a presença do menino, estávamos todos juntos e no mesmo instante a foto foi tirada. Assim, reunidos em percepção da mesma cena, comentamos ao mesmo tempo quão intrigante era a presença do menino em meio aos adultos, uma vez que esse não parecia chamar muita atenção frente a eles. Enquanto para o grupo a presença daquela criança entre os adultos chamava a atenção, para os adultos que estavam nesse meio a presença da criança não parecia ser motivo para desconforto. A cena, ao nosso olhar, foi bastante impactante. Um menino em meio a tantos adultos, descalço pelas ruas de São Paulo. Era isso que queríamos que a foto registrasse, portanto, não foi utilizado foco e nem houve uma preocupação em centralizar o garoto.
Outro motivo pela escolha da foto foi o fato dessa fotografia possibilitar a criação de novas histórias em nossas cabeças. Cabe lembrar Martins,
(...). Se a fotografia nada acrescenta à precisão da observação sociológica, muito acrescenta à indagação sociológica na medida em que a câmera e a lente permitem ver o que por outros meios não pode ser visto. Ao mesmo tempo ela introduz alterações nos processos interativos, na pluralidade de sentidos que há tanto no lado do fotógrafo quando no lado do fotografando e do espectador da fotografia. (MARTINS, p,36)
No momento da captura da imagem, o ambiente geral fez com que nossa atenção estivesse focada na presença do menino entre tantos adultos e a forma como ele transitava, descalça, por entre as ruas da praça. Após a captura desse momento e a observação da foto, foi possível analisar, com mais enfoque, o que o menino fazia e carregava. Assim, surgiu a dúvida do que ele poderia estar segurando naquele momento. A primeira vista era apenas um saco de lixo preto. Entretanto, o que poderia estar dentro dele. Comida? Latinhas? São inúmeras as possibilidades e a análise, depois da foto ter sido tirada, traz a característica da fotografia possibilitar a criação de diferentes histórias em nossas cabeças, pois uma vez que a foto foi tirada, dependendo de quem e do momento que a observa, as interpretações podem ser muito diferentes.
Desde seu advento a fotografia foi explorada em suas ilimitadas possibilidades estéticas, enfatizando, os fotógrafos, o dado do real (...). Tal é inerente à prática fotográfica e é obvio que a qualidade do resultado final sempre esteve diretamente relacionada à bagagem individual de seus respectivos autores-fotógrafos. (KOSSOY, 2004)
A fotografia escolhida pelo grupo carrega um intenso significado uma vez que retrata, para nós, não apenas a cena que ocorreu na manhã daquele dia, mas as memórias que criamos, o choque com diferentes realidades socioculturais, assim como as aulas que possibilitaram um salto em nossa perspectiva crítica para a cidade e possibilitaram capturar um momento no qual os olhos de todos estavam voltados para a mesma situação, em meio a tantas outras que aconteciam concomitantemente num amplo e representativo cenário central de nosso município. Tal fotografia poderia sim passar despercebida por outras pessoas. Entretanto, para o nosso grupo constituído de futuros pedagogos de formação, ela chama a atenção excepcionalmente por retratar uma criança naquelas condições e contexto. Somos condicionados a nos apropriarmos das ruas da cidade como um espaço público, onde quando não estamos fazendo uso delas para simples deslocamento, estamos geralmente numa situação de entretenimento, lazer, descontração. Já a relação deste mesmo espaço com uma criança (provavelmente) em situação de rua pode vir a ser totalmente diferente da nossa. É entristecedor termos que nos defrontar com a realidade desta criança, que pode perceber a rua como nós percebemos o nosso espaço de trabalho ou até mesmo a nossa residência, promovendo assim uma reflexão acerca do que compreendemos por espaço público e espaço privado, bem como o olhar mais aproximado de pessoas que, por muitas vezes, são invisíveis aos nossos olhos friamente regulados e reguladores.
Assim, como afirma a fala de Boris Kossoy, a qualidade do resultado final de uma fotografia não é algo que depende de um aspecto específico, mas de um conjunto de desenvolvimentos pessoais que são transmitidos a partir dela. São vários os elementos que, quando juntos dentro de uma fotografia, ganham significado e determinam o resultado final da imagem. Claro que, não podemos desconsiderar, que uma mesma imagem pode levar diversas interpretações, de acordo com quem a vê. Cada indivíduo carrega em si uma específica bagagem cultural, diferentes valores e experiências diversas, fatores que proporcionam inúmeras interpretações acerca da mesma imagem. Como podemos ver em André Bazin (1962), o essencial não é a perfeição do processo físico, mas o fato psicológico de que ela satisfaz. A ideia que temos a respeito de uma única imagem, diz não só sobre a foto, diz sobre nós mesmos, como indivíduos únicos, mesmo que inseridos numa mesma sociedade.
Assim, ao enfatizar as as propriedades físicas e materiais da fotografia, temos que, por mais carregada de componentes e detalhes, a foto não retrata a realidade nua e crua. A seguinte afirmação “A fotografia diz menos do que o acontecido. ” (MARTINS. p.43), nos mostra essa ideia de que a foto é uma ferramenta capaz de mostrar a realidade, todavia, muitas vezes trata-se apenas de um recorte do real. Mesmo tratando-se de uma linguagem universal, que tem o poder de transmitir sentimentos e emoções muitas vezes difíceis de serem transmitidos por palavras, uma foto pode tornar explícita diferentes facetas, mas também pode ocultar diversas outras.
Quando analisamos a criança segundo Müller e Nunes (2014) a criança é vista como um ser incapaz, passivo e dependente e isto é amplificado ao colocarmos ela no ambiente público da cidade, pois o ambiente público é visto como um lugar inseguro, perigosa para que essas crianças possam circular sem a presença de um adulto o acompanhando. “(...)a hostilidade latente do espaço urbano, faz com que as crianças ainda tenham seus mecanismos de usos da cidade restringente. Evidente que se trata aqui do espaço público, onde é raro encontrar crianças desacompanhada de adultos” (MÜLLER E NUNES. p. 665).
Em nossa caminhada ao centro da cidade naquele sábado, vimos algumas crianças, dessas crianças, algumas estavam passeando e conhecendo o centro de São Paulo acompanhando de seus pais, outras estão ali pois aquele local pode ser visto parte do seu lar, então algumas estavam, como a crianças das fotos, estava andando sozinhas. Este menino da foto também poderia estar utilizado o espaço da Praça da Sé como um local de comercio, visando talvez aumentar sua renda, incorporando assim o papel que o adulto poderia exercer nesse centro urbano, pois segundo Müller e Nunes (2004) a cidade é construída e planejada para os adultos, que andam livremente e com independência. Para a criança a cidade é vista como algo a se explorar, conhecer as diferentes culturas que estão imersas nesses centros urbanos. Os autores mostram um cidade para ser explorada de forma infantil, da forma da brincadeira, não levam em consideração as crianças que pertencem ao espaço público, eles o fazem essa exploração com um olhar adulto, pensando muitas vezes no comercio, na busca de alimentos e de moradias.
Referências Bibliográficas
MARTINS, J S. A fotografia e a vida cotidiana: ocultações e revelações. In: Sociologia da fotografia e da imagem. São Paulo. Editora Contexto, 2008.
BRASIL. Estatuto da Criança e do Adolescente. Lei Federal 8.069 de 13/07/1990.
KOSSOY, B. Luzes e Sombras da Metrópole; Um Século de Fotografia em São Paulo (1850-1950). In: Paula Porta. (Org.). História da Cidade de São Paulo. 1 ed. São Paulo: Paz e Terra, 2004, v.2, p. 387-455.
BAZIN, A. The Ontology of the Photographic Image. (1962), in Alan Trachtenberg (ed), op. cit., p.240.