O universo yaoi: um retrato negativo do sexo feminino

Quando lemos ou assistimos a uma história, não estamos apenas lendo algo que está sendo narrado. Estamos também absorvendo a cultura e ideologia de quem produziu o produto que estamos consumindo. Em outras palavras, estamos consumindo os valores sociais que vêm embutidos. Tais valores podem ser expressos de forma clara ou ser tão sutis que é necessário lermos aquele livro ou assistirmos a tal filme mais de uma vez para nos darmos conta das mensagens que transmite. Quantos desenhos animados aos quais assistimos não continham muitas mensagens de conteúdo sexista, racista ou imperialista que só hoje nós percebemos?

Portanto, é bom que levemos isso em consideração devido ao fato do Brasil consumir largamente os mangás e animes, os famosos quadrinhos e desenhos japoneses. A popularidade de personagens como Naruto, Goku e de desenhos como Sailor Moon e Cavaleiros do Zodíaco provam o quanto nós somos fãs desses produtos culturais. Então, vale falarmos de um gênero de mangá que tem crescido muito nos últimos tempos no mercado mundial: o gênero yaoi.

Este gênero se refere a uma história que relata o relacionamento entre dois homens. Normalmente, é escrito e desenhado por mulheres e, embora narre uma relação afetiva entre dois homens, é destinada ao público feminino. Seu objetivo é preencher as fantasias românticas e/ou eróticas do público leitor. Devido a isso, é comum vermos as figuras do seme (ativo) e do uke (passivo), os quais representam as figuras masculina e feminina dos casais retratados. Para facilitar a compreensão de quem não está acostumado a esses termos, vale salientar que seme e uke derivam de termos do universo das artes marciais: semeru(atacar) e ukeru(receber).

O seme é usualmente mais velho, alto, forte, agressivo e masculino. O uke costuma ser mais jovem, baixo, podendo ter traços femininos (ou pelo menos mais delicados) ou infantis, com olhos maiores e expressivos. Ambos também têm personalidades muito diferentes. Enquanto o seme tem a personalidade dominante, o uke é mais frágil e sensível. Ainda que ultimamente alguns autores yaoi tenham fugido um pouco desses estereótipos, colocando o uke com a mesma altura do seme, por exemplo, tais estereótipos já fazem parte do imaginário popular de quem está familiarizado com esse gênero.

Há histórias yaoi em que as características do seme e do uke vão a extremos. Em Okane ga Nai, o uke Ayase, além de não ter uma característica masculina, parece ter 14 anos em vez de 18 e chora com extrema facilidade, ao passo que o seme Kanou é gigantesco e violento. No mangá Viewfinder, embora o uke Akihito não tenha traços femininos, suas feições são bastante delicadas em contraponto aos traços fortes e marcados do seme Asami. Aliás, embora Akihito tenha cerca de 22 anos, ele parece ter 18 e suas feições foram ficando mais delicadas à medida que a história foi evoluindo. Outro uke bastante delicado é Taki, de Maiden Rose, que faz violento contraste com o seme Klaus.

O fato de rapazes com feições delicadas fazerem tanto sucesso tem a ver com o fato do padrão de beleza japonês ser o da mulher delicada, mignon e que se assemelha a uma boneca de porcelana. Um termo que usamos para nos referirmos a esses rapazes com traços de moça é “bishounen”, que pode ser traduzido como rapaz bonito.A popularidade dos “bishounen” pode ser bem comprovada ao vermos desenhos como Cavaleiros do Zodíaco(Shun de Andrômeda) e Yu yu hakusho (Kurama), com rapazes delicados que poderiam ser confundidos com moças. É bom deixar claro que o fato de um rapaz parecer com uma mulher não significa necessariamente que ele seja homossexual.

Ultimamente, os mangás e animes yaoi têm despertado controvérsia e discussão especialmente em blogs literários, sites destinado a fãs e canais do Youtube porque podemos notar que apresentam vários pontos problemáticos: eles costumam mostrar muito estupro e relacionamentos abusivos de forma romantizada. O fato dos ukes sempre se submeterem aos caprichos brutais dos semes dá uma ideia perfeita de submissão. Em uma cena de Maiden Rose, o seme Klaus age de forma tão violenta durante o ato sexual com o uke Taki que só para ao perceber que este está inconsciente e sangrando. Já em Viewfinder, Akihito chega a ser estuprado por dois homens numa mesma noite, tanto por Asami quanto por Feilong, um mafioso chinês. Porém, quem lê ou assiste fica com a impressão de que estupro não é tão grave assim, pois os ukes continuam apaixonados pelos semes. O Ayase de Okane ga Nai, mesmo sendo abusado em todas as histórias, dirá que Kanou é bom para ele. Ao que parece, todos os ukes sofrem de Síndrome de Estocolmo.

De fato, o estupro romantizado pode ser mesmo considerado o ponto mais delicado dessas histórias, mas há um que precisa ser analisado: o retrato negativo do sexo feminino no universo yaoi. Como o uke é a mulher do casal, é bom observarmos como as mulheres são colocadas. E a questão vai muito além dos ukes terem rostos femininos ou físicos mais frágeis.

1- O uke é quase sempre colocado como um ser fraco, indeciso e indefeso. Em suma, um perfeito boboca. Não é raro que o vejamos em situações de perigo nas quais o seme tem de salvá-lo. Isso acontece o tempo todo em Okane ga Nai e Viewfinder. Ayase é de uma ingenuidade irreal e não sabe identificar uma situação de perigo e Akihito vive se metendo em encrencas. No caso deste último, isto é realmente inverossímil. Ele é jornalista e fotógrafo freelancer, acostumado a percorrer a cidade de Tóquio e conviver com todos os tipos de pessoas. No primeiro capítulo do mangá, ao ser encurralado por Asami e seus capangas, ele salta de um prédio, mostrando ser uma pessoa habituada a escapar de perigos. Depois, virou uma donzela em perigo?

2- Depois de ser estuprado pelo seme – toda relação yaoi começa com estupro – o uke parece ter ficado com um ímã para estupradores. Vive sendo sequestrado por outros homens que querem estuprá-lo. E quem o salva? Óbvio que o seme. Ele é salvo pelos mesmo homem que o estupra e desrespeita. Em Okane ga nai, isso acontece em praticamente todos os volumes.

3- Ao que parece os ukes têm personalidades infantis, são sempre ingênuos e não sabem julgar o caráter de ninguém. Embora Ayase tenha 18 anos, sua inocência parece a de uma criança e isso o faz cair em armadilhas. Outro bastante infantil é o Misaki de Junjou Romântica. Já o Akihito de Viewfinder, apesar de ser um adulto de pouco mais de 20 anos, é imaturo e age como um garoto de 18. Eles vivem cometendo erros, ao passo que os semes sempre sabem o que fazer.

4- O uke faz tarefas domésticas, como cozinhar e passar a roupa do seme, que quase sempre é o que tem mais dinheiro. E muitos semes querem controlar a vida dos ukes. Kanou não deixa Ayase sair com seus amigos e Asami chega a deixar Akihito sem ter onde morar para o rapaz se ver obrigado a viver com ele.

É interessante ver como os ukes também parecem não ter nenhuma autoestima ou amor-próprio. Mesmo depois de serem abusados, violentados e desrespeitados, eles são dependentes – pelo menos emocionalmente - dos seus semes, os quais são sempre autoritários e desrespeitosos para com eles. O Kanou de Okane ga Nai, somente a contragosto, permite que Ayase frequente a faculdade. E o jovem o agradece como se Kanou tivesse direito de decidir sua vida. Ele também vive diminuindo Ayase, chamando-o de lento e idiota ou submetendo-o a situações constrangedoras e humilhantes. Porém Ayase se sente culpado e se desculpa por ter desagradado Kanou, que usualmente o castiga através do estupro. O Asami de Viewfinder não faz objeções a que Akihito continue trabalhando e tenha sua vida pessoal e social depois que eles passam a viver juntos, no entanto podemos ver bem a relação de dominação e submissão. Akihito é quem cuida da casa, compra a comida e cozinha. Asami, comparando sua vida antes e depois do fotógrafo passar a morar com ele, lembra que antes sua geladeira vivia vazia e que agora ele sempre tem uma refeição quente esperando por ele. Todavia, ele continua agindo de maneira abusiva, o que é bem explícito numa cena grotesca do mangá, quando o rapaz está preparando o jantar. Asami o atrapalha e força uma relação sexual, ainda que o jovem implore para que ele pare. E ele não tem mesmo como lutar, porque Asami, um chefão yakuza, é bem mais forte fisicamente do que ele.

Soa mesmo surpreendente que essas histórias façam tanto sucesso entre o público ocidental. A mulher que lê a um mangá ou assiste a um anime yaoi deveria se dar conta de que está vendo o sexo feminino sendo retratado como boboca, infantil, indefeso e indeciso.Mesmo que seja ficção, devemos ficar atentas e não consumir passivamente algo que nos retrate de forma negativa. Mulher não deve aceitar ser colocada como um ser infantilizado e incapaz.

Considerações culturais à parte – o machismo é forte no Japão- precisamos observar e analisar o que na verdade pode se tratar de uma relação abusiva. O que é uma relação abusiva? É aquele na qual um vive submetendo o outro à sua vontade, valendo-se de coação física, chantagem, ameaças ou manipulação. E os semes das histórias yaoi são mestres em se valer desses recursos.