Hoje acordei com vontade de falar sobre isso. Poesia e galo. Galinha e poesia. E nada melhor que o poema “Tecendo a manhã”, de João Cabral de Melo Neto, para ilustrar o que vou tentar dizer. Melhor, o próprio poema já diz tudo o que eu gostaria, porém em verso. Aqui vou discorrer sobre o assunto em prosa.
 
Prosar ou prosear é o mesmo que conversar, dialogar. Há outros significados para prosear, que é ‘falar de mais’, ‘falar muito e não fazer nada’, ‘vangloriar-se das próprias qualidades’... Vamos voltar para o eixo do tecer, trocar, compartilhar, conversa de várias mãos, comunicar com outros e ouvir o que comunicam conosco. É, ouvir.
 
Esta é uma prática que precisamos fazer o tempo todo. Ouvir o outro, ouvir a si, perguntar a si próprio qual seu papel no cenário em que você se insere ou é inserido. Bem, fazer poesia é uma arte divina, e também um exercício diário de olhar para si (não para o umbigo), olhar para o/a outro/a, comparar, limar os excessos, reescrever, cortar mais do que sobrou, reescrever outra vez...
 
E na prática desse exercício, vamos nos desfazendo de egoísmos, pensando muito no que escreve e no que declama. Pensar antes de falar e expor, para não diminuir o/a outro/a, não ofender, não perpetuar discriminações e preconceitos, não cometer crimes. Com isso, nasce a essência dos saraus de poesia, cuja raiz é dialogar, combater as injustiças todas. Esse trabalho é coletivo, não existe sarau de um poeta só. Se existisseseria o Sarau do Canto, cada um no seu canto.
 
Por ser ato coletivo, um fortalece o/a outro/a. Um sarau fortalece outro sarau, um/a poeta fortalece o/a outro/a. Sem hierarquias, sem um ser melhor por ter isso ou aquilo; sem ser pior por faltar isso ou aquilo. Sem concorrer. Nenhum sarau pode achar que está concorrendo com outro, porque quem precisa ganhar é a coletividade, a arte, a poesia, e não o/a organizador/a tal. Paz entre os poetas, paz entre os coletivos, pois o inimigo é outro, e nunca (ou quase nunca) está na quebrada, na esquina, na praça. Esse, o inimigo, está em andares altos de grandes avenidas, em palacetes, tramando o tempo todo contra a população, contra os/as artistas. Fiquemos de olho.
 
Aliás, a concorrência deve existir, sim, mas de TODOS contra o racismo, o genocídio, o machismo, a má distribuição de renda, a falta de investimento em educação, saúde, segurança pública, lazer, transporte, justiça, lgbtfobia etc. E essa luta já é travada por todos os coletivos. E para que a batalha seja ganha, nada melhor que um poeta fazer um verso, o outro declamar, e mais outro passar a voz para mais além, a fim de alcançar ouvidos que ainda não foram sensibilizados. Aí, sim, seremos todos/as vencedores/as! E não estaremos fazendo o Sarau do/a poeta só...
 
 
Tecendo a Manhã
(João Cabral de Melo Neto)
1

Um galo sozinho não tece uma manhã:
ele precisará sempre de outros galos.
De um que apanhe esse grito que ele
e o lance a outro; de um outro galo
que apanhe o grito de um galo antes
e o lance a outro; e de outros galos
que com muitos outros galos se cruzem
os fios de sol de seus gritos de galo,
para que a manhã, desde uma teia tênue,
se vá tecendo, entre todos os galos.

2

E se encorpando em tela, entre todos,
se erguendo tenda, onde entrem todos,
se entretendendo para todos, no toldo
(a manhã) que plana livre de armação.
A manhã, toldo de um tecido tão aéreo
que, tecido, se eleva por si: luz balão.
Valdeck Almeida de Jesus
Enviado por Valdeck Almeida de Jesus em 12/03/2018
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