Aureo Throno Episcopal

Prof. Arnaldo de Souza Ribeiro

Escrito em homenagem ao professor, empresário, intelectual, humanista, historiador e escritor marianense Roque Camêllo. (16.08.42 a 18.03.17)

“Minas principia de dentro para fora e do céu para o chão”.

João Guimarães Rosa. Nasceu em Cordisburgo - MG, no dia 27 de junho de 1908 e faleceu no Rio de Janeiro - RJ, no dia 19 de novembro de 1967. Foi médico, humanista, escritor e diplomata.

1. Introdução

Avizinhava-se o apagar do século XVII, quando os bandeirantes paulistas encontraram os primeiros sinais de ouro em solo mineiro. E assim confirmaram que as verdades também se apresentam em forma de suposições ou de crenças. Ou seja, ainda não vistas, já se sabia que as reservas de ouro e de pedras preciosas existiam em solo brasileiro e que não se encontravam no litoral e sim, no coração do Brasil, à espera de alguém que viesse conhecê-las e conquistá-las.

Portugueses e brasileiros, por quase dois séculos, empreendiam corajosas e perigosas viagens ao interior do Brasil, e o faziam na busca de escravos foragidos e de nativos para o trabalho nas fazendas existentes no litoral paulista. Porém, naquelas viagens, levavam consigo a esperança, permeada de certeza de que, um dia, encontrariam o ouro e as pedras preciosas que jaziam entre as montanhas e selvas, cujas existências eram decantadas entre lendas e verdades. Desse modo, a enigmática montanha do Sabarabuçu, ainda não vista, materializava-se e corporificava-se na mente e no coração daqueles aventureiros.

Convencidos de que as lendas tornar-se-iam realidades, grupos particulares e governamentais se organizavam e adentravam no então coração selvagem do Brasil, na busca daquele tesouro adormecido, com suas Bandeiras ou Entradas.

Entre as Bandeiras que se destacaram em solo mineiro, encontram-se a do bandeirante taubateano Antônio Dias de Oliveira, que fundou, juntamente com o Padre João de Faria Fialho, o arraial do Padre Faria, na atual Ouro Preto, e a do bandeirante taubateano Salvador Fernandes Furtado de Mendonça, que chegou às margens de um riacho, a que deu o nome de Ribeirão de Nossa Senhora do Carmo. Às margens daquele riacho, junto a seu grupo, elevaram seus pensamentos e agradecimentos a Deus, enquanto o Padre Francisco Gonçalves Lopes rezava a primeira missa. Desse modo, a partir daquele dia, iniciava a vida e a história de Minas Gerais e de Mariana, objeto deste estudo.

2. Do arraial do Carmo à cidade de Mariana

Era o dia 16 de julho de 1696, quando os integrantes da Bandeira de Salvador Fernandes Furtado de Mendonça, encontraram, no Ribeirão de Nossa Senhora do Carmo, os primeiros sinais da existência de ouro. Segundo os cânones da igreja católica, nesse dia do ano de 1251, Nossa Senhora do Carmo teria aparecido a São Simão Stock, então Prior Geral da Ordem do Carmo que, em um momento de aflição, a Ela havia recorrido. Desse modo, em homenagem à Santa, um ribeirão e um arraial receberam o seu nome.

Nesse sentido ensina Roque Camêllo:

A história de Mariana se inicia em 16 de julho de 1696 com Salvador Furtado de Mendonça e sua Bandeira quando, às margens do Ribeirão do Carmo, o Padre Francisco Gonçalves Lopes celebra a primeira missa em homenagem a Nossa Senhora do Carmo conforme versão histórica defendida por Diogo de Vasconcelos, Salomão de Vasconcellos e registros de Cláudio Manoel da Costa com base em informes de Bento Furtado, filho do coronel Salvador Furtado de Mendonça. [1]

Com a descoberta do ouro, em pouco tempo o Arraial se transformou em um privilegiado polo exportador de ouro para a Coroa. As notícias acerca da descoberta se espalharam e o Arraial, imediatamente, tornou-se endereço para migração e imigração de diversas pessoas, entre elas: brasileiros que vinham de outras regiões, africanos, índios e, sobretudo, portugueses.

Senhores traziam seus escravos e alimentavam a esperança de enriquecerem-se em pouco tempo com a extração do ouro. Mesmo abundante no início, a inexperiência, a escassez de recursos e o despreparo dos primeiros mineradores lhes causaram inúmeros prejuízos, frustrações e mortes, inclusive pela fome.

Nesse sentido Arnaldo de Souza Ribeiro:

A descoberta do ouro em Minas Gerais atraiu pessoas da Colônia e da Metrópole e as primeiras consequências dessa ocupação foram: escassez de alimentos, preços altos, fome e consequentemente, sofrimento e mortes. Para minimizá-las, portugueses, africanos e índios associaram conhecimentos, recursos e desenvolveram novos hábitos alimentares a partir da colheita, da pesca e da caça. [2]

A exploração do ouro exigia capital, mão-de-obra, equipamentos de mineração e compra de terrenos e alimentos. Portanto, somente aqueles que possuíam recursos para os investimentos conseguiram lucrar com a atividade.

Para muitos, mesmo com as dificuldades inerentes ao garimpo, a insegurança, os altos preços e a escassez de alimentos, a exploração do ouro foi profícua e, consequentemente enriqueceram-se e fizeram crescer e desenvolver o então Arraial.

Para melhor controlar a extração do minério e dinamizar a administração, no dia 8 de abril de 1711, o então governador do Rio de Janeiro, Antônio de Albuquerque Coelho de Carvalho, transformou o Arraial em Vila do Ribeirão de Nossa Senhora do Carmo, a primeira Vila de Minas Gerais. Transformação confirmada por Carta Régia, datada de 14 de abril de 1712, com o nome alterado para Vila Real de Nossa Senhora.

A Vila Real de Nossa Senhora foi criada com grande extensão de terra, constituída por sertões e vales de rios à época, caudalosos. Em seu trecho meridional, sua extensão alcançava as divisas do Rio de Janeiro, portanto, nasceu grande e com boas influências. E o foi pelos desígnios de Deus e da inteligência humana, para que pudesse acolher as pessoas e produzir a riqueza e a grandeza que o futuro lhe reservava.

Nesse sentido Miguel Augusto Gonçalves de Souza:

A Vila do Carmo, atual Mariana, criada com o território de aproximadamente 50.000Km2, compreendia também, os sertões da região leste, vales de rios como o Piranga, Pomba, Muriaé, Manhuaçu e Doce, alcançando, em seu trecho meridional, as divisas do Rio de Janeiro. [3]

No início da ocupação, os mineradores viviam em rudimentares acampamentos. Com a efervescência da mineração e o afluxo de pessoas, edificaram moradias de caráter permanente que eram destinadas à administração, moradia e ao culto religioso.

Testemunha viva daquele momento de imediata glória e riqueza encontra-se materializada no casarão em que viveu Dom Pedro Miguel de Almeida Portugal, o Conde de Assumar, governador da Capitania de São Paulo e da então Minas de Ouro, no período de 4 de setembro de 1717 a 4 de setembro de 1721. O imponente casarão, cuja construção data-se de 1715, conta com sete janelas de frente para a rua, edificado dentro do mais requintado estilo barroco setecentista, que, ainda hoje, enriquece e embeleza a paisagem marianense. Além de residência do Conde de Assumar, por ocasião da revolta dos mineradores em 1720, liderada por Felipe dos Santos, também serviu como local de articulações.

Dom Pedro de Almeida e Portugal, o Conde de Assumar, foi uma figura polêmica, rígido e conservador e, sobretudo, belicoso e preconceituoso. Durante o quatriênio de seu governo, fez de Minas palco de perseguições, inseguranças e sedições. A única lembrança positiva por ele deixada, ainda que indiretamente, cinge-se ao aparecimento da imagem de Nossa Senhora Aparecida, nas águas do Rio Paraíba do Sul, ocorrido entre os dias 17 a 30 de outubro de 1717, período em que permaneceu em Guaratinguetá.

Nesse sentido Júlio J. Brustoloni:

A pesca não está cercada de mistério; misterioso, sim, foi o plano de Deus a respeito daquela pequenina imagem pescada por aqueles pescadores. Eram três os pescadores que “saíram a pescar para o Conde de Assumar” e sua comitiva. Eram homens simples e dedicados ao trabalho e, como tudo indica, religiosos. Os personagens: Domingos Martins Garcia, João Alves e Felipe Pedroso são reais, e não imaginários, como acontece nas lendas. Tinham sido convocados para apanhar boa quantidade de peixes para serem servidos nas refeições do Governador e sua comitiva. [4]

Registros históricos confirmam que àquele tempo o Conde de Assumar estava a caminho da Vila Real de Nossa Senhora, de onde administraria com mãos de ferro as oito Vilas que compunham a Minas de Ouro e a Capitania de São Paulo. E assim o fez, até o dia 02 de dezembro de 1720, quando por Alvará-Régio de Dom João V, foi criada a Capitania das Minas Gerais, desanexando-a de São Paulo, que também se tornou capitania isolada.

Nesse sentido Raimundo da Silva Rabello:

Sobre oito rígidos pilares – um deles Pitangui – edificou-se em 1720 a Capitania de Minas. São eles o berço da civilização das Gerais. Ei-los, com a data da emancipação político-administrativa: Ribeirão do Carmo (Mariana) em 08.04.1711; Vila Rica (Ouro Preto) em 08.07.1711; Vila Real (Sabará) em 16.07.1711; Arraial do Rio das Mortes (São João Del Rei) em 08.12.1713; Vila Nova da Rainha (Caeté) em 29.01.1714; Vila do Príncipe (Serro) em 29.01.1714; Vila de Nossa Senhora da Piedade (Pitangui) em 09.06.1715 e São José Del Rei (Tiradentes) em 19.01.1718. [5]

A profícua extração do ouro e a constante migração para a então Vila Real de Nossa Senhora a transformou, no dia 23 de abril de 1745, quarenta e nove anos depois da chegada dos primeiros habitantes à região, na primeira cidade de Minas Gerais, com o nome de Mariana. E o motivo dessa transformação de Vila em cidade deu-se para instalar o novo Bispado. O nome escolhido, Mariana, em razão da homenagem de D. João V de Portugal à sua esposa, D. Maria Ana de Áustria.

Nesse sentido Roque Camêllo:

A primeira vila e capital se tornaria também, em 1745, por ordem de Dom João V, a primeira cidade de Minas, alçada a esta titularidade para sediar o Bispado autorizado pelo Papa Bento XIV. Em razão do seu foro episcopal, o Rei de Portugal designou o engenheiro José Fernandes Pinto Alpoim para produzir a planta da futura cidade. Tornou-se, assim, um pioneiro exemplo urbanístico. Foi a única de todo o período colonial. As outras comunidades mineiras só obtiveram esta categoria após a Independência, em 1822. [6]

Desse modo, a primeira cidade de Minas Gerais foi contemplada com um arrojado projeto urbanístico para os padrões da época. José Fernandes Pinto de Alpoim era engenheiro militar. Estrategicamente, inseriu na primeira cidade planejada de Minas ruas em linhas retas e praças retangulares, cuja beleza e bom gosto ainda podem ser vistas ao visitar o centro histórico de Mariana.

3. A criação da Diocese de Mariana

A Diocese de Mariana foi criada no dia 03 de abril de 1745, pelo Rei Dom João V, e referendada pelo Papa Bento XIV, oito meses depois, no dia 06 de dezembro de 1745, pela Bula Candor Lucis Aeternae.

O descompasso entre a data em que fora criada e a data em que fora referendada pelo Papa consubstancia-se no desejo e na necessidade de Dom João V de constituir uma nova autoridade administrativa em solo mineiro que, àquele tempo, já indicava sinais de indisciplinas e sedições, consequências da escassez na extração do ouro e no aumento da população.

Neste sentido Luis Giffone:

Manoel da Cruz foi transferido por d. João V do Maranhão para Mariana em 1745, antes mesmo que Bento XIV emitisse a bula Condor Lucis Aeternae. A ordem para sua imediata mudança chegou a São Luís, junto com a Frota do Maranhão, meses antes do consistório secreto em Roma que referendou o nome do prelado. Uma questão surge nesse momento: por que Manoel da Cruz retardou a partida por quase dois anos? Por que, ao chegar seu substituto na Frota de 1747, não embarcou num dos navios? [7]

Esses e outros mistérios entremeiam a vida do primeiro Bispo de Mariana, inclusive a sua opção de vir por terra, quando o razoável seria vir por mar, mais seguro e rápido. Some-se ainda o considerável atraso de quase dois anos, quando estava consciente de que Dom João V o queria imediatamente à frente do novo Bispado, com vistas a pacificar o rebanho e, sobretudo proteger o erário.

Nesse sentido Patrícia Ferreira dos Santos:

O primeiro bispo de Mariana, dom frei Manoel da Cruz, era membro da ordem religiosa de Cister, que tinha São Bernardo de Claraval como patrono. Por volta de 1745, seu nome foi escolhido por dom João V para fundar a diocese de Mariana, região que então respirava ares conturbados. A coroa portuguesa buscava consolidar o aparelho administrativo e fiscalista que aí vinha implantando desde que tivera notícia dos primeiros descobrimentos auríferos em fins do século XVII e inícios do XVIII, evento que trouxe enorme afluxo de pessoas livres e escravas, aventureiros e burocratas. [8]

No mesmo sentido é o entendimento do professor, historiador e escritor marianense Roque Camêllo, acerca do primeiro Bispo de Mariana. Dele ouvi, quando das comemorações do tricentésimo quinto aniversário da criação da Vila do Ribeirão de Nossa Senhora do Carmo, no dia 08 de abril de 2016:

“Quando Dom João V criou a nova Diocese em Mariana, sua preocupação estava mais ligada com o poder temporal do que com o poder espiritual. Em 1745, já se percebia o início da escassez do ouro, o aumento da população e da pobreza. Sendo assim, Dom João V precisava de um Pastor, perspicaz, solidário e obediente às suas ordens e executor de sua vontade. Sabia o Rei que a religião é um eficiente agente disciplinador do ser humano, tornando-o mais obediente, inclusive aos preceitos da autoridade temporal”

O estudo da vida do Primeiro Bispo de Mariana comprova as assertivas dos historiadores Roque Camêllo e Patrícia Ferreira dos Santos.

Dom Frei Manoel Ferreira Freire da Cruz era, realmente, um homem diferenciado. Além da inteligência, do dinamismo e do senso administrativo, sabia servir a dois senhores e, quando necessário, não hesitava em atender com maior presteza e fidelidade ao Rei.

Neste sentido Luis Giffone:

Português de origem nobre, teólogo diplomado em Coimbra, chegou ao país em 1739, designado por d. João V, rei de Portugal entre 1706 e 1750, para ocupar a sé vacante do Maranhão na cidade de São Luis, à frente da qual permaneceu durante oito anos. Até a morte, serviria a dois senhores, o rei e o papa, conforme as injunções do Direito do Padroado – Jus Patronatus – em vigor na época. Serviria mais ao rei que ao papa. [9]

Afirmam alguns historiadores que a exaustiva viagem de Dom Frei Manoel Ferreira Freire da Cruz pelos sertões do Maranhão, Piauí, Bahia e Minas Gerais, fora motivada pelo peso da idade. Sabe-se ainda que Dom Frei Manoel da Cruz deixou o Maranhão com cinquenta e sete anos de idade. E não o fez com alegria e entusiasmo, pois, gostaria de permanecer no Maranhão, apesar das repreensões protagonizadas por Dom João V, que o queria em Minas Gerais.

Nesse sentido Luis Giffone:

Além das conjeturas levantadas neste trabalho, que outros motivos poderiam ter atrasado a partida, mesmo depois de repreendido pelo monarca em relação à demora para ocupar na nova sé? O amor pelo Maranhão tornara-se assim tão grande, a ponto de justificar o retardo e a desobediência? Temia enfrentar os mineiros e seu “mundo sem lei nem rei”, depois do desgaste das disputas em São Luis, semelhantes às que encontraria na nova missão? Teria recebido informações pouco alentadoras sobre a nova sé, graças aos contatos que logo se incrementaram? A idade o incomodava? Receava deixar a diocese acéfala, sujeita, portanto ao assédio do cabido antes que chegasse o novo ocupante, seu quase conterrâneo Francisco de São Tiago? [10]

Certamente Dom Frei Manoel Ferreira da Cruz estava ciente de que, àquele tempo, estabelecer em Minas Gerais não era nada calmo ou motivador a uma autoridade religiosa. Ainda circulavam no Brasil e em Portugal as impressões catastróficas, disseminadas pelo Conde de Assumar, acerca de Minas e dos mineiros.

Espera-se que o interesse pela vida e obra do Primeiro Bispo de Mariana possa motivar novos estudos e que sejam feitos a partir dos arquivos portugueses e marianenses. E assim responder às perguntas elaboradas por Luis Giffone, o que indubitavelmente enriquecerá um importante capítulo da história setecentista de Mariana, de Minas e do Brasil.

5. Considerações acerca de Dom Frei Manoel Ferreira da Cruz e a travessia pelo sertão brasileiro

Dom Frei Manoel Ferreira Freire da Cruz, filho de Manoel Nogueira e Maria Duarte da Cruz, nasceu no dia 05 de fevereiro de 1690, no município de Lousada, norte de Portugal. Era teólogo, diplomado por Coimbra, onde também foi professor. Pelas coincidências que o Divino ou o destino nos proporciona, na mesma década em que nasceu, também encontrou ouro em Minas Gerais e fundou o Arraial de Nossa Senhora do Carmo, onde viria a ser o Primeiro Bispo.

Dom Frei Manoel da Cruz chegou ao Brasil com quarenta e nove anos, no dia 29 de junho de 1739, para assumir o Bispado de São Luís, no Maranhão nomeado por Dom João V.

Nesse sentido Luis Giffoni:

No ato da nomeação o monarca diz ter certeza da “modéstia e ciência” do prelado para empreender a nova missão. Essa expectativa foi correspondida. Sempre com extrema modéstia, o bispo deu ciência ao rei do que acontecia na colônia, tanto na Igreja quanto fora dela. O papa Clemente XII homologou a escolha real em dois de julho de 1738. [11]

Dom Frei Manuel da Cruz foi o sexto Bispo do Maranhão, tido como um pastor zeloso, que amava e era amado pelo seu rebanho e que o visitava em frequentes viagens pastorais.

Relata o anônimo autor do livro Aureo Throno Episcopal:

Nefte tranfito cercárão a S. Excellencia ponderofos cuidados, não fó pela confideração de feguir forçofamente huma derrota tão laboriofa, e arrifcada, mas por deixar os antigos fubditos, que amava como filhos. Não erão menos extremofos da parte deftes os affectos, quando em todas as partes daquelle Bifpado não fe ouvião mais que lagrymas, e fufpiros, com que lamentavão a eterna aufencia do Excellentiffimo Prelado, que os tratava como pay, fuave na correcção, inflexível na juftiça, compaffiso na caridade. [12]

Pelas informações extraídas do livro Áureo Throno Episcopal, Dom Frei Manoel da Cruz era um homem temente a Deus e serviente às autoridades e ao povo. Quando de sua partida de São Luís e por todo o longo caminho percorrido, foi reconhecido e reverenciado. Por sua modéstia e ciente das dificuldades do povo, recusou a permanecer e a receber homenagens em muitos arraiais pelos quais passou, porém não se esquivou de nenhum serviço religioso, inclusive crismou aproximadamente seis mil almas e rezou centenas de missas e terços.

Portanto, a inóspita e perigosa viagem de São Luís do Maranhão a Mariana pode ser entendida como uma verdadeira lição de fé e de coragem. Poderia àquele tempo tê-la feito em uma frota portuguesa e, quando chegasse ao Rio de Janeiro, vir a Minas Gerais por terra, que já possuía melhores estradas em razão do trânsito então existente, para escoar o ouro e receber mercadorias que vinham da Metrópole.

Mesmo diante das dificuldades do percurso por terra e as comodidades de vir pelo mar, o Bispo manteve o propósito de vir a Minas por terra. No percurso, além dos perigos inerentes às condições inóspitas, enfrentou dois naufrágios fluviais, que quase o levou à morte e passou por seis sangrias.

Apesar da idade avançada, da saúde debilitada e das intempéries do caminho, Dom Frei Manoel Ferreira da Cruz superou todas as dificuldades e chegou a Mariana no dia 15 de outubro de 1748.

Nesse sentido Roque Camêllo:

Durante o longo percurso de quatro mil quilômetros, sofreu enfermidades e quase morreu em travessias de rios caudalosos. O Bispo foi recebido pelas autoridades e pela população com grandes festejos por diversos dias. Em Portugal, por iniciativa do Cônego Francisco Ribeiro da Silva, aqueles famosos acontecimentos foram registrados no livro “Aureo Throno Episcopal”, publicado em 1749. Além do relato, trazia coletânea de peças literárias alusiva aos festejos com poesias e discursos. Falava-se numa Academia Cultista de Letras ou Academia do Aureo Throno, um prenúncio das futuras Academias de Letras no Brasil. Embora Dom Frei Manoel da Cruz tentasse evitar que os diocesanos se excedessem, cumpriu-se em Mariana, um variado programa de comemorações públicas. [13]

E não foi em vão o entusiasmo e os festejos preparados pelos mineiros para recepcionar o seu primeiro Bispo. Como fizera na Diocese do Maranhão também o fez em Minas Gerais. Conduziu os seus trabalhos com amor e sempre voltados à consolidação da fé, educação, cultura e disciplina.

Entre os seus trabalhos na Diocese, destacam-se a criação do Seminário de Mariana, no dia 20 de dezembro de 1759, a ordenação de 227 padres e, ainda, trouxe para a Capitania das Minas Gerais a devoção aos Sagrados Corações de Jesus, Maria e José. E, como visionário, foi o precursor da devoção ao padre José de Anchieta, beatificado em 1980, pelo Papa João Paulo II e canonizado em 2014, pelo Papa Francisco.

6. Aureo Throno Episcopal

Depois da longa viagem iniciada no dia 03 de agosto de 1747, no dia 15 de outubro de 1748, Dom Frei Manoel Ferreira Freire da Cruz chegou a Mariana para encontrar-se com o seu novo rebanho.

Relata o anônimo escritor do Aureo Throno Episcopal às páginas 38 e 39:

“ [...] Da uma para as duas horas depois do meio dia entrou S. Excelência na Cidade, cujos moradores se felicitavam uns aos outros com mútuos parabéns de verem completas as suas esperanças com a venturosa posse de seu Excelentíssimo Prelado. Estavam as ruas vistosamente armadas, e na praça se achava formado um regimento de Infantaria, que cortejou a S. Excelência com as suas costumadas políticas militares.

Recolheu-se S. Excelência ao seu Palácio, que por ordem sua se lhe tinha preparado custosamente, e como necessitasse de usar de alguns remédios pela moléstia, que lhe causara a jornada, justamente se escusou de receber visitas públicas.”

Em razão de seu cansaço e de sua enfermidade, Dom Frei Manoel da Cruz postergou a data de sua entrada pública em Mariana. Notadas as suas melhoras e alcançado o merecido descanso a marcou para o domingo, dia 24 de novembro de 1748, porém, em razão de grandes e continuadas chuvas não se realizaram os festejos na data aprazada.

Persistiram as chuvas até o dia 27 de novembro, quando, diante de um céu menos nublado, determinou que os festejos acontecessem na quinta-feira, dia 28 de novembro de 1748.

Ainda nas palavras do anônimo autor do Aureo Throno Episcopal à folha 44. “Amanheceu o dia pouco seguro, mas postos todos os sustos de parte, e a sorte do acerto nas mãos de Deus, foi ele servido de serenar a manhã, em que se pode fazer, e fez a função com aquele asseio, que todos desejavam.”

Portanto, com as bênçãos de Deus, o apoio das autoridades e a participação do povo, os marianenses protagonizaram a segunda maior festa realizada na Capitania das Minas, tendo em vista que a festa do Triunfo Eucarístico, realizada no dia 25 de maio de 1733, quando o Santíssimo Sacramento foi transferido da Igreja do Rosário para a Matriz do Pilar de Vila Rica constituiu-se na maior de todas as festas realizadas no Brasil Colônia.

A festa para recepcionar o novo Bispo reuniu pessoas de todas as classes, cônegos, religiosos do Rio de Janeiro, todo o clero e nobreza de Minas, homens de letras, escravos e forros e se estendeu por vários dias.

Com especial destaque para o grande número de pajens mulatos que encenaram o Aureo Throno Episcopal à frente da catedral de Nossa Senhora da Assunção.

O livro, sob o título Aureo Throno Episcopal, foi mandado publicar por Francisco Ribeiro da Silva, e nele registrou as manifestações festivas e literárias de boas-vindas a Dom Frei Manoel Ferreira Freire da Cruz.

Prova insofismável da importância do citado livro, um dos Consultores do Santo Ofício, Frei Francisco de Sant-Iago, assim se manifestou no dia 18 de julho de 1749, quando autorizou a publicação do livro Aureo Throno Episcopal:

“São os livros os tesouros, em que se depositam as mais preciosas memórias para a posteridade; e o que hoje se escreve em papel, gravavam os antigos para memória de futuro em lâminas de metal. Em lâminas de fino ouro se devia esculpir o que contém este livro, que V. Eminência é servido mandar-me ver, para que à posteridade conste a criação do Bispado de Mariana, e a plausível, e pomposa entrada de seu meritíssimo primeiro Bispo, que assim devia melhor o título do livro com a matéria, de que trata. Toda ela li, e vi, e nela não achei cousa contra a nossa Santa Fé, e bons costumes. Este o meu parecer, V. Eminência mandará o que for servido. Lisboa, 18 de julho de 1749. Fr. Francisco de Sant-Iago”.

Razão assistia ao Consultor do Santo Ofício, acerca da mencionada obra, pois, além do relato da heróica viagem do Bispo Dom Frei Manoel da Cruz, ela trazia uma coletânea de peças literárias alusivas aos festejos com poesias e discursos, portanto, precursor das futuras Academias de Letras. Conforme ensina o historiador marianense Roque Camello: “Falava-se numa Academia Cultista de Letras ou Academia do Aureo Throno, um prenúncio das futuras Academias de Letras no Brasil”.

Sabe-se ainda, que as peças nele contidas influenciaram os poetas inconfidentes, entre eles, Tomaz Antônio Gonzaga, além de uma legião de escritores. Some-se ainda que, mesmo depois de duzentos e sessenta e oito anos de sua publicação, trouxe subsídios imprescindíveis para a redação deste artigo, além de fonte de pesquisas para diversas obras que abordaram a vida do primeiro Bispo e da criação da Diocese de Mariana.

7. Conclusão

A glória e a riqueza de Minas e de Mariana principiaram no dia 16 de setembro de 1696, quando o bandeirante taubateano Salvador Fernandes Furtado de Mendonça e os destemidos homens que integravam sua Bandeira, viram brotar da terra o brilho da riqueza que, por quase dois séculos, era sonhada e procurada por legiões de portugueses e brasileiros. Ao vê-la elevaram seus pensamentos e orações a Deus e a Nossa Senhora do Carmo, em piedosa missa rezada pelo Padre Francisco Gonçalves Lopes. Desse modo, sob as bênçãos de Deus e de Nossa Senhora do Carmo, nascia um novo arraial que, quarenta e nove anos depois, pela abundância do ouro e a grandeza de seus habitantes, se tornaria, além da primeira cidade, o primeiro Bispado de Minas Gerais.

A fundação e a história de Minas e, consequentemente de Mariana, foram magistralmente materializadas nos ensinamentos do médico e escritor João Guimarães Rosa, que asseverou: “Minas principia de dentro para fora e do céu para o chão”.

Razão tinha o escritor, pois, a partir do momento em que viram brotar do coração da terra as riquezas, levantaram seus pensamentos e orações ao céu, para em seguida explorar e povoar o chão.

Minas e Mariana materializam-se na somatória da fé e da coragem de Salvador Fernandes Furtado de Mendonça e dos integrantes de sua Bandeira, associados a todos aqueles que por séculos por lá viveram, vivem e, portanto, deixaram e deixam suas contribuições para perpetuar e engrandecer Mariana, Minas e o Brasil, conforme registrado nos livros Aureo Throno Episcopal, de autor ignorado e Mariana: assim nasceu as Minas Gerais, escrito por Roque Camêllo.

Itaúna - MG, 28 de agosto de 2017.

Notas

1. CAMÊLLO, Roque. Mariana: assim nasceu as Minas Gerais. Roma: Belo Horizonte, 2016, p. 21.

2. RIBEIRO, Arnaldo de Souza. Bolsos cheios, barriga vazia: ouro e fome em Minas Gerais. Coletânea: Olhares Múltiplos. Organizador Toni Ramos Gonçalves. Gráfica Daniela: Itaúna, 2016, p. 61.

3. SOUZA, Miguel Augusto Gonçalves de. O descobrimento e a colonização portuguesa no Brasil. Itatiaia Ltda.: Belo Horizonte, 2000, p. 361.

4. BRUSTOLONI, Júlio J. História de Nossa Senhora Conceição Aparecida: a imagem, o santuário e as romarias. 10ª ed., 15ª tir. rev. e amp., Santuário: Aparecida, 2013, p. 31

5. RABELLO, Raimundo da Silva. O payz do Pitanguy. Vile e Escritório de Cultura: Itaúna, 2014, p. 21.

6. CAMÊLLO, Roque. Mariana: assim nasceu as Minas Gerais. Roma: Belo Horizonte, 2016, p. 48.

7. Giffoni, Luís. Dom Frei Manoel da Cruz. Pulsar: Belo Horizonte, 2008, p. 17.

8. SANTOS, Patrícia Ferreira dos. Poder e palavra: discursos, contendas e direito de padroado em Mariana (1748-1764). Hucitec: São Paulo: 2010, p. 15.

9. Giffoni, Luís. Dom Frei Manoel da Cruz. Pulsar: Belo Horizonte, 2008, p. 15.

10. Giffoni, Luís. Dom Frei Manoel da Cruz. Pulsar: Belo Horizonte, 2008, p. 42.

11. Giffoni, Luís. Dom Frei Manoel da Cruz. Pulsar: Belo Horizonte, 2008, p. 27.

12. ANÔNIMO. Aureo Throno Episcopal. Oficina de Miguel Manescal da Costa: Lisboa, 1749, p. 07.

13. CAMÊLLO, Roque. Mariana: assim nasceu as Minas Gerais. Roma Editora: Belo Horizonte, 2016, p. 72.

14. Aureo Throno Episcopal. Artigo publicado no livro Hipérboles. Organizador Toni Ramos Gonçalves, 1. ed. Itaúna: Ramos Editora, 2017, p. 199 a 218.

Bibliografia

ANÔNIMO. Aureo Throno Episcopal. Oficina de Miguel Manescal da Costa: Lisboa, 1749.

BRUSTOLONI, Júlio J. História de Nossa Senhora Conceição Aparecida: a imagem, o santuário e as romarias. 10ª ed., 15ª tir. rev. e amp., Santuário: Aparecida, 2013.

CAMÊLLO, Roque. Mariana: assim nasceu as Minas Gerais. Roma: Belo Horizonte, 2016.

GIFFONI, Luís. Dom Frei Manoel da Cruz. Pulsar: Belo Horizonte, 2008.

SANTOS, Patrícia Ferreira dos. Poder e palavra: discursos, contendas e direito de padroado em Mariana (1748-1764). Hucitec: São Paulo: 2010

SOUZA, Miguel Augusto Gonçalves de. O descobrimento e a colonização portuguesa no Brasil. Itatiaia Ltda.: Belo Horizonte, 2000.

RABELLO, Raimundo da Silva. O payz do Pitanguy. Vile e Escritório de Cultura: Itaúna, 2014.

RIBEIRO, Arnaldo de Souza. Bolsos cheios, barriga vazia: ouro e fome em Minas Gerais. Coletânea: Olhares Múltiplos. Organizador Toni Ramos Gonçalves. Gráfica Daniela: Itaúna, 2016.

* Arnaldo de Souza Ribeiro é Doutor pela UNIMES - Santos - SP. Mestre em Direito Privado pela UNIFRAN - Franca - SP. Especialista em Metodologia e a Didática do Ensino pelas Faculdades Claretianas - São José de Batatais - SP. Coordenador e professor do Curso de Direito da Universidade de Itaúna - UIT - Itaúna - MG. Professor convidado da Escola Fluminense de Psicanálise – ESFLUP - Nova Iguaçu - RJ. Diretor Financeiro e membro da Comissão de Direito Imobiliário da 34ª Subseção da Ordem dos Advogados do Brasil – OAB - Itaúna - MG. Membro do Instituto Mineiro de Direito Processual - IMDP – Belo Horizonte, MG. Sócio efetivo da Associação Brasileira de Filosofia e Psicanálise – ABRAFP - Belo Horizonte – MG. Sócio Fundador e Secretário do Instituto Mineiro de Humanidades - IMH, Itaúna – MG. Sócio Benemérito da Academia Cordisburguense de Letras Guimarães Rosa - Cordisburgo – MG. Membro do Grupo de Escritores Itaunenses e da Academia Itaunense de Letras – AILE, Itaúna – MG. Membro do Instituto do Direito de Língua Portuguesa – IDILP – Lisboa - Portugal. Advogado e conferencista. E-mail: arnaldodesouzaribeiro@hotmail.com