Nota> Os capítulos I ao XVI encontram-se no livro Uma Aventura no Caminho de Santiago
Os capítulos de XVII ao XXV encontram-se no livro Uma Aventura no Caminho de Santiago II
Os capítulos de XVII ao XXV encontram-se no livro Uma Aventura no Caminho de Santiago II
XXVI - Em Ponferrada
E lá estava eu em Ponferrada, uma das maiores cidades do Caminho com seus 67.000 habitantes. O nome vem de “pons ferrata”, ou Ponte de Ferro. È que o Bispo de Astorga, Osmundo, fez reforçar em ferro a antiga ponte de pedra ali existente que fora construída pelos romanos.
Outro ponto de real interesse da cidade é o Castelo dos Templários, o mais conservado nesse gênero de que se tem notícia em toda a Europa. Ele foi edificado no século XI para proteger os peregrinos que por ali passavam com destino a Santiago de Compostela.
Já hospedado no excelente Albergue Municipal San Nicolás de Flüe com 142 leitos, saí para conhecer a cidade, firmemente disposto a comer umas lulas fritas, daquelas em formato de anéis (Calamares a La Romana). Eu tinha saído de Astorga só pensando nelas. Resolvi perguntar a um homem de uns 30 anos que vinha pela calçada em sentido oposto, se ele poderia me recomendar algum lugar específico para eu matar minha vontade.
- Claro que conheço, respondeu-me – É no Restaurante El Bodegón aqui perto, mas está fechado agora.
Agradeci imensamente e assim que me virei ele perguntou: – és brasileiro?
- Sim, por quê?
- É que gosto muito das coisas do seu país. Vocês lá têm samba, futebol e mulheres, muitas mulheres. Meu nome é Fabio.
- Prazer Fabio – chamo-me Sergio, mas no meu país não temos somente samba, futebol e mulheres. Somos conhecidos também por outras coisas – disse-lhe na intenção de deixar claro que tínhamos predicados diferentes desses.
- Sim eu sei, respondeu-me – vocês também têm muita violência e corrupção por lá. Aqui nós temos televisão e todas essas coisas se sabem, arrematou.
- A Espanha também tem seus problemas, continuou falando. Eu, por exemplo, estou desempregado há mais de um ano sem perspectiva de recolocação. Ainda bem que minha mulher está trabalhando e é quem praticamente está nos sustentando. Aceitas que eu te convide para tomar uma cerveja?
- Por que não, pensei comigo mesmo. Eu tinha que esperar que o El Bodegón abrisse e, além disso, uma cerveja não seria nada mau depois da longa caminhada que eu acabara de fazer.
Entramos num bom restaurante, todo espelhado internamente e com pesadas mesas de ferro com tampo de mármore. Sobre o balcão, aquelas magníficas chopeiras de cobre. Lindo lugar para um desempregado beber, pensei enquanto minha cabeça, como um periscópio, escrutinava detalhadamente o local.
Ficamos ali batendo papo sobre os fatos que vivenciei no Caminho, sobre as coisas boas do Brasil e também sobre as não tão boas assim. Quando falávamos da Espanha, podia-se perceber claramente nele uma revolta latente em relação à sua situação de desempregado. Sentia-se humilhado pelo fato da sua mulher estar honrando quase todas as despesas da casa.
O tempo começou a correr velozmente, pois a conversa era interessante e tal qual um correspondente lotado no exterior, eu me sentia satisfeito por estar ali em outro país interagindo diretamente com um de seus cidadãos. O problema era que Fabio não parava de pedir um chope após o outro. E eu, claro, acompanhando, mas um pouco preocupado com o meu pé esquerdo. A cada nova tulipa que chegava, Fabio repetia: "Arriba, abajo, al centro y adentro" - levantando verticalmente o copo de bebida, depois abaixando, para em seguida levá-lo à altura do rosto e finalmente bebê-lo. Depois da segunda tulipa eu já tinha aprendido e fazia o mesmo: "Arriba, abajo, al centro y adentro".
Achei que aquilo não acabaria bem. Em breve iria anoitecer.
Preocupado, perguntei a Fabio se o tal Restaurante El Bodegón já não estaria aberto.
- Claro, claro, amigo, me desculpe. Eu esqueci completamente que tu queres comer uns anéis de lula. Eu te levo até lá.
Fiz menção de pagar a despesa, mas fui rapidamente impedido por ele – aqui não pagas nada, pois és meu convidado.
- Ramón, disse dirigindo-se ao homem que estava atrás do balcão e que me pareceu ser o proprietário: coloca aí na minha conta que depois acerto contigo.
O tal Ramón ficou meio bravo, mas aceitou dizendo: não vais levar três meses para pagar como fizeste da última vez, hein? Se demorares, vou cobrar da tua mulher de novo e ela não vai gostar.
Isso foi o bastante para arrasar o infeliz Fabio. Era visível seu constrangimento com aquela situação e com a resposta recebida. Seu orgulho havia sido atingido em cheio.
E lá fomos os dois já meio “alegres” em direção ao El Bodegón.
- É aqui, disse-me Fabio estendendo sua mão para despedir-se quando chegamos.
- Nada disso – vais entrar e jantar comigo, pois agora tu és o meu convidado, falei. Achei que era o mínimo que eu poderia fazer como retribuição.
O local estava completamente lotado e tivemos que ficar aguardando a nossa vez. Fábio recomendou-me o vinho da casa. O garçom nos trouxe uma garrafa de El Bodegón, um vinho tinto da Região Del Bierzo onde estávamos e que tinha no rótulo o mesmo nome do restaurante. Fomos finalmente anunciados e jantamos alegres entre uma taça e outra do vinho.
Saímos do El Bodegón e encaminhei-me para o albergue antes que este fechasse suas portas. Eu já estava trocando os passos, mas sentia-me bem e feliz. Fabio veio atrás de mim visivelmente "borracho" entoando uma canção espanhola revolucionária.
Ao passarmos diante do restaurante do tal Ramón, ele disse para entrarmos, pois queria tomar mais um chope, a tal "saideira".
Recusei a oferta por motivos óbvios. Ele ficou bastante aborrecido e me acompanhou até o albergue, insistindo para que ao menos eu fosse à sua casa onde sua esposa teria prazer em fazer-nos um café.
- Obrigado Fabio, mas vou para o albergue - preciso descansar porque amanhã tenho um longo caminho pela frente.
- Se tu fosses jovem como eu, não necessitarias desse descanso. Eu seria capaz de sair andando agora mesmo sem parar até Santiago de Compostela, respondeu-me.
Achei que talvez ele não chegasse nem em casa. Despedi-me e acelerei o passo. Ainda podia ouvir sua voz lá atrás dizendo coisas incompreensíveis.
Pobre Fabio, pensei. És mais jovem que eu, mas amanhã eu estarei livre para fazer o que quero, enquanto tu ficarás prisioneiro desta cidade, sentindo-te humilhado pela tua condição e vagando pelas ruas em busca de alento e consolo.
Antes de adormecer desejei firmemente que as forças do universo lhe conseguissem uma ocupação digna, pois um homem sem trabalho não tem honra e, sem honra, as pessoas são capazes de tudo.
Na manhã seguinte outro trecho do Caminho me aguardava.
XXVII - De Ponferrada a Villafranca Del Bierzo
Acordei bem tarde no Albergue de Peregrinos de Ponferrada e fui tomar café na padaria do outro lado da estrada. Ao consultar minha correspondência eletrônica, descobri um e-mail de Paulo, o “Dom Quixote”, e de sua esposa Marta, aquele casal de vi desaparecer em meio ao nevoeiro nos Pirineus no primeiro dia de caminhada e de quem não mais havia tido notícias.
Paulo me alertava para as terríveis condições atmosféricas que encontraram quando passaram por Villafranca Del Bierzo, inclusive com precipitação de neve, exatamente 23 km à frente de onde eu estava. Coloquei o pé na estrada pensando no longo percurso que havia feito na véspera desde Rabanal Del Camino. Eu ainda não estava totalmente recuperado e achei que seria melhor não forçar muito o passo.
Fui deixando Ponferrada para trás, aos pouquinhos. De vez em quando me girava e tentava avistar o lindo Castelo dos Templários, mas altos edifícios bloqueavam minha visão.
Logo passei por Columbrianos, depois por Fuentes Novas e Camponaraya, todas cidadezinhas situadas na Comarca Administrativa de El Bierzo, que tem na vinicultura uma de suas principais atividades. Andei vários quilômetros por retas trilhas que margeavam imensos parreirais. Era praticamente impossível olhar em qualquer direção sem avistar um cacho de uvas ou descobrir uma nova vinícola nas redondezas.
Caminhava me deliciando com o alegre canto dos pássaros naquela linda manhã ensolarada, quando um pouco mais à frente já fora dessa área privada, começaram a aparecer várias árvores pequenas margeando a estrada. Observei que estavam carregadas de frutos de cor vermelha. O que seria aquilo? Resolvi chegar mais perto e verificar, já que não havia nenhuma cerca ou aviso impedindo que eu o fizesse.
Não pude acreditar: eram cerejas e bem maduras. Colhi várias delas e sentei-me à beira da estrada, empanturrando-me tranquilamente.
Outros peregrinos que vinham logo atrás resolveram fazer o mesmo. Pela primeira vez na vida eu havia comido uma cereja sem ser aquela em conserva dos bolos de aniversário - e colhida da própria árvore.
Segui em frente, mas logo percebi que não aguentaria chegar a Villafranca Del Bierzo. Os excessos da véspera estavam cobrando seu preço. Entrei em Cacabelos e foi “amor à primeira vista”. Adorei aquela simpática cidadezinha com pouco mais de 5.000 habitantes.
Logo na entrada pela “Calle Cimadevilla”, você passa por construções bem simples com paredes de Pau a Pique, todas com uma varanda no andar de cima projetada até o meio da calçada. Pela primeira vez eu vi e consegui passar embaixo de uma marquise na Espanha, embora bastante rudimentar. Pouco adiante, à direita, fiquei curioso ao ver uma pequena igreja toda em pedra. Era dedicada a São Roque. Dentro um simpático senhor explicava aos peregrinos os dados sobre sua construção e a história de cada imagem, que me pareceram muito novas.
Ele veio até mim e perguntou-me em bom português: “és brasileiro de onde”? Certamente havia visto minha bandeirinha do Brasil na Mochila, concluí. Era espanhol e chamava-se Antonio.
- Do Rio de Janeiro, falei.
- Eu morei no Rio de Janeiro por muitos anos no bairro de Botafogo. Tenho mulher e filhos brasileiros. De vez em quando vou lá pra matar as saudades da cidade e dos amigos. Agora estamos morando todos aqui em Cacabelos, disse.
- Mas por que você tomou essa decisão?
- Não deu pra continuar morando lá por causa da violência. Todos os meus filhos foram assaltados. Até eu mesmo que tinha um comércio no bairro, fui assaltado diversas vezes. Resolvi vender tudo e vir para cá. Ainda gostamos muito do Brasil, mas morar lá não dá mais.
Fiquei triste por Antonio e sua família, mas não pude contradizê-lo em nada do que havia dito.
Hospedei-me no Albergue Municipal de Cacabelos, ao lado do Santuário da Quinta Angústia. Ele é dividido em 36 pequenos quartos com duas camas cada. Meu companheiro de quarto foi Estanislau, um senhor mexicano bastante simpático que como eu fazia o Caminho sozinho. Revelou-me que no ano seguinte queria caminhar pelas Muralhas da China e estava assim fazendo um teste preparatório pelo Caminho de Santiago. Saí então pra conhecer a cidade e jantar.
No dia seguinte levantei-me bem cedo e fiz o mínimo de barulho possível para não acordar Estanislau. Deu certo - pouco depois lá estava eu indo para Vega de Valcarce, 24 km à frente.
Após caminhar por oito quilômetros, entrei em Villafranca Del Bierzo, uma linda cidade com pouco mais de 3.000 habitantes. Ali vivia Tomás de Torquemada que foi o terrível Inquisidor Geral dos reinos de Castela e Aragão no século XV e também confessor da Rainha Isabel, a Católica.
O cruel Torquemada foi responsável por milhares de mortes de judeus, ciganos ou de qualquer outra pessoa que aos seus olhos pudesse parecer suspeita. Quem não professasse abertamente a fé católica poderia estar em maus lençóis. Ele promoveu uma intensa “caça às bruxas” por toda a Espanha na Idade Média, inclusive em Villafranca, tendo ali queimado frequentemente suas vítimas nas fogueiras. Sua crueldade foi tamanha que acabou fazendo com que ele perdesse o apoio da Rainha Isabel sendo destituído de suas funções. Quando morreu, foi enterrado em Ávila, mas os moradores locais violaram sua sepultura e o esquartejaram, atirando seus restos mortais para fora da muralha romana que protegia a cidade. Simplesmente não o queriam ali.
Comecei a perguntar aos moradores de Villafranca Del Bierzo onde afinal estava situada a casa que fora dele. Todos me davam uma desculpa e desconversavam. Afinal, uma senhora bastante idosa deu-me uma vaga ideia de sua localização, mas não consegui identificar nada do que buscava.
Decepcionado, resolvi continuar minha caminhada para Vega de Valcarce. Mal havia começado a andar, percebi numa esquina, uma casa com pesadas portas e grandes janelas, algumas das quais lacradas com ripas de madeira e grossos pregos enferrujados. Tive a impressão de que os transeuntes estavam evitando o lugar pegando sempre uma viela alternativa. Aproxime-me para ver melhor.
Quando cheguei bem perto, senti um gelado arrepio percorrendo todo o meu corpo, dos pés à cabeça. Não tive mais nenhuma dúvida: aquela era a casa de Tomás de Torquemada.
Os fluidos que emanavam daquela lúgubre construção eram tremendamente pesados e negativos. Um quê de angústia pairava no ar que parecia mais frio ali do que em qualquer outra parte. Não se ouvia o canto de um só pássaro, nem mesmo o zumbir de um único inseto.
Ainda vivamente impressionado, mas feliz por haver descoberto o que queria, tomei a direção de Vega de Valcarce fazendo o sinal da cruz e deixando para trás aquela cidade.
Adeus Tomás de Torquemada - até breve, Villafranca Del Bierzo.
XXVIII - De Villafranca del Bierzo ao Cebreiro
Deixei Villafranca Del Bierzo pelo seu lado Norte atravessando a ponte medieval sobre o Rio Burbia que banha a cidade. O dia ainda continuava muito bonito a despeito das intensas chuvas que haviam castigado a região.
Enquanto caminhava para Vega de Valcarce, meu próximo destino a 18 km dali, ainda pensava nas vítimas de Tomás de Torquemada, o feroz baluarte da inquisição espanhola.
A Idade Média trouxe muito sofrimento: guerras, pestes e perseguição religiosa. Era a época do obscurantismo e do domínio dos senhores feudais, cheios de privilégios e conveniências pessoais, como a de ter direito à primeira noite de núpcias antes dos noivos com as jovens que se casavam em suas terras (só com aquelas bonitinhas, claro). Os pobres viviam basicamente do plantio e cultivo de grãos e hortaliças, além da criação de animais, principalmente ovinos e caprinos que lhes forneciam a carne, o leite e suas peles.
Imagine agora você acariciando uma ovelha do seu rebanho dizendo-lhe algo em sinal de gratidão ou de alegria (como fazemos hoje com os nossos animais de estimação). Você já seria candidato à fogueira.
É uma atitude humana perfeitamente normal, mas Isso já era motivo suficiente para que um vizinho inimigo seu dissesse para os Tribunais da Inquisição, que você se comunicava com o demônio através da sua ovelha ou da sua cabra. Tudo era considerado sortilégio. As mulheres foram as mais perseguidas e rotuladas de bruxas sob qualquer pretexto.
Ia pensando nos gritos dessas pobres criaturas ardendo nas fogueiras em praça pública, quando repentinamente fui remetido à realidade pela estridente buzina de uma carreta – eu acabara de entrar no acostamento da Rodovia N-6, ou Autovia do Noroeste. Fui saudado efusivamente pelo motorista que colocara a mão pra fora da cabine levantando o polegar, como que me desejando sucesso e boa sorte na caminhada. Os espanhóis, de maneira geral, respeitam e apoiam os peregrinos, até mesmo porque somos uma preciosa fonte de ingresso de capital em seu país e responsáveis pela manutenção de milhares de empregos diretos e indiretos.
Após alguns quilômetros caminhando pelo acostamento, vi a famosa placa amarela que orienta os peregrinos, indicando que eu deveria sair da estrada e continuar para Pereje e Trabadelo. Um grupo de ciclistas italianos passou por mim e deteve-se logo adiante. Percebi que um deles falava ao celular com alguém que parecia estar mais à frente e lhe dizia que as chuvas tinham transformado aquele trecho em puro barro, aconselhando-os a continuarem na Rodovia N-6.
Dei meia-volta e resolvi fazer o mesmo. Não havia motivos para que eu me arriscasse a um escorregão na lama. Santiago de Compostela me amava e queria me ver em sua Catedral são e salvo – não com uma perna quebrada. Eu agora pensava assim.
Prossegui pelo acostamento até La Portela de Valcarce, onde parei para “colocar combustível na máquina”, ou seja, tomar um canecão de cerveja - senão não dá!!!
Mais alguns quilômetros e passei por Ambasmestas, avistando Vega de Valcarce pouco depois. Vega em espanhol significa Várzea. Valcarce é o nome do principal rio da região. Em suas margens nasceu esse pequeno município de apenas 600 habitantes.
Fazia muito frio e chovia fino quando encontrei já no limite de minhas forças o Albergue Municipal da localidade. Fui atendido pela gentil facilitadora (nome que se dá a quem trabalha nos albergues municipais) chamada María. Ela pediu que eu fizesse o máximo silêncio quando colocasse minhas coisas no dormitório, pois um grupo de alemães havia chegado há pouco menos de uma hora e estava dormindo após ter caminhado por dois dias seguidos sem descanso.
Tomei meu banho e pedi o formulário para remeter minha mochila para o Alto do Poio, minha próxima parada. Era a primeira vez em que eu utilizava esse recurso, pois na manhã seguinte teria pela frente uma subida de 700 metros até O Cebreiro, um dos trechos mais difíceis de todo o Caminho.
Enquanto jantava solitariamente no próprio albergue, já que era o único hóspede acordado, notei duas imagens em barro de galinhas d’Angola que me lembraram bastante aquelas fabricadas nas cidades de Tiradentes e Vitoriano Veloso, em Minas Gerais. Perguntei a María, enquanto ela me servia a refeição, como aquelas peças tinham ido parar ali.
- Este albergue foi administrado por um brasileiro durante alguns anos, respondeu-me. Essas galinhas eram dele, mas nos deu de presente quando se foi.
Dormi como uma criança depois de ter tomado uma garrafa de vinho, já incluída no cardápio do "Menú Del Peregrino".
Na manhã seguinte levantei-me cedo, pois estava excitado para entrar finalmente na última Comunidade Autônoma do Caminho: A Galícia – a mais verde, chuvosa e úmida região da Espanha, com seus enormes rebanhos bovinos, excelentes queijos, frutas diversas, aguardente da boa e grande variedade de pescado e frutos do mar, principalmente o que eu tanto almejava: polvos e mais polvos.
A Galícia é a região espanhola com o maior percentual de consumo de polvos “per capita” de toda a Espanha. Não sei como os oceanos conseguem suprir essa demanda. Haja polvo!!!
Minha decisão de expedir a mochila para o Alto do Poio, meu próximo destino fora acertada, pois logo após Ruitelán e Las Herrerias, comecei a pegar uma forte chuva exatamente na hora em que iniciava a subida. Entre escorregões e chutes em muitas pedras soltas, cheguei à localidade de La Faba com apenas 25 habitantes onde descansei um pouco, pois teria que subir mais 300 metros até La Laguna, último vilarejo da Comunidade Autônoma de Castilla y León com igualmente 25 habitantes.
Finalmente, após passar por La Laguna, encontrei o marco em pedra com o brasão da Galícia bem à beira do Caminho. Tirei minha capa de chuva e a mochila para iniciar um solitário bailado. Eu pulava para um dos lados desse marco divisório e cantarolava: “Estoy en Galicia”. Logo depois passava para o lado oposto e dizia: “Estoy en Castilla y León” e assim fiz por diversas vezes. Sentia-me como uma criança, rindo de mim mesmo e achando que tudo aquilo era uma loucura. A chuva aumentava inexoravelmente caindo em grossos pingos como se quisesse participar da minha inusitada comemoração.
Assim que comecei a subir os últimos 130 metros que me separavam do O Cebreiro, a chuva cessou de pronto, mas pequenos riachos formados pela enxurrada desciam em minha direção à medida que eu caminhava.
Para piorar as coisas, uma densa neblina começou a tomar conta do cenário. Eu não conseguia ver mais nada além de 5 metros diante do meu nariz. Um vento gélido soprava de cima para baixo, retardando impiedosamente minha ascensão. Dei uma topada numa grande pedra bem no meio da trilha e quase caí de cara na lama. Apoiei instintivamente minha mão no chão, mas acabei luxando meu dedo mindinho. Comecei a recitar aos berros todos os palavrões que já conhecia - e os que não conhecia também.
Estava visivelmente irritado e sob intenso estresse, quando quase por magia, após uma forte rajada de vento, vi descortinar-se diante dos meus olhos um dos mais lindos cenários de todo o Caminho. Finalmente lá estava ele – O Cebreiro – com toda a sua majestade: um antigo povoado celta da Idade do Feno perfeitamente conservado e ainda com habitações da época.
Ali existe uma pequena e emblemática igreja toda em pedra dedicada a Santa María La Real, onde teria ocorrido o milagre do Santo Graal. Conta-se que um camponês, tendo vencido uma terrível nevasca para assistir à Santa Missa dominical, bateu à porta do pároco local por ter encontrado a igreja fechada. Este, meio contrariado por ter que abrir a igreja apenas para o humilde camponês, tentou dissuadi-lo de sua pretensão dizendo que não seria necessário ter tanta fé assim, pois Deus entenderia.
O camponês não desistiu e o pároco visivelmente contrariado resolveu celebrar rapidamente uma missa, dizendo apenas algumas palavras e uma rápida oração em meio às quais murmurou baixinho no momento da consagração: “esse camponês veio até aqui vencendo imensa tempestade somente para me incomodar e ver um simples pedaço de pão e um pouco de vinho”.
Imediatamente o vinho se transformou em sangue e a hóstia em carne. O milagre atraiu gente de todos os rincões. O cálice sagrado ainda se encontra no interior da igreja dentro de uma redoma de vidro e fortemente protegido por dispositivos eletrônicos de segurança.
Os corpos do pároco e do camponês se encontram sepultados até hoje sob o altar onde aconteceu este comprovado milagre. Como a igreja estava fechada, entrei num restaurante localizado ali próximo e pedi imediatamente um “Pulpo a Feira”, tradicional prato da culinária Galega, onde os tentáculos do polvo são temperados com colorau e pimenta em pó.
Já satisfeito por ter comido o delicioso polvo, tomei uma dose da “aguardiente galega” ou “bagaceira” como é chamada pelos portugueses e comecei a descer a trilha em direção ao Alto do Poio. Nove quilômetros ainda me aguardavam antes que eu pudesse encerrar minha jornada.
XXIX - Do Cebreiro a Portomarín
Deixei o Cebreiro assim que o denso nevoeiro se dissipou. Tudo estava límpido e claro, com um céu de azul intenso. A despeito de tudo isso eu não conseguia enxergar absolutamente nada olhando para o imenso vale logo abaixo – apenas um espesso e contínuo tapete branco. Acabei entendendo que eu estava acima das nuvens. Era uma visão fantástica, a mesma que temos quando estamos no Cristo Redentor, no Rio de Janeiro, e as nuvens mais altas se dissipam, enquanto aquelas que estão abaixo de nós ainda se mantém por algum tempo impossibilitando que vejamos a cidade.
Na prática, a partir do Cebreiro não há mais subidas significativas - só descidas. A gente sai de uma altitude de 1330 metros e baixa até os 260 metros de Santiago de Compostela, quase sem oscilações.
Fui descendo até Linares para logo à frente subir suavemente até Hospital de La Condesa. Dois quilômetros depois cheguei ao Alto do Poio. Dirigi-me ao Albergue Del Puerto, bastante simples. Na verdade era apenas um pequeno bar com algumas mesas para refeições localizado bem na beira de uma estradinha quase sem tráfego, a LU-633.
Os quartos ficavam no andar superior com somente18 leitos. Procurei pela mochila que havia despachado de Vega de Valcarce e uma senhora me levou até uma pequena sala nos fundos apontando para várias delas que estavam no chão, uma ao lado da outra.
Peguei a minha sem que ninguém me exigisse qualquer tipo de comprovação. A palavra das pessoas por aqui ainda é suficiente.
Resolvi hospedar-me ali mesmo. Falei para a gentil senhora que me atendera, que havia caído na subida do Cebreiro e ela gentilmente mudou-me para um quarto menor, onde não havia mais ninguém.
- Aqui ficarás melhor. Não te preocupes, vou te cobrar o mesmo preço.
Agradeci tomei meu banho e desci para jantar, pois não havia mais nada pra se fazer naquele lugar.
Enquanto comia, notei que as pessoas falavam uma língua diferente, uma mistura de espanhol e português. Era o Galego - afinal eu estava na Galícia e nada mais natural que isso.
Tive um pouco de dificuldade para dormir, pois o bar lá embaixo ficou lotado e à noite os galegos conversavam muito alto enquanto jogavam cartas. Uma verdadeira algazarra.
Na manhã seguinte tomei café ali mesmo e retomei o caminho, passando ao lado de lindas fazendas.
O cheiro de esterco estava em toda parte. Comecei a encontrar aldeões tocando o gado pela trilha e quando isso acontecia tinha que me encostar a alguma cerca ou árvore para permitir a passagem dos rebanhos. Se não tomasse cuidado iria acabar atolando o pé num daqueles montes de cocô de vaca que ficavam pelo caminho.
Na localidade de Biduedo, encontrei bem na beirada da estradinha uma ermida em pedra dedicada a San Pedro, a menor de todo o Caminho. Dizem que dentro dela há uma espécie de passagem para outra dimensão. Tentei entrar, mas estava fechada. Através das grades do postigo de sua espessa porta de madeira, me foi possível ver apenas um singelo altar com algumas imagens numa espécie de oratório.
Continuei caminhando por mais sete quilômetros, passando por Filloval e As Pasantes, chegando a Triacastela, uma cidadezinha com apenas 680 habitantes, de onde pretendia ligar para casa. Chovia muito nesse momento.
Era dia 29 de maio - eu e minha esposa estávamos completando 44 anos de casados. Somando os anos de namoro e noivado dava mais do que isso – quase meio século. Troquei alguns euros em moedas, pois o telefone do restaurante não aceitava outra coisa.
- Tens que colocar várias moedas antes para não cair a ligação, avisou-me o proprietário.
Minha mulher atendeu do outro lado. No Brasil ainda era cedo e ela estava dormindo. Assim que ouvi sua voz comecei a chorar. Dei-nos mutuamente os parabéns pelo transcurso dessa importante data e falei-lhe de minhas descobertas pelo Caminho, de minhas angústias e de minhas alegrias. As moedas de 1 euro caíam freneticamente, uma após a outra. Terminei dizendo que estava sentindo muito a sua falta e que no próximo ano certamente faríamos o mesmo Caminho juntos.
Encerrada a ligação, tomei um canecão de chope nesse mesmo lugar e retomei a marcha debaixo de uma pesada chuva. Afinal, eu estava na Galícia, a Comunidade Autônoma com o maior índice pluviométrico de toda a Espanha.
Passei por San Cristobo do Real e Renche, todos simples, mas lindos e bucólicos lugarejos onde predominavam as atividades campestres. A chuva continuava a castigar-me impiedosamente até que, por fim, avistei a cidade de Samos com seu lindo Monastério que oferece pousada aos peregrinos. Como estava lotado, acabei tendo que hospedar-me num albergue particular que fica bem na frente dele.
Na manhã seguinte o tempo amanheceu muito bom e assim resolvi caminhar um pouco mais devagar para poder apreciar melhor toda a beleza daquela região.
Muito embora esse trecho acompanhasse o mesmo trajeto da “carretera” Lu-633, havia muito que se ver. Fiz apenas 12 quilômetros de Samos a Sárria, passando por Teigun e Aian.
Já em Sárria, minha preocupação era apenas a de encontrar uma boa “pulperia”, onde pretendia comer o famoso prato de polvo preparado naquela cidade.
No Albergue, recomendaram-me a Pulperia Luís. Fui o primeiro cliente do dia a ser atendido, pois os lindos caldeirões de cobre usados para preparar o polvo sequer haviam sido colocados no fogo.
- Não há pressa, disse tranquilizando logo o pessoal da cozinha. Basta que me tragam uma garrafa de vinho, pão e azeite e esqueçam que eu estou aqui.
A turma riu bastante e acabaram por me deixar bem à vontade.
Enquanto ia tomando meu vinho e me deliciando com as fatias daquele apreciado pão molhadas no azeite verde e espesso da região, fui colocando a minha correspondência em dia. De vez em quando me levantava e ia ver como estava indo o preparo do polvo, dando uma cheirada na fumaça que saía do caldeirão. O pessoal do restaurante achava engraçado.
- Por que vocês brasileiros são assim sempre tão divertidos? – perguntou-me a jovem atendente.
- Acho que a gente tem que ser assim pra não chorar, respondi.
Ela achou graça e finalizou dizendo que o vinho era por conta da casa. Gostei muito!!
Notei que havia uma bruxa de pano pregada na parede. Não era a primeira vez que eu via aquilo na Galícia. Parecia uma espécie de amuleto de aceitação geral, algo muito estranho justamente numa região que fora a mais castigada pela inquisição espanhola.
Satisfeito após ter comido (e repetido) o tal polvo, fui visitar a cidade que tem pouco mais de 13.000 habitantes.
Despertei cedo na manhã seguinte e lá fui eu pra caminhada do dia. Cruzei lindas vilas e bosques ouvindo os pássaros cantando nas árvores, quase sempre margeando algum riacho.
Passei por Barbadelo, Rente, Peruscallo, Belante, A Brea, Ferreiros, as Rozas, Vilachá e finalmente avistei Portomarín, a meta dessa minha jornada depois de ter caminhado exatos 22 quilômetros.
XXX - De Portomarín a Ribadiso
O Sol já ia alto quando avistei Portomarín, não mais que uma vila com quase 2.000 habitantes. Eu estava bastante cansado, mas atravessei a passos largos a longa ponte sobre o Rio Minho, que a despeito do que muitos pensam não é um rio exclusivamente português, pois nasce na Espanha, mais exatamente na Província de Lugo.
Podemos dizer que Portomarín hoje é uma cidade nova, pois a velha se encontra sob as águas do Minho, afogada impiedosamente pela construção da barragem de Belesar. Era uma cidade histórica tendo sido decretada Patrimônio Artístico da Espanha em 1946 pelo então Generalíssimo Franco. Nas estações secas, quando o nível do rio baixa, a ponte velha revela-se aos olhos dos passantes em toda a sua antiga beleza.
Antes da construção da represa e consequentemente da inundação da antiga vila, algumas poucas construções de relevância foram desmontadas, pedra por pedra, e remontadas na nova Portomarín logo acima do local onde se encontravam. A mais importante delas foi a igreja templária de San Juan (San Xoán em galego). Ainda é possível encontrar em algumas pedras, o número de ordem recebido por ocasião do traslado.
Portomarín também é famosa pela produção de sua “aguardiente”, na realidade uma “bagaceira” espanhola, feita a partir das cascas da uva.
No dia seguinte caminhei 25 quilômetros até Palas de Rei, passando por Gonzar, Castromaior, Hospital de La Cruz, Ventas de Narón, Ligonde, Airexe e Abenostre.
Palas de Rei é outro município de Lugo, tendo pouco mais de 3.500 habitantes. No caminho para lá um espanhol passou ao meu lado falando ao celular dizendo que iria comer um ótimo polvo na “Pulpería O Camiñante” bem na entrada da cidade. Não pensei duas vezes – fui direto para lá assim que cheguei. Realmente o polvo dali é sensacional (aliás, de toda a Galícia).
Na mesa ao lado da minha, dois peregrinos espanhóis conversavam animadamente embalados por algumas taças de vinho. Ouvi quando um deles disse ao outro que após chegar a Santiago de Compostela, iria até A Coruña, pois não se perdoaria por ter estado na Galícia sem ter conhecido sua capital. O outro respondeu que faria o mesmo.
Fiquei quieto, mas aquilo estava me corroendo por dentro. Não conseguindo me conter, falei: “desculpem senhores, mas não precisam ter esse trabalho todo para conhecer a capital da Galícia, pois ela é Santiago de Compostela e não A Coruña”.
Os dois acharam muito engraçado e começaram a rir. Afinal, quem esse brasileiro pensa que é para nos contradizer?
- Perdão senhor, mas a capital da Galícia é A Coruña, disseram.
- Desculpem-me senhores, mas a capital da Galícia é Santiago de Compostela, insisti.
Com um ar de superioridade, o mais novo dos dois falou: “espere aí” - e tirou o celular do bolso. Digitou algo lá no Google para fazer com que eu me convencesse definitivamente.
Notei que ele ia ficando cada vez mais vermelho e desconcertado com o resultado da pesquisa. Digitou de novo, de novo e de novo e eu só olhando. Já meio sem graça falou para seu amigo: “É Pablo – aqui diz que a capital da Galícia é realmente Santiago de Compostela”.
- Bem, vocês dois acabaram de economizar uma grana, falei.
Em meio ao silêncio que se seguiu e notando o visível desconforto dos dois, pedi minha conta e despedi-me deles.
- É brasileiro, você venceu essa, mas nós vamos ganhar a Copa do Mundo este ano dentro da casa de vocês, disseram rindo.
- Não tem problema – nós já ganhamos cinco vezes e vocês só ganharam uma. Nós podemos deixar essa pra vocês, se quiserem – e retirei-me achando graça.
Dormi muito bem naquela noite num albergue situado quase em frente à “Pulpería O Camiñante” e acordei bem disposto na manhã seguinte.
Por que O e não El Camiñante? – simplesmente porque estamos na Galícia onde o português se funde com o espanhol. Outro exemplo é A Coruña.
Minha meta hoje seria a cidade de Arzúa, 30 quilômetro à frente. Atravessei frondosos bosques onde predominava o perfume do eucalipto e passei por lindos povoados como Casanova, Leboreiro, Furelos e Melide, onde me detive na imperdível “Pulpería Ezequiel”, talvez a mais conhecida de todo o Caminho.
Prossegui para Boente e Castañeda e quando faltavam cinco quilômetros para o meu destino, passei por um lugarejo encantador após cruzar uma antiga ponte romana, onde dezenas de peregrinos se banhavam e descansavam sobre a grama para aproveitar aquele “calor” de 15 graus. Era Ribadiso da Baixo (é da Baixo mesmo e não do Baixo).
Seu antigo albergue municipal, que no passado chegou a ser um hospital para peregrinos, fica às margens do Rio Iso (o nome Ribadiso vem de riba+Iso, ou “às margens do Iso”). Resolvi ficar ali.
Fui tomar meu vinho e jantar no único restaurante existente, exatamente ao lado do albergue. Notei que na parede do restaurante lá estava ela: a bruxa. Por que os galegos gostam tanto assim da bruxa? Será que dá sorte pra eles? Na Idade Média não deu.
À noite, já na cama, vi dois rapazes e uma moça chegando e dirigindo-se ao dormitório de cima. Já passava muito das 22 horas e eles estavam bem animados, rindo à toa, sem respeitar os demais peregrinos. Botei a boca no trombone e mandei que ficassem quietos.
- Se vocês gostam de fazer o que querem, vão então para um hotel.
Mais alguns risinhos sufocados do trio enquanto subiam, mas ficou só nisso. Adormeci em seguida pensando que no dia seguinte faria meu penúltimo trecho antes de chegar a Santiago de Compostela. Eu estava terminando o meu Caminho.
XXXI - De Ribadiso da Baixo a O Pedrouzo
Despertei sobressaltado naquela manhã em Ribadiso da Baixo . Era ainda cedo e o sol não havia nascido. Eu estava inquieto por dentro – minha aventura chegaria ao fim em pouco mais de um dia. A partir de onde estava, faltavam apenas 44 quilômetros para chegar a Santiago de Compostela. Meu destino e meta do dia era O Pedrouzo, 24 quilômetros à frente.
Vi o sol nascer em Arzúa enquanto tomava meu café. Retomei minha caminhada passando por Pregontuño. À medida que andava, o número de peregrinos aumentava exponencialmente. Aquela quase solidão que encontrei nos primeiros trechos do Caminho havia desaparecido e dado lugar a animados grupos de caminhantes.
O motivo desse aumento era simples de se compreender: todos estavam em busca da Compostela, ou Compostelana – uma espécie de diploma, na realidade um certificado concedido pelas autoridades eclesiásticas àqueles que caminhassem pelo menos cem quilômetros a pé ou a cavalo (200 se em bicicleta), até a Catedral de Santiago de Compostela na cidade homônima.
Ao longo do Caminho percebi que a maioria dos peregrinos tinha uma excessiva preocupação com esse documento.
Chegavam a esperar pela abertura de alguma igreja dizendo que não bastavam os carimbos dos albergues na Credencial do Peregrino para assegurar a sua obtenção.
Nunca me importei com isto. O Caminho deve ser algo interno – um encontro só teu com a própria consciência, com o teu íntimo. E para que ocorra, o documento ou atestado de conclusão da caminhada não é importante. Deve ser apenas um complemento - uma lembrança, nada mais. A magia não está em percorrer fisicamente todo o Caminho e sim em realizá-lo internamente. Você não foi ali para participar de uma maratona ou estar atento a não falhar um centímetro sequer em todo o percurso. Os caminhos internos, do espírito, da alma, da mente o do coração, são bem mais difíceis de concluir - e isto nem todos conseguem.
Assim pensando, passei por outras lindas pérolas do Caminho, como Calzada, Calle, Boavista, Salceda, Santa Irene e A Rúa.
Mas onde estava O Pedrouzo? Eu havia caminhado quase 30 quilômetros e não tinha visto nada com esse nome. Algo devia estar errado. Resolvi perguntar a um casal de americanos em que localidade estávamos.
- Em Amenal - Você já passou por O Pedrouzo há algum tempo, disseram-me. Somente então percebi meu erro: por algum motivo eu havia me distraído na ânsia de chegar e perdi a seta indicativa do desvio. Eu estava a somente 17 quilômetros de Santiago de Compostela, mas numa localidade sem albergues e bastante cansado para continuar procurando por um.
Resolvi pedir uma carona na estrada e retroceder até o albergue de O Pedrouzo, mas ninguém parava.
De repente, vi dois motociclistas. As motos eram grandes e com um grande assento para o carona. Não pensei duas vezes: fiz sinal e eles pararam. Eram dois portugueses que me explicaram que não poderiam me ajudar, pois eu não tinha um capacete e eles poderiam ser multados por levar alguém sem esta proteção.
Meio decepcionado agradeci e comecei a andar em direção ao albergue. Era uma bela subida, mas não havia jeito.
Já estava conformado com a situação, quando subitamente vi os mesmos motociclistas voltando em sentido oposto e me fazendo sinal para aguardar.
- Aqui está um capacete que conseguimos para ti, oh pá!!! Ponhas isto na cabeça e te deixamos lá no albergue.
Fiquei vivamente emocionado com a preocupação dos dois. Um deles ficou com a minha mochila e fui na garupa do outro.
- É aqui, oh pá – podes descer!!!
Eu estava bastante fragilizado com a longa caminhada, com o engano cometido e também pela proximidade da conclusão do Caminho. A gentileza desses rapazes acabou por fazer-me desabar: não resisti e abracei os dois chorando bastante – não propriamente pelo fato de terem me poupado um bocado de chão, mas pela atenção e pelo carinho que tiveram comigo. Alguns peregrinos na frente do Albergue me olhavam sem entender praticamente nada.
Tomei meu banho, fiz a barba e saí para jantar. Dei umas voltas pelo lugarejo e fui dormir cedo. No dia seguinte eu concluiria o Caminho de Santiago em exatos 37 dias.
XXXII - De O Pedrouzo a Santiago de Compostela
Por mais que tentasse, não conseguia conciliar o sono. Revirava-me no beliche dentro do saco de dormir. Ia ao banheiro, descia ao salão do albergue, ia à cozinha beber água e voltava pro beliche. Nada de sono......
As horas passavam vagarosamente. Meus pensamentos voavam nas asas da inquietação. Eu estava por demais excitado com tudo aquilo. Subitamente o dormitório começou a iluminar-se com os lampejos de uma tempestade que se aproximava. Os trovões acompanhavam a mudança do tempo rugindo demoradamente. Isso acabou de vez com o meu sono. Finalmente ela chegou: uma chuvarada daquelas!!!!
Aproveitei para pegar meu pequeno Guia do Caminho comprado em Sárria e analisei os 20 quilômetros finais com o auxílio de uma lanterna. O trajeto era praticamente plano, exceto por uma subida de 71 metros de Amenal ao Alto de Barreira.
Subitamente a chuva parou. Olhei para o relógio: eram quase 3 horas da manhã. Tem que ser agora, pensei.
Calcei-me silenciosamente, peguei minha mochila, o cajado, e deixei o dormitório com cuidado.
Na portaria, não havia ninguém. A pesada porta de madeira podia ser aberta por dentro e fechada por fora, bastando puxá-la ao sair – e assim o fiz. Logo estava na estrada. Ainda podia ouvir a água da chuva correndo para os bueiros. Tudo completamente deserto. Não havia ninguém lá fora, somente eu e Deus.
Fui andando pelo acostamento da estrada até encontrar em Amenal o desvio para a trilha. Não quis entrar, pois imaginei que deveria estar bastante enlameada por causa da chuva que havia caído e continuei até passar pelo tal Alto de Barreira. Ali entrei para o Caminho propriamente dito e continuei.
Passei por bosques, por pequenas aldeias e também ao lado de igrejas e cemitérios. Evitava fazer ruído com o meu cajado, pois os cães poderiam latir. Todos dormiam, exceto eu. Não havia uma única alma nas ruas.
Estava em meio ao bosque quando vi por entre as copas das árvores o céu ser riscado novamente por relâmpagos. Após o estrondo dos trovões, lá veio ela de novo: uma chuva de pingos grossos e gelados acompanhada de vento.
Apressei-me em retirar a mochila e coloquei a capa. Quando consegui, já estava totalmente ensopado.
Meus tênis faziam aquele ruído característico: xác, xác, xéc, xéc - enquanto eu andava, pois estavam completamente encharcados. A pequena lanterna que eu carregava presa à cabeça começou a piscar e a ficar cada vez mais fraca - ou porque as pilhas se exauriram ou porque a água da chuva havia entrado nela. Comecei a ouvir ruídos, provavelmente de animais se locomovendo entre as árvores e arbustos. Não me importei e segui em frente tateando o terreno. A lanterna agora apagara de vez. A escuridão era total e eu aproveitava a breve luz de cada relâmpago para poder me situar e verificar onde estava pisando.
O barulho provocado pelos rios ao lado dos quais eu passava, ia aumentando cada vez mais em razão da água recebida da chuva. Comecei a arrepender-me por não ter ficado no albergue até amanhecer. Aquilo tudo perecia ser uma loucura: eu caminhando de madrugada num país distante, debaixo de um temporal e no meio de uma floresta, agora escura como o breu.
Subitamente parei e fiquei imóvel como uma estátua: atrás das árvores pude distinguir luzes vermelhas piscando intermitentemente. Relaxei quando lembrei que havia visto no guia uma referência ao aeroporto de Santiago de Compostela. Eu estava na localidade de Lavacolla e aquela era uma das torres auxiliares de aproximação que indicavam o rumo da pista às aeronaves.
Finalmente cruzei todo o bosque e ao passar por Vilamaior, a chuva e o vento pararam por completo. Tirei a mochila e a capa e resolvi ficar sentado no banco de uma praça me recuperando.
Retomei a caminhada e após passar por San Marcos, cheguei ao tão sonhado Monte do Gozo, assim chamado porque dali é possível finalmente avistar-se meio ao longe a cidade de Santiago de Compostela.
Eu havia conseguido!!!!
Foi impossível conter a emoção e comecei a chorar. Eu estava sozinho ali, ninguém mais. Pude dar-me então ao luxo de gritar com toda a força dos meus pulmões: Ahhhhhhhhhhhhhhh!!!!! Era um grito de conquista, de realização, de alegria e de vitória!!! Devo ter acordado toda a Galícia.
Não quis esperar nem mais um segundo. A passos largos fui descendo em direção a Santiago de Compostela. Ainda deveria vencer outros quatro quilômetros e meio, mas isso não seria problema - depois de ter feito o Caminho, qualquer distância menor que 10 quilômetros passou a ser “logo ali”.
Fui entrando na cidade como um conquistador. O dia agora clareara totalmente como que a dar-me as boas-vindas.
Um milhão de pensamentos cruzavam a minha mente. Curiosamente eu sentia um misto de alegria e tristeza. Estava feliz por ter completado o Caminho, mas triste pelo fato de ter chegado ao final. É como atingir o clímax: depois dele não há mais nada – só o silêncio e a certeza de que acabou. Um verdadeiro paradoxo.
Tomei café logo na entrada da cidade e fui ao Albergue Menor Belvís para hospedar-me.
Na recepção, perguntei ao administrador se não havia recebido a caixa de papelão que eu despachara de Estella para ali em meu nome com as coisas que carregava em excesso.
- Sim, recebemos, mas jogamos no lixo porque você deveria tê-la mandado para o correio de Santiago. Aqui não podemos reter pacotes de ninguém. Se todos os peregrinos fizessem o que você fez, não teríamos lugar para guardar mais nada. Ademais, você não nos pediu autorização para enviar o pacote pra cá.
Fiquei meio aborrecido, mas não pude deixar de admitir que ele estava com a razão.
- Está bem – tudo certo e muito obrigado, falei.
Tinha acabado de me girar para subir pro quarto, quando ele me chamou: tinha nas mãos o meu pacote e na face um sorriso.
- “Pero si haces eso de nuevo te lo pongo en la basura”, disse franzindo as sobrancelhas e fitando-me ainda com ar de censura.
Não, eu certamente não faria aquilo de novo - tinha aprendido a lição.
Tomei meu banho, troquei a roupa e fui para o centro de Santiago. Ali comecei a encontrar muita gente que havia conhecido pelo Caminho. A cidade era uma festa só. Muita alegria, muita gente se abraçando e dando-se os parabéns mutuamente pela conclusão da caminhada. Alguns bebiam canecões de cerveja nas mesas dos bares - já outros seguravam suas taças de vinho de pé em plena rua. Avisaram-me para ir logo pegar a Compostelana, antes que a fila aumentasse. Olhei e vi que realmente estava pequena - fui aproveitar a chance.
Já com o certificado de conclusão do Caminho em mãos, fui para a Catedral de Santiago de Compostela assistir à Missa do Peregrino, durante a qual um enorme “Botafumeiro”, na realidade um turíbulo de 80 quilos e 1,60 metros de altura, fica oscilando como um pêndulo acima dos presentes espalhando incenso pelo ambiente. É tão pesado que essa operação deve ser feita por vários padres auxiliares que ficam puxando de forma cadenciada a grossa corda. Dizem que no passado, o incenso servia para disfarçar o mau cheiro dos peregrinos.
Também ouvi dizer que nos primórdios do Caminho, os peregrinos tinham seus nomes citados durante a missa. Isto hoje é praticamente impossível.
Entre os cânticos e o som do órgão, agradeci emocionado aos céus por ter conseguido chegar depois de tantos dias, de tanta luta.
Pedi novamente a Deus por todos que conhecia e também que a humanidade encontrasse paz. Aproveitei o momento para lamber minhas feridas e fazer uma faxina nos porões da minha alma. O homem nada é sem seus sonhos, mas da mesma forma não existe sem sua fé e a misericórdia divina.
Voltei ao Albergue e lá encontrei finalmente o casal de Santa Catarina: Paulo Dom Quixote e sua simpática esposa Marta. Eles também estavam hospedados ali. Convidaram-me para tomar um vinho no refeitório. Não havia taças nem copos de vidro e acabamos tendo que usar os de plástico mesmo.
Entretanto foi um dos melhores vinhos que já tomei - não só pela qualidade, mas principalmente pelo momento que desfrutamos juntos.
E exatamente como havia ocorrido em San-Jean-Pied-de-Port antes do primeiro dia do início da nossa caminhada, também jogamos muita conversa dentro.
No dia seguinte fui conhecer Finisterra, o ponto mais ocidental da Espanha, onde os peregrinos costumam queimar as roupas e objetos usados durante o longo percurso. Para mim tudo havia terminado ali, ainda que eu não tivesse queimado absolutamente nada.
Voltei para Santiago e no dia seguinte embarcaria para Madri, de onde pegaria meu voo de volta para o Brasil.
Como seria a minha vida depois de tudo o que vivi nessa mística caminhada? A mesma certamente não seria.
A gente sai do Caminho, mas o Caminho nunca mais sai da gente.
É um fato.
F I M