>Nota: Os capítulos I ao XVI encontram-se no livro Uma Aventura no Caminho de Santiago

 
XVII - De Sto. Domingo de la Calzada a Belorado
 
Andei pelas vielas de Santo Domingo de la Calzada estupefato por sua beleza. Era uma linda sexta-feira de primavera. O ir e vir das pessoas passando por aquelas ruas aumentava a cada minuto. Brindes sendo erguidos nas portas e mesas em frente aos bares, risos altos e espontâneos vindos dos grupos formados nas esquinas, namorados passeando de mãos dadas e crianças brincando nas pracinhas, ajudavam a compor todo aquele clima de pura alegria e descontração.
Subitamente, minha atenção foi despertada pelos primeiros acordes de uma música tipicamente espanhola que parecia vir da “Plaza de España”, a principal da cidade. Eu já estava indo para o meu albergue, mas voltei-me imediatamente em direção ao som e resolvi ir ver o que era aquilo.
Fiquei surpreso ao encontrar centenas de pessoas sentadas lado a lado bem no meio da praça. Estavam dispostas ordeira e simetricamente umas das outras. Notei que as cadeiras eram de vários tipos, como se tivessem sido trazidas de casa pelos próprios espectadores. Algumas eram de madeira, outras de plástico rígido. Havia até mesmo algumas poltronas, mas tudo muito bem arrumado como numa verdadeira sala de espetáculos.
Aproximei-me pelo flanco e fiquei perto da pequena, mas bem ensaiada orquestra que estava sobre um palanque também improvisado. Ao final das interpretações, todos aplaudiam educadamente, sem assobios ou gritos. O repertório mudou para algumas peças clássicas da música erudita, voltando em seguida para aquelas mais conhecidas do cancioneiro espanhol.
Fiquei estático e emocionado vendo e ouvindo tudo aquilo. A educação, a ordem e o respeito demonstrados por aquela gente àquele evento, fizeram com que eu me sentisse feliz por ter sangue espanhol correndo em minhas veias.
Estava vivamente embevecido quando fui inesperadamente sacudido e trazido de volta à realidade pelo badalar dos sinos da Catedral junto à praça. Eram 22H00 em ponto e o meu albergue já deveria estar fechando as portas. E como no conto de Charles Perrault - Cinderela - apressei-me em sair dali em desabalada carreira, antes que todo o encantamento se desfizesse. Cheguei finalmente à Abadia Cisterciense onde estava hospedado e para minha surpresa vi que a porta estava apenas encostada.
Quase sem fôlego, entrei desculpando-me com a administradora pelo acontecido, ao que ela sorrindo me respondeu: “Não te preocupes. Hoje é dia de apresentação da orquestra na Plaza de España e os peregrinos acabam se esquecendo mesmo do horário. Outros ainda chegarão depois de ti. Suba e durma com Deus”.
E dormi mesmo, pois só acordei na manhã seguinte com uma música sacra tocando, cujo volume ia subindo aos poucos pra despertar os peregrinos para mais um dia.
Já no Caminho, passei pela “Cruz de los Valientes” e parei mais à frente para tomar café em Grañon, um povoado de 270 habitantes.
Logo após, cheguei a Redecilla del Camino, outro povoado com 120 habitantes. Estava agora oficialmente na terceira Comunidade Autônoma do Caminho, ou seja, Castilla y León. Segui em frente passando por outras pérolas do Caminho: Castildelgado, Viloria de Rioja e Villamayor del Rio, onde avistei do outro lado da estrada um restaurante chamado "Casa León".
Cansado por ter caminhado cerca de 18 km até ali, resolvi fazer uma parada estratégica, pois ainda me restavam outros 5 km de caminhada até Belorado.
Assim que abri a porta, fui advertido pelo proprietário - que veio como uma flecha em minha direção - de que não poderia entrar ali com a minha mochila nem com o meu cajado. Além disso, disse que eu tinha que ver se minhas botas não estavam sujas de barro. Ele era o Sr. Javier. Uma figuraça!!!!
Não discuti e fiz o que ele me pediu, afinal não me parecia haver outro estabelecimento nas imediações e eu estava louco por um canecão de cerveja. Além disso, não estava na Espanha para discutir e sim para aproveitar.
Já dentro do restaurante entendi a preocupação de Javier e dei-lhe razão. O “Casa León” é sem dúvida o mais bem cuidado estabelecimento comercial que encontrei no Caminho. É finamente decorado com mobiliário de época, dezenas de relógios antigos, pinturas nas paredes, estátuas e gravuras por toda parte. Tudo de extremo bom gosto.
Aquilo parecia mais um palácio do que um restaurante. Fico pensando no estrago que um peregrino poderia fazer ao girar-se desatentamente: ia voar bibelô pra todo lado!!!!!
Fiz questão de parabenizar Javier. Ele agradeceu e veio logo pessoalmente trazer a minha cerveja. Ficou ali de pé ao lado da minha mesa enquanto eu bebia.
- Tu não me acompanhas, Javier?
- Está bem. Vou tomar uma contigo.
Ele viu que eu era brasileiro e passou a fazer muitas perguntas sobre a situação em que nos encontrávamos.
- Não entendo como um país tão grande como o Brasil, onde a Espanha caberia diversas vezes, não aproveite tudo o que tem. Vocês deveriam estar no topo dos países mais ricos e desenvolvidos do mundo, disse-me
Era difícil explicar a Javier o porquê disso não estar acontecendo. Era melhor que ficássemos apenas nos deliciando com nossas canecas de cerveja. Eu queria mesmo era esquecer as mazelas do meu país e aproveitar aquele momento.
De vez em quando, Javier levantava-se e partia como uma bala de rifle em direção à porta do restaurante para barrar a entrada de outros peregrinos e informá-los sobre o “regulamento da casa”. Alguns praguejavam e não entravam.
Eu estava me divertindo com tudo aquilo. Tinha que conter o riso quando via os olhos arregalados dos peregrinos ao receberem as regras ditadas por Javier.
Em um certo momento, desculpou-se comigo e disse que tinha que providenciar algumas coisas para o jantar, mas não antes de me trazer outro canecão de cerveja acompanhado por um prato de “pinchos”. Isto é por conta da casa, disse-me.
Agradeci e resolvi deliberadamente colaborar informando tudo aos outros “desavisados peregrinos” que chegavam, pois eu agora era amigo do Javier (risos).
Um deles, que me pareceu ser um chinês, não concordou comigo e disse que iria somente ao toalete para sair logo em seguida e por isso não precisava tirar a mochila.
O infeliz rapaz foi surpreendido por Javier que saltou sobre ele já na metade do caminho como um gato sobre um camundongo, colocando-o imediatamente para fora.
Eu por mais que tentasse, não conseguia deixar de rir com tudo aquilo. Acabei engasgando com a cerveja. Meus olhos lacrimejavam - quanto mais fazia esforço para me conter, mais ria e precisava disfarçar a todo momento.
Antes de sair, já refeito, abracei demoradamente Javier e prometi-lhe que voltaria um dia. Deixei também uma calorosa e entusiástica mensagem no seu livro de visitantes, elogiando o estabelecimento e a amável recepção. Afinal, o “Casa León” era realmente uma pérola perdida nas profundezas abissais do Caminho, um verdadeiro oásis no deserto que infelizmente nem todos os peregrinos estão preparados para apreciar.
Cinco quilômetros depois cheguei a Belorado. Fui dormir ainda rindo das cenas que havia presenciado no “Casa León” e feliz pelos bons momentos que ali passei.
 
 
XVIII - De Belorado a San Juan de Ortega
 
O dia mal começara quando fui despertado pelo incômodo ruído dos sacos plásticos sendo manuseados pelos peregrinos arrumando suas mochilas. Isso é uma das coisas irritantes quando nos hospedamos em albergues e temos que compartilhar do mesmo dormitório. É impossível alguém querer dormir mais uns quinze minutinhos, simplesmente não dá.
Um casal de italianos se esforçava para falar baixo, mas não conseguia. O homem reclamava com a mulher dizendo ter certeza de que havia dado a ela sua capa de chuva para guardar.
- Agora vamos ter que ficar aqui em Belorado até essa droga de chuva passar, dizia ele.
A mulher não fez por menos: pegou a mochila dele e esvaziou-a sobre o colchão da cama beliche, encontrando finalmente a tal capa grudada no fundo dela.
- Está vendo? Aqui está a tua bendita capa. Acho bom você consultar um oculista imediatamente – disse ela num tom de sarcasmo ao mesmo tempo em que o encarava de forma desafiadora, como alguém que tivesse acabado de vencer uma grande batalha e aguardasse o reconhecimento do inimigo.
Eu estava com sorte. Já havia caminhado exatos 240 km até ali sem ter sido incomodado pela chuva, exceto nos Pirineus quando saí de Saint-Jean-Pied-de-Port para Roncesvalles.
A cozinha do albergue estava entupida de gente tomando café. Ninguém queria sair caminhando debaixo daquele aguaceiro. Depois de tomar uma caneca de leite quente e comer alguns biscoitos, resolvi ir à luta colocando minha capa de chuva.
A capa nos tolhe os movimentos, força a transpiração e ainda por cima faz com que a mochila fique deslizando nas costas sobre ela se não estiver bem afivelada.
Finalmente deixei Belorado em direção a San Juan de Ortega, minha próxima parada. A trilha estava bastante escorregadia e cheia de poças. A chuva aumentava a cada minuto e, para piorar, o vento tinha vindo fazer-lhe companhia.
Meus pensamentos começaram a voar rumo ao infinito como pássaros em busca de um abrigo seguro. Eu tentava compreender e encontrar uma explicação para o fato de estar exatamente ali naquele lugar, enfrentando a fúria dos elementos. Pra que e por quê?
Pra piorar as coisas, o vento era gélido e impiedoso. Provavelmente vinha das montanhas próximas a León que costumam permanecer com seus picos nevados mesmo durante a primavera. O que me havia feito estar ali? O que buscava? Aonde eu queria chegar?
Qual o significado de tudo aquilo? Meus pensamentos agora iam e vinham aos borbotões, como ondas frias e indecifráveis. Eu estava absolutamente solitário na trilha, exatamente como queria.
Para vencer o momento, olhava para um ponto fixo bem à frente, como por exemplo, uma árvore, e dizia a mim mesmo que aquele era o meu objetivo. Ao chegar lá, elegia outro mais adiante e assim sucessivamente. Deu certo - esqueci-me completamente do tempo.
De repente, como num passe de mágica, o vento começou a abrandar até parar de vez. A chuva, achando que não seria justo ficar sozinha na brincadeira de testar minhas forças, resolveu igualmente sair do jogo.
O sol apareceu e ofereceu-se a mim como um troféu pela paciência e insistência. Comecei a suar como um cavalo por causa do plástico da capa de chuva. Despojei-me imediatamente dela e recoloquei a mochila com certa dificuldade. Detesto suar!!!! Prefiro a chuva, o vento e o frio.
Passei por Tosantos, Villambistia e Espinosa del Camino que estavam absolutamente desertas. É curioso, mas a gente mal vê algum habitante quando atravessamos essas pequenas cidades do Caminho.
Mesmo nos dias de sol, as ruas são normalmente desertas, muito embora haja vida dentro das casas. Outra curiosidade é a inexistência de marquises na Espanha: se você quiser se abrigar da chuva, não vai dar. Aliás, também na Itália, onde morei alguns anos, eu também não havia visto marquises por lá. Por que será?
Já no caminho entre Espinosa del Camino e Villafranca Montes de Oca, o sol desapareceu novamente encoberto por grossas nuvens, mas pelo menos parecia que não iria chover mais.
Subitamente tive minha atenção despertada por um objeto caído no chão logo à minha frente. Era um par de óculos de sol. Algum peregrino deve tê-lo deixado cair na operação de retirar sua capa de chuva como eu, pensei.
Ao chegar a Villafranca Montes de Oca, entrei no bar “El Pájaro” onde havia vários peregrinos tomando café. Peguei os óculos e comecei a indagar se alguém ali era seu dono. Em um certo momento, resolvi levantar o objeto e perguntar de uma só vez a todos que estavam nas mesas. Ninguém se manifestou positivamente. Os peregrinos são pessoas honestas, pensei enquanto guardava os óculos na bolsinha da minha mochila.
Retomei então a caminhada. Eu já havia percorrido 12 km até ali e teria que andar outros 12 até San Juan de Ortega. Depois de uma grande subida, fui direcionado pelas setas amarelas a uma trilha bem paralela à “Carretera N-120”, num sobe e desce que mais parecia uma montanha-russa.
Chegando em “La Pedraja”, município de Burgos, avistei ao longe algo que me pareceu ser um monumento qualquer: deve ser em homenagem aos peregrinos, pensei. Mas à medida que me aproximava dele ia sentindo um desconforto por dentro, um incômodo, algo realmente difícil de explicar. Senti vontade de evitar o lugar, mas não havia como.
Lá chegando, descobri ser um marco de pedra assinalando o local exato onde 135 pessoas foram fuziladas e enterradas ali por ordem do Generalíssimo Franco, simplesmente porque não compactuavam com suas ideias ditatoriais. Havia um quê de injustiça, covardia, desespero e angústia permeando o ar, tornando-o difícil de ser respirado. A atmosfera era pesada e carregada de fluidos extremamente negativos. A morte ainda parecia estar por ali bem presente, espreitando silenciosamente à espera de uma nova oportunidade.
Em minha mente ainda podia ouvir os tiros dos carrascos e os gritos daqueles pobres inocentes. Os espíritos de muitos deles ainda estavam certamente naquele lugar, talvez ainda sem conseguir entender direito o que lhes havia acontecido. Presos a um momento cruel no tempo e no espaço, aguardavam por paz e liberdade. Apressei-me em sair dali, pois o lugar me incomodava terrivelmente. Podia sentir minhas forças sendo drenadas e um grande desânimo tomando conta de mim. Fui ficando sufocado por um nó na garganta e com vontade de chorar.
Finalmente deixei o local para trás e alguns quilômetros depois, encontrei uma larga estrada de barro cortando um bosque. Ali, num passado distante, vários peregrinos foram pilhados e mortos quando se dirigiam a Santiago de Compostela. Eram tomados de assalto por bandoleiros dispostos a roubar-lhes o pouco que carregavam. Uma das alternativas encontrada foi alargar esse trecho do Caminho para evitar a surpresa das emboscadas. Assim permanece até hoje.
Subitamente me dei conta de que a palavra “emboscada” significa literalmente “sofrer ataque no bosque” que normalmente era o lugar preferido pelos facínoras que podiam esconder-se atrás das árvores e dissimular-se entre a vegetação à espera de suas vítimas. As coisas não mudaram muito: hoje ainda sofremos emboscadas, mas nos caminhos asfaltados das grandes cidades.
Com esses pensamentos povoando minha mente, cheguei finalmente ao meu destino. O sol já havia voltado a brilhar e os pássaros retomaram seus cantos numa louca algazarra com alegres e vigorosos trinados. San Juan de Ortega, um pequeno povoado com apenas 23 habitantes se revelava diante dos meus olhos e me dava as boas-vindas.

 
XIX - De San Juan de Ortega a Villafria de Burgos
 
San Juan de Ortega é um lugar perdido em meio ao nada, mas nem por isso desprovido de importância histórica. Ali se encontram o Monastério de San Juan de Ortega, a linda Igreja de San Nicolás de Bari, em estilo românico, e um albergue paroquial com 68 leitos.
No dia exato do equinócio da primavera, um único raio de sol passa por uma abertura específica na parede da igreja atingindo em cheio a figura da Virgem Maria esculpida sobre seu capitel principal. Isso ocorre apenas uma vez por ano e atrai espectadores de todas as partes. A fumaça do incenso faz com que esse acontecimento seja ainda mais espetacular, pois o raio de sol invade a igreja como uma lança, transformando-se em uma linha perfeita como a de um “laser”, atingindo em cheio o ventre da Virgem.
Enquanto todas as demais figuras esculpidas na igreja olham para o Anjo da Anunciação, a Virgem Santa é a única a olhar diretamente para a abertura por onde entra o raio. Para tornar o acontecimento ainda mais notável e emblemático, isso tudo se dá exatamente a 9 meses do dia do nascimento de Jesus, deixando clara a ideia da concepção.
Isso tudo me foi explicado e mostrado espontaneamente pelo pároco local que veio receber-me quando entrei na igreja. Curiosamente constatei que nenhum outro peregrino ali se encontrava. Fiquei conversando ainda um bom tempo com ele e não vi ninguém chegar. Como é possível que alguém possa deixar de lado tanta história? Além do mais, a própria igreja é de uma beleza ímpar e nada cobra aos seus visitantes.
Notei que quando saí o número de peregrinos tinha aumentado consideravelmente do lado de fora. Quase não havia mais lugares nos bancos existentes na frente da igreja e do albergue. Acabei encontrando muita gente que tinha conhecido pelo Caminho. Isso é perfeitamente normal – esses encontros casuais se sucedem e ocorrem ciclicamente. As pessoas vêm e vão em nossas jornadas sem qualquer conotação específica. Eu pessoalmente preferia a solidão das caminhadas para obter uma maior condição de reflexão daquilo que estava vivendo. Em raríssimas ocasiões tive alguém caminhando comigo e quando isto ocorria era por pouco tempo.
Em San Juan de Ortega você não tem para onde ir. Ou fica naquele pequeno núcleo na frente dos prédios que compõem o Monastério ou segue adiante. Depois de ter conversado com amigos feitos no Caminho e ter tomado algumas cervejas com eles, chegou finalmente a hora do jantar. Havia uma lista de espera, pois o refeitório não conseguia abrigar 68 pessoas de uma só vez.  
Vi um casal sendo chamado. Eu estava convicto que havia dado meu nome antes dele e fiquei preocupado de não ter ouvido a convocação.
Levantei-me e fui indagar pessoalmente ao administrador se não estaria havendo algum engano, explicando que vira o casal dar o nome depois de mim. Fui recebido com extrema grosseria pelo responsável que com o dedo em riste me disse que sabia trabalhar e que não fazia besteiras. Fiquei visivelmente constrangido com o acontecido e disse ao nervoso senhor que por favor não gritasse comigo, pois isso era algo que não tolerava de ninguém, mesmo não estando em meu país.
Em seguida meu nome foi chamado e fui conduzido pelo mesmo autor da grosseria a uma mesa retangular com vários lugares vagos. Ele colocou-me exatamente em frente a um casal que conversava em inglês. Cumprimentei-os e me apresentei formalmente.
Perguntei também em inglês de onde eles eram e a moça me disse: sou Isabella, brasileira e venho do Rio de Janeiro. Sorri e já falando em português disse-lhe que eu também era brasileiro e vinha igualmente do Rio de Janeiro. Expliquei que havia combinado através de endereço e-mail obtido na lista de peregrinos da AACS, dividir um táxi de Pamplona a Saint-Jean-Pied-de-Port com alguém com o seu mesmo nome, o que acabou não ocorrendo.
Para minha surpresa ela falou: “pois foi comigo mesmo – eu me enganei na data que chegaria a Pamplona e por isto nós não nos encontramos”. A vida é realmente cheia de surpresas. Logo em seguida fui dormir.
Acordei sobressaltado às 2 horas da manhã e fiquei rolando na cama. Aquele episódio e a indelicadeza do administrador não me saiam da cabeça. Vou embora daqui, decidi. Levantei-me com todo o cuidado do mundo para não acordar ninguém mexendo o menos que podia na minha mochila. Mas havia um problema: os benditos sacos plásticos. Por mais que a gente queira, é quase impossível que eles não façam algum ruído, ainda mais no silêncio da madrugada.
Assim que estava de pé, já pronto para sair, recebi um tremendo soco na cabeça seguido de uma frase em alemão que não consegui decifrar. Era uma senhora de uns 80 anos que dormia na parte de cima do beliche onde eu estava e que certamente fora despertada involuntariamente por mim.
Fiquei atônito com aquilo, pois por mais que eu estivesse errado não era o caso de ter levado um sopapo daqueles no meio da noite. Decididamente San Juan de Ortega não estava indo muito com a minha cara, pensei.
Avaliei a situação e fiquei olhando aquela senhora sentada na cama e que me encarava fixamente. Minha única reação foi dar um passo para trás, estender o braço e a mão em sua direção e bater meus tênis dizendo: “HEIL HITLER!!”. Abri a velha e pesada porta de madeira do albergue temendo encontrar o tal espanhol da véspera. Fechei-a delicadamente e pus-me em marcha em direção a Burgos, 28 km à frente.
Era uma madrugada sem lua e sem estrelas e estava difícil ver as setas que indicavam o Caminho. Peguei a engenhosa lanterna, daquelas de colocar na cabeça que havia ganhado do meu amigo Andrea em Estella, e fui em frente. Cheguei a uma bifurcação onde não havia nenhuma indicação de qual seria o caminho a seguir.
Instintivamente peguei o da direita e continuei andando. Uma hora depois cheguei a Agés, um povoado de 60 habitantes. Tinha acabado de encher meu cantil numa linda e antiga fonte, quando passando na frente de um pequeno albergue vi uma mulher parada em pé. Só me faltava essa, pensei: uma assombração para completar os últimos acontecimentos.
Na realidade a pessoa estava bem viva. Viu minha bandeirinha do Brasil espetada na mochila e disse: “Olá. Você é brasileiro? Está indo para Burgos? Posso ir contigo?”.Era Fernanda, uma alagoana que fazia o Caminho pela segunda vez. Claro que sim, respondi-lhe.
Contou-me que havia perdido o sono sem um motivo aparente e que não conseguiria esperar o dia amanhecer. Disse-lhe de minhas desventuras no albergue com o administrador e com a senhora alemã. Rimos muito a respeito.
O dia já começava a raiar quando passamos por Atapuerca e iniciamos a dura subida ao Alto da Matagrande, com muitas pedras soltas espalhadas pela trilha. Detive-me por um momento a tirar algumas fotos do sol que nascia magnificamente e Fernanda distanciou-se bastante de mim na íngreme subida.
De repente, ela escorregou numas pedras lá em cima e, girando-se, começou a descer perdendo nitidamente o controle de seus passos. Vinha em velocidade. Não deu outra: acabou aterrissando violentamente de barriga num mergulho tipo “peixinho” feito pelos jogadores de vôlei quando ganham um campeonato. Coitada....
Apressei-me em socorrê-la e a confortá-la.
“Eu caí”, ela disse (como se fosse possível eu não ter percebido).
Fiquei ali fazendo-lhe companhia até que começaram a chegar outros peregrinos, dentre os quais algumas conhecidas dela.
- Vá em frente Sergio, disse-me. Não te prendas. Estou bem e, se necessário, minhas amigas me ajudarão.
Meio chateado com aquele episódio continuei a caminhar, passando por Villalval, Cardeñuela Riopico e Orbaneja Riopico. Subitamente percebi que não conseguiria cumprir todo o percurso até Burgos. Sentia-me aborrecido, fraco e desanimado. As experiências da véspera, incluindo a da fossa comum onde foram enterradas as pessoas fuziladas pelo Regime Franquista, tinham sido demais para mim.
Ao entrar em Villafria de Burgos resolvi dar-me um presente: hospedei-me num Hostal bem na entrada da cidade, com um quarto só meu, com um banheiro só meu, com minha própria televisão, WI-FI, etc. Eu merecia!!!!!! Tomei um banho quente, deitei-me e adormeci profundamente.

 
XX - De Villafria de Burgos a Hornillos Del Camino
 
Acordei bem disposto após ter dormido por mais de 12 horas seguidas. Olhei pela janela do meu quarto e vi que um lindo dia estava me aguardando. Imediatamente me dei conta de que estava em Burgos, ou melhor, em Villafria de Burgos, uma de suas portas de entrada. Fundada no ano de 884 D.C., Burgos é sem dúvida a maior cidade do Caminho, com uma área de 108 km2 e 180.000 habitantes. De grande pujança econômica e cultural, foi em muito ajudada pelo próprio Caminho de Santiago que a atravessa por completo. Para conhecê-la melhor, seriam necessários vários dias, mas não se deve perder a oportunidade de visitar pelo menos sua belíssima Catedral.
Seu interior abriga obras sacras dos mais famosos artistas, escultores e arquitetos espanhóis, inclusive o túmulo de El Cid e de sua mulher, Doña Jimena. Para conhecê-la adequadamente apenas uma vez não é suficiente, tendo em vista a quantidade de detalhes e informações disponíveis ao visitante.
Fiquei boquiaberto diante de tanta beleza!!! Antes de visitá-la, hospedei-me no Albergue Municipal Casa Del Cubo que fica a poucos passos dali.
O nível de qualidade desse Albergue que pertence à Prefeitura de Burgos, com amplos espaços limpos e bem divididos em todos os seus andares servidos por modernos elevadores com painéis eletrônicos e forrados com lâminas de aço inoxidável, realmente impressiona.
Os banheiros, com muitas pias e amplos espelhos, são de primeira qualidade e o número de duchas quentes é adequado ao seu tamanho. Os serviços disponíveis aos peregrinos, tais como bicicletário, máquinas de autoatendimento, lavadoras e secadoras de roupa, cozinha e acesso à Internet também são muito bons. Tudo isto, pasmem, por somente cinco euros (já dormi em albergues bem simples ao lado de cemitérios pelo mesmo preço).
Após ter visitado a linda Catedral de Burgos, fui conhecer a cidade, ou melhor, parte dela. É um lugar onde certamente retornarei, pensei enquanto caminhava por suas lindas ruas disparando incessantemente o botão da minha câmera fotográfica - clic., clic., clic., clic., clic. Não dava pra parar!! A bateria acabou, mas eu sou um sujeito prevenido – tinha outras na minha bolsa previamente carregadas. Fiz a troca e continuei – clic., clic., clic. Era compulsivo!!! Só no interior da Catedral de Burgos devo ter feito umas 300 fotos, por baixo.
No final da tarde, já cansado, resolvi tomar uma garrafa de vinho para depois jantar e dormir. Encontrei no restaurante “Las Espuelas del Cid” o local ideal para isso. Enquanto bebia, ia colocando em dia minha correspondência utilizando meu “tablet” e aproveitando a rede WI-FI do estabelecimento.
Encontrei um e-mail de Thaís, uma das três irmãs baianas, dizendo-me que ela e Sarah tinham desistido de fazer o Caminho porque estavam muito cansadas. Respondi em tom de brincadeira que deveriam encontrar alguém disposto a levá-las até Santiago de Compostela deitadas em redes. Acho que não gostaram da piada porque nunca mais me escreveram (risos). Jamais voltaria a vê-las.
Ao reentrar no albergue, fui violentamente sacudido por um pensamento: onde está meu cajado??? Eu sabia que havia entrado em Burgos com ele, mas não conseguia lembrar-me onde o tinha deixado. Eu o havia realmente perdido, talvez encostado a uma parede no momento de tirar uma foto, vai saber.....
Saí desesperado refazendo meus próprios passos naquela cidade, mas sem sucesso. Nada do meu cajado. Procurei o administrador do albergue e perguntei-lhe se alguém por acaso teria feito ali a entrega de algum.
Venha comigo, disse levando-me até uma sala onde havia um cesto com dezenas deles. Nenhum era o meu. Notando minha consternação o homem disse para escolher qualquer um, pois alguns estavam ali há anos e ninguém os reclamara.
Meu cajado era de alumínio e do tipo telescópico, tendo sido um presente do meu filho assim como minha mochila, mas naquele momento encantei-me com um de madeira envernizada onde se lia: “Roncestiago – Zariquiegui – Navarra”. Ele passaria a guiar meus passos e me forneceria apoio nas subidas e descidas que ainda viriam pela frente. E não eram poucas.
Saí de Burgos logo cedinho em direção a Hornillos Del Camino, minha próxima meta a 20 km dali. Depois de 8 km de caminhada, parei em Tardajos para tomar café e prosseguir então para Rabé de las Calzadas, onde pretendia fazer uma parada intermediária para uma cerveja – senão não dá!!!!
Ao sair do restaurante, não consegui avistar nenhuma seta amarela indicando a direção para Santiago. De repente, vi um peregrino bem mais à frente e resolvi segui-lo. Eu sempre fazia isso e nunca falhara, mas dessa vez algo não estava funcionando adequadamente. Eu já não via uma seta amarela há muito tempo e isto não era normal.
Resolvi apressar o passo e alcançar o peregrino a quem seguia. O cara ia num ritmo muito forte e estava difícil emparelhar com ele.
Resolvi gritar: Hey you!!!!! Ele parou no acostamento da estrada e ficou me olhando por um instante, mas virou-se e continuou andando. Hey you!!! Wait a minute!!!!!!!!!!! Gritei com toda a força dos meus pulmões ao mesmo tempo em que levantava meu cajado. Qualquer que fosse a sua nacionalidade, com certeza entenderia o que eu estava querendo. Alcancei-o finalmente e perguntei para onde estava indo. Era Charles, um canadense barbudo, muito claro e um pouco baixo. Tinha um chapéu todo amassado na cabeça.
- Para Rabé de las Calzadas, respondeu-me.
Eu também, disse-lhe, mas acho que nós estamos indo na direção errada. Minhas suspeitas se confirmaram quando reparei que vários veículos quando passavam por nós, piscavam desesperadamente seus faróis e tocavam incessantemente as buzinas fazendo sinais incompreensíveis com as mãos para alertar-nos.
Tínhamos realmente nos perdido. Estávamos em Las Quintanillas e a cerca de 5 km fora do curso. Uma simpática senhora percebendo nosso problema veio até nós e explicou-nos o que já sabíamos. Agradecemos e voltamo-nos para a direção oposta com a intenção de recuperar o tempo perdido.
- Esperem aí, eu vou levá-los de volta!!!!
Fiquei muito agradecido e disse que não seria necessário, mas ela insistiu - isso acontece com frequência, falou – o entroncamento em Tardajos não é bem sinalizado.
Já no carro, notei que ela não estava indo para o tal entroncamento, mas para outra direção. Questionei-a e ela me respondeu que já nos deixaria em Hornillos Del Camino, pois havíamos perdido muito tempo e certamente encontraríamos o albergue lotado quando lá chegássemos. Senti um quê de gratidão por ela estar se preocupando conosco, mas ao mesmo tempo não me agradava a ideia de “trapacear”, pois estaria percorrendo uns 10 km de carro ao invés de caminhar. Eu queria fazer todo o Caminho pé ante pé, passo a passo.
Ela percebendo meu semblante disse: “não te preocupes com isto – Santiago há de perdoar, pois vocês ainda têm os créditos do trecho que fizeram por engano e de outros que ainda errarão”, disse rindo.Achei que havia certa lógica em suas palavras e comecei a rir também. Charles não havia compreendido absolutamente nada do que estávamos falando e então lhe expliquei. Ele achou a ideia mais do que válida e com o polegar para cima também concordou.
Chegamos finalmente a Hornillos Del Camino. Coloquei minha mochila na fila que já se havia formado em frente ao albergue. Carmela estava certa. Não pude fazer outra coisa a não ser convidá-la para um café no bar em frente. Ela aceitou, mas não ficou por muito tempo dizendo que tinha coisas a resolver em Las Quintanillas. Ainda existe muita gente boa neste mundo, fiquei pensando enquanto seu carro sumia atrás de uma espessa nuvem de poeira ao longe, numa das muitas curvas do Caminho. Tudo que eu precisava agora era de um banho quente para depois jantar e dormir, pois Castrojeriz, 21 km à frente, me esperava no dia seguinte.

 
XXI - De Hornillos del Camino a Frómista
 
A noite havia sido muito fria em Hornillos Del Camino, um simples, mas simpático povoado. Ali vivem apenas 50 pessoas. O Albergue Municipal, de propriedade da prefeitura local, tem 32 vagas e fica bem em frente à bela igreja de San Román que aproveitei para visitar.
Ao acordar, corri até o cemitério localizado atrás dela para recolher minha roupa que havia lavado na véspera e posto para secar no próprio campo santo. Por precaução, eu havia colocado uma pedra em cima de cada peça para evitar que o vento as carregasse. A roupa estava enrijecida como madeira por causa do forte frio da madrugada, mas tudo ainda estava do mesmo jeito como eu deixara. Onde eu poderia encontrar um lugar mais inusitado para secar minha roupa? O Caminho de Santiago é realmente fantástico e a todo momento nos permite vivenciar coisas como esta.
Tomei café no restaurante bem em frente ao albergue e comecei minha caminhada em direção a Castrojeriz pensando no que acontecera na véspera. Por pura preguiça, eu havia seguido um peregrino julgando que este estava na direção certa, mas não estava. Quantas vezes na vida desviamos o foco de nossos objetivos simplesmente porque seguimos exemplos que nos parecem acertados? Na prática, aquele meu erro não teve maiores consequências, mas há lugares neste planeta onde um simples e involuntário desvio de rota ou um GPS mal programado, pode trazer-nos sérios problemas.
O dia estava muito frio, mas o céu totalmente limpo ou “despejado” como dizem os espanhóis. Enchi meu cantil até à boca, pois começaria a entrar na região das "mesetas espanholas" – grandes extensões de terra onde caminhamos ao lado de plantações de grãos, como o trigo e o milho, por quilômetros a fio, sem encontrar um único bar ou povoado.
Passei por San Bol, outra localidade perdida em meio ao nada. Continuei caminhando e após percorrer mais 12 quilômetros, parei em Hontanas para descansar e tomar uma cerveja. De volta ao Caminho andei por outros sete quilômetros e me detive a apreciar as ruínas do Convento de San Antón que outrora fora um hospital para peregrinos, particularmente para aqueles acometidos de lepra.
Mais 2 km à frente, depois de passar por lindos campos floridos, cheguei finalmente a Castrojeriz, um povoado com menos de 900 habitantes e ponto final da minha caminhada do dia.
Sua principal atração são as ruínas do Castelo de Castrojeriz, que teve grande importância durante a Idade Média.
Conta-se que em 1359, ali teria sido assassinada, a mando de seu sobrinho Pedro I, a Rainha Leonor de Castilla, filha do Rei Fernando IV de Castilla e esposa do Rei Alfonso IV de Aragón. Coisa dos nobres da época.....
Hospedei-me no Albergue Ultréia que é particular, isto é, não pertence ao município. Ali conheci o proprietário, Sr. José, bastante cordial e atencioso. Uma ótima pessoa.
Saí para a minha rotina, ou seja, conhecer a cidade, tomar uma cerveja e depois voltar ao albergue para jantar e dormir.
Após o jantar, que consumi no próprio albergue, José fez uma interessante apresentação a todos os peregrinos da “Prensa de Lagar”, uma engenhoca usada no passado para prensar as uvas na fabricação do vinho.
Ele pediu a colaboração voluntária de duas pessoas para manuseá-la, enquanto explicava em detalhes sua utilização. Essa prensa fica no próprio refeitório e sua longa e pesada trave passa literalmente por sobre a mesa onde são servidas as refeições. Para ser sincero, fiquei meio apreensivo, pois aquela trave de madeira parecia pesar quase uma tonelada.
No dia seguinte tomei meu café no próprio albergue e ganhei de José uma toalha vermelha com várias figuras iconográficas do Caminho. Ele disse que era um presente pessoal para mim.
Tomei o caminho em direção a Frómista, meu próximo destino dali a 23 km. Pouco tempo depois de deixar Castrojeriz e após atravessar a ponte sobre o rio Odrilla, encontrei uma colossal subida que conduzia ao Alto de Mostelares, ou Teso de Mostelares. Teria que caminhar mais de um quilômetro para elevar-me 200 metros em relação à altitude de Castrojeriz, através de uma pista de terra. Isso tudo numa inclinação de 12%. Era muita coisa!!
Logo no início da subida vê-se à margem do caminho, uma lápide indicando que alguém não conseguira vencer esse desafio. Belo incentivo, pensei.
Para piorar, o sol se fez presente revelando todo o seu esplendor. Comecei a suar aos borbotões. Fui subindo devagarzinho em zigue-zague, fazendo paradas estratégicas aqui e ali. Peguei meu cantil, bebi como um camelo e despejei o restante da água sobre minha cabeça. Não era fácil, mas eu tinha que continuar.
Olhei para baixo com o objetivo de verificar o que já havia conseguido vencer e assim ganhar um fôlego extra de ânimo. Vi vários peregrinos sentados sobre suas mochilas e tomando coragem para prosseguir.
Finalmente cheguei, mas extenuado!!! A vista lá de cima é maravilhosa. Do alto de seus 910 metros, o Teso de Mostelares permite que se tenha uma visão espetacular, até o horizonte, de campos cultivados e floridos, povoados diversos, de algumas montanhas e até de rodovias.
Após um bom descanso preparei-me para a descida que também não é muito fácil. Agora eu teria que vencer uma pirambeira de 350 metros a uma inclinação de 18%. É como se alguém te empurrasse permanentemente ladeira abaixo e, por consequência, você acaba forçando os músculos das costas e das panturrilhas nesse processo de “frenagem”. É mais ou menos quando engrenamos uma “segunda” no nosso carro numa descida.
Finalmente vencido esse trecho, vi que existia uma nova lápide também à beira do caminho como que dizendo: “este peregrino conseguiu chegar até aqui, mas não foi adiante”.
Prossegui atravessando a “Meseta Castellana” passando por Itero Del Castillo e após cruzar a ponte sobre o rio Pisuerga, entrei na Província de Palência para encontrar logo à frente a cidade de Itero de La Veja onde tomei com sofreguidão, dois enormes canecões de cerveja espanhola. Eu precisava muito daquilo!!
Já refeito, voltei a caminhar e a encontrar mais "mesetas" onde grandes máquinas realizavam as colheitas da época, notadamente a do trigo.
O caminho era de terra batida e tínhamos que conviver com os carros dos agricultores passando para lá e para cá.
Eles são muito respeitosos com os peregrinos, pois diminuem imediatamente a velocidade de seus veículos quando passam por nós para não levantar muita poeira, mas não ajuda muito.
Esse trecho é tão desgastante que a todo instante encontramos placas pelo caminho incentivando os caminhantes: “Ânimo peregrino” – é o que mais se lê.
Após passar por Boadilla Del Camino, comecei a caminhar ao lado do magnífico “Canal de Castilla”, uma importante obra de engenharia hidráulica realizada em meados do século XVIII para facilitar principalmente o transporte do trigo colhido na região para os portos do norte da Espanha, a partir de onde era realizada a sua distribuição e exportação. Com o advento das ferrovias ele ficou obsoleto, mas ainda é de suma importância para a irrigação das áreas férteis da região. Já extenuado e ávido por um banho, avistei finalmente a cidade de Frómista, encerrando assim mais um capítulo dessa minha fabulosa aventura em terras espanholas.
Lavei minha roupa, estendi no varal e fui conhecer a cidade o que não foi muito difícil, pois ela tem apenas 800 habitantes. Foi mais uma pérola descoberta em meio àquelas que ainda encontraria ao longo desse magnífico Caminho de Santiago de Compostela.
 
 
 
XXII - De Frómista a Calzadilla de la Cueza
 
Acordei tarde no Albergue Municipal de Frómista. Olhei em volta e vi que somente eu ainda estava no dormitório. Como uma mola, dei um pulo da cama e fui direto pra cozinha, pois pagara na véspera pelo café e não queria perdê-lo. Não adiantou – sobre a mesa havia apenas migalhas de pão, manteigueiras e copos de iogurte vazios – nada mais. Bela maneira de se começar o dia, pensei.
Meus olhos começaram a fazer uma completa varredura em busca de alguma coisa que me pudesse forrar o estômago. De repente, meu olhar se deteve numa caixinha de madeira que se encontrava sobre a pia: estava quase cheia de lindos e suculentos morangos.
Antes que pudesse ter outra experiência como aquela que vivi em Los Arcos, onde a administradora do albergue me repreendeu por ter bebido o restinho de um refrigerante que estava já aberto e esquecido sobre a pia, resolvi procurar por alguém e obter permissão para comê-los. Gato escaldado tem medo de água fria...
Parecia incrível, mas o albergue estava completamente vazio. Como era possível? O computador estava ligado na recepção, as luzes acesas nos banhos e nos corredores, mas não havia absolutamente ninguém ali.
Resolvi então "atacar" a caixa de morangos. Comi um, dois, três e quando vi já tinha acabado com todo o seu conteúdo. Subitamente, como que vindo do nada, entrou na cozinha a administradora do albergue.
Senti-me como uma criança surpreendida pela mãe fazendo algo errado. Expliquei-lhe a situação e ela disse o que eu já sabia: aquilo que se deixa sobre a pia pode ser consumido normalmente por qualquer pessoa. Esta é a regra adotada para se evitar o desperdício. O peregrino que não quer algum alimento pode deixá-lo ali para ser utilizado por outro irmão ou irmã de caminhada. Certamente ela não conhecia a administradora do albergue de Los Arcos, pensei.
Comecei a caminhar com disposição, passando por Población de Campos, Revenga de Campos, Villarmentero de Campos e Villalcázar de Sirga. Eu havia me transformado numa máquina de andar. Como esse trecho é plano e todo feito margeando-se a “Carretera P-980”, eu conseguia fazer quase 5 km por hora, o que é uma ótima marca.
Havia ninhos de cegonhas por toda parte – em cima dos postes, sobre os campanários das igrejas, nos cantos dos telhados das casas, etc. Ninguém as incomodava!!!! Era uma beleza ver quando pousavam para alimentar seus filhotes. A algazarra nos ninhos era total. Peguei minha câmera e comecei a gravar.
Após 19 km de caminhada, cruzei a estrada e entrei finalmente em Carrión de los Condes, outra pedra preciosa do Caminho com cerca de 2.000 habitantes. Já hospedado no Albergue Paroquial de Santa Maria, saí para conhecer a cidade.
Percebi que havia muito movimento na frente de uma igreja e fui até lá para verificar: era um casamento e a noiva estava chegando. Não perdi a oportunidade e como se fosse alguém já conhecido de todos, passei a tirar fotos daquele evento, inclusive da noiva. Logo após jantei e voltei para o albergue.
Após uma noite bem dormida iniciei minha caminhada sem ter decidido ainda por nenhum destino específico. Tinha que encarar a "meseta", sem água e sem bares – apenas uma grande vastidão com imensas áreas de plantio e muita poeira seca pelo caminho, que com o vento entrava pelos olhos, boca e nariz. Eu não sabia até onde iria a minha resistência.
Depois de ter caminhado por 16 quilômetros sem encontrar nada, absolutamente nada, a não ser os campos de trigo, alguns já completamente colhidos, meus olhos saltaram das órbitas: vi ao longe emergindo da terra, como um oásis no deserto, a pequenina Calzadilla de La Cueza, não mais que um povoado de 50 habitantes. Parecia deserta......
Como num filme de faroeste, algumas plantas mortas e ressequidas vinham rolando em minha direção empurradas pelo forte vento.
Eu já havia terminado com toda a água do meu cantil. Minha saliva estava grossa e quando engolia em seco podia sentir nitidamente a poeira me arranhando a garganta. Meu pé esquerdo, que me incomodara um pouco na véspera, agora parecia estar mais inchado que o direito e começava a latejar dentro do tênis.
Era demais para mim!!! Vou parar aqui mesmo e está resolvido!!
Entrei decididamente no Albergue Municipal daquele lugarejo esquecido no tempo. Fiquei sentado na recepção por alguns minutos e não vi uma só alma. Comecei a dizer: “hello, hello” e ninguém aparecia.  Levantei-me e resolvi explorar o prédio.
Não havia ninguém ali.  Já desiludido, vi uma sineta sobre o balcão logo na entrada e comecei a bater sobre ela, vigorosa e repetidamente – din, din, din, din, din!!!!!!!! Não adiantou nada. Eu estava realmente sozinho e perdido naquele lugarejo que mais parecia uma cidade fantasma.
Resolvi largar minha mochila sobre o banco na recepção e saí em busca de alguma alma viva. Encontrei um outro albergue ali próximo que me pareceu também estar completamente vazio. Será que os habitantes daqui foram levados por alguma nave de outro planeta? Rindo desse meu pensamento, fui entrando pelo corredor e fiquei surpreso ao ver uma piscina lá nos fundos. Tirei minha câmera do bolso e comecei a fazer umas fotos. Não dava para acreditar - uma piscina aqui? Como é possível? Uma piscina num lugar desses em meio ao nada e com um clima tão frio?
Estava absorto em meus pensamentos quando ouvi alguém dizendo: “Buenos dias señor – Quieres algo?”
Girei-me e verifiquei tratar-se de um homem de estatura mediana. Tinha aproximadamente uns 40 anos e decididamente não aparentava ser espanhol, pois sua pele era bem mais escura que a dos habitantes daquele país.
Falei que estava pretendendo ficar no albergue municipal, mas não havia encontrado ninguém por lá. Ele sorriu e tranquilizou-me: “isso é normal por aqui – o responsável vai voltar logo, é só esperar”. Senti algo familiar nele, pois falava perfeitamente o espanhol, mas com um sotaque que não me era estranho.
Apresentei-me dizendo que era brasileiro e perguntei-lhe de onde era – Sou brasileiro da Bahia de São Salvador, disse ao mesmo tempo em que escancarou um grande sorriso formado por um milhão e meio de dentes alvos e perfeitos.
- E o que fazes aqui, perguntei.
– Trabalho neste albergue há quase 10 anos, respondeu.
Seu nome, ou melhor, apelido, era Nenê. Uma figuraça!! Nos abraçamos demoradamente. Eu não entendia o que um soteropolitano estava fazendo naquele fim de mundo. Brinquei com ele dizendo – mas rapaz, vocês não gostam de trabalhar lá na Bahia e vêm pra cá dar duro na Espanha? Ele riu muito e disse: pois é, são coisas da vida. Continuávamos conversando quando de repente Nenê chamou um rapaz que passava naquele exato momento pela rua e me disse: “esse é o administrador do albergue municipal. Pode ir com ele, pois está indo pra lá”.
Já de banho tomado, barba feita e roupa limpa, fui ao que me parecia ser o único bar ali existente, onde fiquei por horas tomando minhas canecas de cerveja e comendo "jamón" enquanto pensava na magia de tudo aquilo que estava vivenciando. Onde neste mundo podemos encontrar algo similar? Tudo parece já tão explorado e previsível. Seria o Caminho de Santiago uma das últimas aventuras do homem sobre a face da Terra? A sensação de liberdade que experimentamos caminhando por quilômetros a fio cruzando e descobrindo repetidamente diferentes e inusitados rincões é algo indescritível. A cada dia eu colhia inesperadamente uma nova joia por onde passava. Elas estavam sendo cuidadosamente guardadas nos porões da minha mente, nos quartos escuros e secretos da minha alma, onde nenhum ladrão jamais poderia roubá-las.
Voltei ao albergue caminhando por ruas estreitas e desertas sob um céu coalhado de estrelas lançadas ao espaço pela mão do criador. Eu estava feliz. Adormeci profundamente e em paz....


 
XXIII - De Calzadilla de la Cueza a León
 
Acordei alegre em Calzadilla de La Cueza, mas meu pé esquerdo estava inchado e latejando. Eu sabia o que era, pois já havia passado por isso antes. Tinha simplesmente que diminuir meu consumo de cerveja e principalmente o de vinho. Somente consegui calçar o tênis retirando-lhe completamente o cadarço. Tomei café no bar onde estivera na véspera e comecei a andar.
O Caminho de Santiago está situado exatamente sob a Via Láctea. Dizem que aqui os problemas físicos costumam ser curados mais rapidamente por causa dessa interação cósmica. Eu teria que comprovar obrigatoriamente essa teoria, pois deveria caminhar 22 km até Sahagún, meu próximo destino. Pelo menos eu passaria a encontrar mais cidades pela frente e a intervalos menores. Já era um alento.
Assim sendo, atravessei Ledigos, Terradillos de los Templarios, Moratinos, San Nicolás Del Real Camino e finalmente ao passar pela ponte sobre o rio Valderaduey, encontrei o “Centro Geográfico Del Camino”, um monumento situado em frente à Ermita da “Virgen Del Puente”. Eu havia chegado à metade exata do Caminho de Santiago em terras espanholas após ter percorrido 411 quilômetros em 20 dias, a uma média de 21 km/dia.
Dali onde me encontrava podia ver a linda Sahagún logo adiante despontando sobre uma colina como que me convidando a conhecer sua história e seus enigmas.
Entrei nessa bela e peculiar cidade de 2.700 habitantes atravessando uma ponte férrea no exato momento em que um moderníssimo trem passava velozmente como uma flecha por baixo de mim. Tive então nesse momento uma boa oportunidade de verificar o magnífico contraste entre o novo e o antigo. A visão daquele eficaz meio de transporte zunindo ao lado de construções centenárias foi simplesmente espetacular.
Hospedei-me no excelente Albergue Municipal de Cluny, de propriedade do “Ayuntamiento”, ou seja, da prefeitura local. Trata-se de uma antiga igreja de estilo “mudéjar” (fusão dos estilos românico, gótico e renascentista com elementos construtivos e decorativos da arte islâmica) e que fora reformada para acomodar até 64 peregrinos.
Após registrar-me fui conhecer a cidade, mas sem abusar da cerveja ou do vinho por causa do meu pé inchado. Entrei numa mercearia onde fiz algumas pequenas compras e ali conheci o proprietário, Sr. Elias, com quem fiquei batendo papo sobre as peculiaridades da cidade. Indicou-me onde era a barbearia, pois eu precisava urgentemente cortar meus cabelos.
Na barbearia, fiz amizade com o Sr. Lorenzo a quem prometi sorrindo voltar àquela cidade para que ele fizesse novamente seu serviço, pois eu havia gostado muito. O velho barbeiro me informou que os trechos seguintes que passariam por El Burgo Ranero e Mansilla de las Mulas, antes de León, não estavam muito bons tendo em vista as últimas chuvas ocorridas naquela região. Além do mais esse seria um percurso monótono, pois haviam construído um caminho reto, com bancos de cimento dispostos a intervalos regulares e árvores plantadas da mesma forma, formando um monótono corredor até sumir no horizonte.
Dormi pensando nisso tudo e quando acordei já tinha tomado minha decisão: “vou pegar um trem pra León”. Eu não estava ali para participar de nenhuma maratona ou concurso de resistência. Não fazia nenhum sentido ter que sacrificar-me à toa, pois meu pé poderia piorar. Além disso, tinha ficado impressionado com aquele lindo trem e queria viajar nele.
Saí cedinho e comecei a percorrer a cidade em busca da estação ferroviária, porque eu não havia me planejado para isso na véspera. Já cansado de andar, fiz sinal para um automóvel que passava e expliquei meu problema ao seu condutor. O motorista, um senhor com aproximadamente a minha idade, vendo que eu não conseguia entender direito a localização da estação, falou: “entre aqui que eu te levo até lá”.
Fiquei surpreso ao descobrir que ela ficava quase ao lado do albergue onde estava. Eu tinha começado a procurar exatamente na direção oposta. Era a velha e infalível “Lei de Murphy”, pensei sorrindo. Agradeci a gentileza e dei-lhe de presente uma bandeirinha do Brasil (eu tinha várias na mochila).
- Será para o meu neto que gosta do futebol brasileiro, sorriu o gentil senhor.
Na estação ferroviária de Sahagún, descobri que estava para chegar uma composição para León em 20 minutos. Comprei imediatamente o bilhete, mas não quis ficar na sala de espera. Queria ver aquele moderníssimo trem chegando.
Não demorou muito e lá vinha ele, no horário exato. Nem um minuto a mais ou a menos. Já no trem, sentei-me ao lado de um janelão envidraçado, à direita, de onde podia descortinar toda a paisagem composta pelo verde infinito das plantações. Ocasionalmente podia ver um ou outro peregrino caminhando ao longe. Eu ficaria devendo cerca de 60 km não percorridos a Santiago que pagaria numa próxima vez, pois minha intenção era voltar ao Caminho o mais brevemente possível.
Assim cheguei à moderna León, a segunda maior cidade do Caminho com seus 127.000 habitantes – um importante centro industrial, financeiro e cultural da província homônima da qual é capital.

 
XXIV - De León a Astorga
 
E ali estava eu em León caminhando entre seus cidadãos como se fosse um deles. Aquilo me dava uma indisfarçável alegria. Por algum motivo eu gostava de me sentir assim: um estranho no ninho, mas incógnito e a milhares de quilômetros de casa. Tinha acabado de me hospedar numa residência universitária chamada Miguel de Unamuno que me foi recomendada pelo Setor de Informações Turísticas local. Comecei a explorar vagarosamente a cidade, pois meu pé ainda me incomodava.
Precisava obter alguns euros para minhas despesas diárias e observei que as pessoas estavam fazendo seus saques em caixas automáticos externos, sob os olhares de todos. Esses caixas ficavam embutidos nas paredes dos prédios e era praticamente impossível alguém não ser visto tirando dinheiro, ali bem no meio da rua.
Quanto mais andava mais ficava admirado com aquela linda cidade, ordeira, pacífica e moderna. León obviamente também tem sua parte histórica, ou “casco antiguo”. Apressei-me em visitar sua catedral que rivaliza com aquela de Burgos. Fiquei fascinado, muito embora achasse que a de Burgos é mais imponente e de maior importância histórica, fato este que não é admitido pelos leoneses sob nenhuma hipótese. A Casa de los Botines de Antonio Gaudí construída no século XIX também vale a visita.
Em León talvez exista a maior concentração de bares por metro quadrado de toda a Espanha. Quando anoitece a cidade vira um verdadeiro formigueiro de pessoas bebendo, até mesmo em pé do lado de fora dos bares, colocando suas taças, copos e pratinhos de “tapas” ou “pinchos” sobre barris estrategicamente dispostos, aguardando por uma vaga dentro do estabelecimento.
Esse aglomerado de bares é conhecido internacionalmente como “Barrio Húmedo” ou Bairro Úmido. Tirem vocês mesmos suas próprias conclusões do porquê desse nome. E eu sem poder beber nada. Caramba, que azar!!!
No final do dia voltei para a Residência Universitária e dividi um quarto com três italianos em dois beliches. Lá pela meia-noite fui despertado por um alegre grupo de jovens estudantes, moças e rapazes visivelmente “borrachos”. Acho que tinham acabado de chegar do Bairro Úmido. Abri a porta do quarto e passei um sermão neles, dizendo que ali havia pessoas que precisavam dormir e acordar cedo no dia seguinte. Todos se compuseram e seguiram calados para suas respectivas acomodações.
Resolvi ficar mais um dia em León, tanto para conhecer melhor a cidade quanto para dar um descanso melhor ao meu pé. Reclamei com a direção da Residência Universitária sobre o acontecimento da noite anterior. Eles me recomendaram um quarto individual com banheiro (suíte) localizado numa área mais “calma”. Obviamente custava bem mais, porém aceitei sem reclamar.
Acordei no dia seguinte disposto a caminhar, mas estava chovendo muito e a temperatura tinha caído para 2 graus centígrados. Tomei meu café e aceitei o desafio.
Fui caminhando em direção a Villadangos Del Páramo, onde pretendia ficar. Teria que andar 22 km até lá. Passei por Trobajo Del Camino, La Virgen Del Camino, Valverde de La Virgen, San Miguel Del Camino e após cruzar um polígono industrial, extensa área deserta com indústrias e muitos armazéns de estocagem de produtos.
Ali avistei o albergue de destino num entroncamento da estrada N-120, com 54 acomodações. Saí para jantar ali próximo e a temperatura começou a cair vertiginosamente. Ainda bem que tinha parado de chover.
Para dormir, a administradora do albergue distribuiu aquecedores elétricos pelos cômodos. Seria realmente difícil passar aquela madrugada ali sem eles.
No dia seguinte acordei bem cedinho e comecei a caminhar em jejum. Tomaria café mais adiante, pois todo o comércio local estava fechado.
Olhei para o termômetro digital externo que estava logo na saída da cidade e mal acreditei: este marcava 0,5 grau (meio grau centígrado).
Minha pele já estava ficando queimada pelo frio, pois eu caminhava sempre de bermudas e não usava luvas ou gorro. Eu tinha que chegar a Astorga, situada a 28 quilômetros dali. Era muito chão!!!
Após passar por San Martín Del Camino, parei em Hospital de Órbigo, uma importante cidade do percurso com pouco mais de 1.000 habitantes onde tomei meu café. Sua magnífica ponte romana sobre o rio Órbigo, conhecida como “Puente Del Passo Honroso”, além de histórica é indiscutivelmente a maior e mais conservada do Caminho.
Continuei minha marcha passando por Villares de Órbigo, Santibáñez de Valdeiglesias e pouco antes de San Justo de La Vega, aos pés do “Cruceiro Toribio”, encontrei uma emblemática figura do Caminho: chama-se José Aleluya. Por algumas moedas ele toca violão pra você e te deseja boa sorte até Santiago.
Ele cantou para mim uma canção em ritmo flamenco: “mi amigo Sergio, ha venido desde Brasil, ya va a llegar, a Santiago”. Depois disso, fazia seu violão rodopiar no ar e continuava:
“mi amigo Sergio, ha venido desde Brasil, ya va a llegar, a Santiago”.
Perguntou se eu tinha alguma moeda brasileira para a sua coleção. Dei-lhe todas as que estavam na minha bolsa e “de quebra”, algumas notas novinhas de 2 reais. Ele ficou eufórico.
Cheguei finalmente ao meu destino. Exausto, após quase 30 quilômetros de caminhada, hospedei-me no Albergue Municipal “Siervas de María” de propriedade dos “Amigos del Camino de Santiago de Astorga”, muito bem transado e com todo o necessário para o peregrino. Preço: 5 euros. Não dá pra acreditar (risos).
Astorga é outra linda cidade do Caminho e também repleta de história. Tudo nela se refere à palavra MARAGATO. Por exemplo, “cocido maragato de Astorga – Lo mejor de España”. Bar Maragato; Panadería Maragata; Chocolate Maragato, etc., etc., etc.
Acabei descobrindo a origem do nome: Maragato vem de Maragateria que é uma comarca espanhola situada na Província de León na Comunidade Autônoma de Castilla e León. Sua capital é exatamente Astorga. Muitos habitantes dessa comarca, os “MARAGATOS”, emigraram no passado para o região sul do Brasil, notadamente para o Rio Grande do Sul e também para a Argentina. Maragatos foi também o nome dado aos sulistas que iniciaram a Revolução Federalista no Rio Grande do Sul em 1893 contra os Ximangos que então detinham o poder. Os Maragatos eram assim chamados pejorativamente pelos Ximangos como referência aos descendentes de um povo que tinha vindo de fora para meter o nariz onde não havia sido chamado. Fiquei pensando como é que um povo sai da sua terra para influenciar o destino de outras nações tão distantes. Isso já havia acontecido com Giuseppe Garibaldi que veio de mais longe ainda e fez história em nosso país, coincidentemente no Sul, junto com a catarinense Anita Garibaldi.
Há muita coisa bonita para se ver em Astorga, mas é um verdadeiro pecado mortal não conhecer pelo menos sua magnífica catedral cuja construção iniciou-se em 1471. O Palácio Episcopal, que se assemelha a um castelo de contos, abrigando em seu interior o “Museu de los Caminhos” também deve ser igualmente visitado. Seu idealizador foi Antonio Gaudí, o mestre espanhol da arquitetura. Ele, sempre ele..........
Quanto ao “Cocido Maragato”, sinceramente o nosso é mais farto e completo. Uma curiosidade desse prato servido em Astorga, é que primeiro devemos comer o cozido para somente depois tomar a sopa feita com o caldo que sobrou dos legumes e das carnes durante o seu preparo.
Depois de conhecer a cidade e jantar, fui para o albergue dormir. No dia seguinte tinha que caminhar mais 20 km até Rabanal Del Camino. O pé já estava praticamente curado, talvez com uma “mãozinha” dos bons fluidos emanados da Via Láctea sob a qual se situa todo o Caminho de Santiago.

 
 
XXV - De Astorga a Ponferrada
 
Saí de Astorga bem cedo. Havia o prenúncio de um lindo dia de sol, mas o frio era terrível àquela hora da manhã. Calculei algo em torno de 1 grau centígrado.
Deixei a cidade atravessando sua muralha romana do século I e me detive na ermida conhecida como “Ecce Homo” poucos antes de cruzar a antiga ponte igualmente romana, sobre o riacho ou Arroyo de La Vega. Essa ermida, ou pequena igreja, nos faz lembrar o episódio em que Jesus Cristo foi trazido à presença de Poncio Pilatos pelo Conselho de Líderes Judeus, ou “Sinédrio”, quando então teria sido dito: “ECCE HOMO”, ou “EIS O HOMEM” em latim.
Parei ali e pedi pelos meus. Resolvi fazer também uma prece em intenção de todos os injustiçados do planeta, que não são poucos. Jesus talvez tenha sido o maior deles.
Astorga é a última cidade do Caminho com aquelas características que nos fazem imediatamente saber que estamos na Espanha, tais como as construções em amarelo escuro, marrom claro e cor de tijolo. A partir dessa cidade porém, você perderá totalmente essas referências e entrará em um cenário completamente diferente daquele a que estava acostumado. Casas com paredes de pedras reforçadas por toras de madeira começarão a compor o cenário. Outras em alvenaria, mas pintadas de branco e com janelas como aquelas a que estamos familiarizados, também substituirão as construções espanholas mais tradicionais.
Passei pela pequenina Murias de Rechivaldo. Ela ainda dormia. Mais à frente me detive em Santa Catalina de Somoza, não mais que um povoado de 50 habitantes. Enquanto tomava ali meu café, fiquei contemplando o famoso Monte Teleno de 2188 metros completamente nevado. Por isso fazia tanto frio. Os romanos o consideravam sagrado, mantendo a tradição do povo que ali vivia, mas adotando o nome de divindades já conhecidas na antiga Roma como seus novos guardiões e protetores.
Cerca de 5 km à frente está outro vilarejo que mais lembra uma cidade do antigo faroeste americano: El Ganso - com suas construções em pedra e apenas 35 habitantes. É um primor de lugar. Não resisti e acabei entrando num simpático bar de nome Cowboy (nada mais sugestivo e acertado) para tomar meu canecão de cerveja do qual já estava sentindo falta.
Sempre subindo cheguei finalmente a Rabanal Del Camino, outro lugarejo de apenas 60 habitantes. Dirigi-me ao Albergue "Nuestra Señora Del Pilar" bastante cansado pela subida e por ter caminhado 20 quilômetros até ali. Para minha total surpresa, fui informado de que não havia mais lugares disponíveis.
- Mas como? Não é possível!!!! Tenho certeza de que fui um dos primeiros peregrinos a sair de Astorga, disse.
- É que todos os leitos já foram reservados por telefone, respondeu-me a administradora.
Manifestei prontamente minha indignação e inconformismo. Como era possível num lugar esquecido no tempo, que mal figurava nos mapas, em meio ao nada, um albergue aceitar reservas por telefone? Não estávamos em Madri ou em Nova York. Achei aquilo um absurdo e uma injustiça, pois eu tinha acordado cedo e agora teria que ver outros peregrinos chegando tarde e passando a minha frente.
Meu inconformismo de nada adiantou, pois o albergue era particular e tinha suas próprias regras. Tive que aguardar pacientemente a abertura do Albergue Municipal de Rabanal del Camino, logo ao lado. Lá pelas tantas chegou o administrador com as chaves e fui o primeiro a ser atendido. Escolhi minha cama e apressei-me em tomar uma ducha quente, mas reparei que o banheiro dos homens ainda estava com a porta trancada. Não pensei muito e como era o único ali, fui diretamente para o das mulheres. Ouvi um barulho de gente chegando e comecei a cantar debaixo do chuveiro em voz alta para que soubessem que eu estava ali. Quando saí, vi duas senhoras sentadas em seus respectivos beliches me olhando de cara amarrada.
Desculpei-me dizendo que o espaço destinado aos homens estava fechado e que não me havia restado alternativa. As duas deram um sorrisinho amarelo e foram também tomar seus respectivos banhos, enquanto eu saia para dar uma volta no lugarejo, jantar e depois voltar para dormir.
Na manhã seguinte retomei minha marcha. Queria chegar cedo a Molinaseca, 25 quilômetros à frente. Aquele também seria um dia muito importante, pois eu passaria por Foncebadón, um povoado amaldiçoado por um cigano que foi espancado e queimado vivo na fogueira por seus moradores, simplesmente porque ousara pedir abrigo ali por uma noite durante a sua caminhada. Em sua agonia e em meio às chamas, o cigano vociferou com os olhos carregados de ódio: “Esta vila morrerá aos poucos. Aqui nenhuma mulher dará mais à luz. As que já estiverem grávidas abortarão. O demônio estará sempre ao vosso lado, atento e presente, incorporado em cães ferozes e selvagens”.
Fato é que a outrora próspera Foncebadón entrou em declínio após esse episódio. Realmente a maldição do pobre cigano se confirmou. Não houve mais qualquer nascimento no lugar e as mulheres já grávidas abortaram espontaneamente. À noite ninguém tinha coragem de sair de suas casas, pois dois enormes cães negros patrulhavam suas vielas. Os peregrinos passaram a evitá-la. Até hoje alguns deles preferem desviar pela estrada quase deserta que circunda o vilarejo do que passar ao lado de suas casas em ruínas, onde o telhado de algumas delas encosta literalmente no chão.
O dia também seria especial porque eu passaria pela famosa Cruz de Ferro, o ponto emblemático mais alto do Caminho com seus 1504 metros logo depois de Foncebadón, onde os peregrinos há séculos atiram pedras em sua base fazendo antes um pedido. Esse pequeno monte onde se encontra hoje a cruz, era outrora chamado de “Monte de Mercúrio”, sendo utilizado pelos romanos para marcar a divisão entre as províncias de El Bierzo e da Maragateria. Era muita emoção para um só dia!! Resolvi passar logo por Foncebadón enquanto alguns peregrinos receosos tomavam o desvio para a estrada, evitando-a. Imagine se eu iria perder uma oportunidade dessas.
Por via das dúvidas, segurei fortemente meu cajado da Navarra que tem um bico pontiagudo de ferro. Se o capeta em forma de cachorro viesse me atacar ele iria levar uma boa bordoada.
O lugar é realmente lúgubre e decadente – melhor dizendo, fantasmagórico. Em meio às ruínas ainda sobrevivem alguns poucos bares e albergues. Tomei café em um deles e prossegui meu caminho. Nenhum cachorro se atreveu a enfrentar a fúria do meu fiel cajado.
 
Eu estava com as mãos cortadas pelo frio. A esquerda eu ainda conseguia enfiar no bolso do meu casaco, mas a direita não tinha jeito, pois precisava que segurar o cajado com ela. Que bom se eu tivesse ao menos uma luva para essa mão, pensei.
Sei que ninguém vai acreditar, mas assim que deixei Foncebadón vi algo bem no meio da trilha: era uma luva marrom de lã e exatamente para a mão direita. Não pude deixar de sentir uma forte emoção nesse momento. Coincidência ou não, este fato me impactou fortemente, fazendo-me ficar com os olhos úmidos. Agradeci pelo ocorrido sem saber exatamente a quem. Até hoje tenho essa luva em meu escritório, com lugar de destaque entre outros objetos que trouxe do Caminho.
Logo em seguida avistei a mística Cruz de Ferro, onde fiz minhas preces e depositei minhas pedrinhas colhidas pouco antes no caminho. Onde estaria aquela da jovem holandesa que encontrara dias atrás a caminho de Navarrete? Teria ela realmente colocado ali a sua pedra?
Continuei andando e depois de ter passado por Manjarín, um lugar despovoado onde existe apenas um refúgio místico para peregrinos, cheguei ao cume do “Collado de las Antenas”, uma destacada elevação com 1515 metros. A partir dali comecei uma frenética descida, passando por El Acebo e Riego de Ambrós até chegar finalmente a Molinaseca, uma linda e simpática cidadezinha de 800 habitantes onde entrei após cruzar uma antiga ponte romana ali existente sobre o rio Meruelo.
Para minha surpresa, embora tivesse saído cedo de Rabanal del Camino, não havia mais vagas disponíveis. Não tardei em descobrir que ali também aceitavam reservas por telefone, feitas normalmente por peregrinos europeus e americanos. Em alguns anos se as coisas continuarem assim vai ter gente fazendo reservas e chegando nos albergues trazidas por helicópteros, pensei comigo mesmo.
Eu já havia caminhado 25 quilômetros, mas tive que buscar refúgio em Ponferrada, 8 km adiante. A vida de peregrino é dura, mas ninguém havia me convidado. Eu estava ali porque queria, portanto não havia o que reclamar. Assim pensando cheguei a Ponferrada, alquebrado e extenuado, mas com a sensação do dever cumprido. Tinha vencido mais uma etapa.
 
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 Nota: Os capítulos XXVI ao XXXII encontram-se no livro Uma Aventura no Caminho de Santiago III
 
 
Sergio Righy
Enviado por Sergio Righy em 29/09/2017
Reeditado em 20/11/2017
Código do texto: T6128266
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