I - O início
 
Eu não sabia o que fazer naquela altura da vida. Já estava aposentado há alguns anos. Havia lido e relido os livros que queria. Costumava tomar minhas taças de vinho olhando o mar. Gostava quando uma tempestade se anunciava. Ficava admirando os relâmpagos e vendo o vento envergando os galhos das árvores, levantando a poeira das ruas - ao menos era algo diferente. Às vezes acordava de madrugada e ficava olhando para o teto. Andava mesmo meio deprimido. Tanto esforço para chegar até aqui e parecia que eu havia caído numa armadilha do destino.
Subitamente, uma ideia explodiu em minha cabeça: caramba Sergio. Vá fazer o Caminho de Santiago. Não é o que você sempre quis quando ainda trabalhava? Por que não agora? Você está aposentado - não ganhas muito, tá certo, mas pra isso dá!!
Meio trôpego, após ter degustado uma inteira garrafa de vinho e com o sangue revigorado em minhas veias, caminhei até o escritório e liguei o computador. Vamos, coragem! Você consegue!!
Minha pulsação era tão forte e intensa, que podia senti-la batendo vigorosamente em minha fronte, ecoando em meus tímpanos, reverberando em todo o meu corpo.
Minha respiração era ofegante e precisei me acalmar para poder ir em frente. Eu estava prestes a dar um grande passo.
Apertei as teclas certas e pronto: lá estava a minha passagem aérea subindo lentamente como que cuspida pela impressora. Não tinha mais volta. "Alea Jacta Est".
No dia seguinte, já não tão seguro e sem o auxílio do vinho que faz tudo ficar mais aprazível e realizável, tentei abortar o processo. Imaginei que tinha feito uma grande besteira apenas por impulso - e pior, sem qualquer planejamento.

Não deu - a burocracia e as ameaças de penalização por parte das empresas aéreas em caso de cancelamento eram desencorajadoras. Resolvi encarar. Afinal, sou um homem ou um rato? - Acho que um rato, concluí. Como eu iria me virar? Não sabia quase nada do Caminho. Mais tarde descobriria que aí é que estava toda a magia.

Aos poucos fui lendo a respeito e gostando do desafio. Eu havia dado início a uma reação em cadeia, a um moto-contínuo, a um sortilégio do qual não conseguiria mais escapar, como uma folha presa a um redemoinho que caminha inexoravelmente para o fundo do rio da aventura.
E tal qual um Louva Deus que tem a cabeça devorada pela fêmea no ato da procriação, eu já não me importava com mais nada. Só com o prazer que aquilo estava me proporcionando.


 
II - De Pamplona a Saint-Jean-Pied-de-Port
 
Encontrei na AACS - Associação dos Amigos do Caminho de Santiago - do Rio de Janeiro, através da minha hoje amiga Inês Serpa, o auxílio emergencial e o encorajamento necessários para ir em frente.
De repente lá estava eu em Madri e algumas horas depois em Pamplona, completamente inebriado pela Espanha que eu já conhecia. Mas agora era diferente: eu era um peregrino.
Em Pamplona, aquela cidade onde as pessoas correm dos touros nas ruas, encontrei dois brasileiros de Santa Catarina que passariam a fazer parte da minha vida: Paulo "Dom Quixote" e sua esposa Marta.
Fomos juntos no único ônibus que saía à tarde de Pamplona para Saint-Jean-Pied-de-Port, na França, onde no dia seguinte iniciaríamos nossa aventura: caminhar quase 900 km até Santiago de Compostela pelas entranhas da Espanha.
Jantamos e jogamos muita conversa dentro, animados pelo vinho num pequeno, mas aconchegante restaurante local.

 
III - De Saint-Jean-Pied-de-Port a Roncesvalles
 
De repente despertei com alguém acendendo as luzes do dormitório e nos dizendo em francês que tínhamos hora pra sair dali.
Um turbilhão de lembranças atravessou minha mente. Onde estava eu? Por que aquela mulher estava falando o idioma dos gauleses e dos francos? Subitamente me dei conta de onde estava: em Saint-Jean-Pied-de-Port, na França, nos Pirineus Atlânticos e a milhares de quilômetros de casa. Lembrei-me também de que havia caído do meu beliche de madrugada, estatelando-me ao solo ruidosamente e acordando todos os demais peregrinos. Ouvi ofensas em vários idiomas e certamente minha pobre mãezinha foi maldosamente adjetivada em várias línguas. Na ocasião fui acudido por Marta e Dom Quixote que, incrédulos e preocupados, queriam saber o que havia ocorrido e como eu estava.
Refeito do susto, memória em dia e café consumido, lá fomos os três iniciar nossa jornada de 830 km. Tínhamos que cruzar toda a Espanha, de leste para oeste. Santiago, o apóstolo, nos aguardava em sua grandiosa Catedral.
Começamos a caminhar juntos, mas a cada minuto percebia estar retardando involuntariamente meus amigos brasileiros, distanciando-me deles a cada foto que fazia (fiz mais de 5.000 delas ao longo do Caminho).
Paulo era alto, parecia um galgo, sem um grama de gordura sequer. Sua mochila parecia mais leve que a de Marta, que era mais baixa que ele, mas caminhava com a mesma destreza e determinação.
Vi-os desaparecer na bruma que encobria os Pirineus naquela manhã gelada de primavera europeia. Não houve qualquer despedida formal.
Já sozinho no caminho conhecido como o de "Napoleão" e aproveitando que Paulo e Marta haviam sumido por completo, como que tragados pelo nevoeiro que agora tomava conta de tudo, comecei a colocar em ordem meus pensamentos enquanto a subida ia ficando cada vez mais pronunciada exigindo muito de mim fisicamente.
Por que eu estava ali? Por quê?
Por que eu havia deixado a linda vista que tenho do mar no Rio, a companhia da minha dedicada e valente esposa, o carinho dos meus netos e do meu filho, por uma caminhada estafante, por um vento gélido que me cortava a pele e retardava meus passos, pela incerteza da chegada? Por quê?
Talvez porque estivesse à beira de completar sete décadas de existência e, percebendo que o ser humano não vai muito além disso, quisesse viver algo mais intenso enquanto tinha condições físicas e mentais para tentar.
Após passar pelo Alberque Orisson, onde parei rapidamente para um descanso, além de aproveitar para completar meu cantil com a gélida e pura água que descia das montanhas, continuei minha caminhada subindo, subindo, sempre subindo.
Comecei a encontrar neve pelo caminho. O medo de escorregar na fina camada de gelo que ia se formando sobre a trilha era grande. Um escorregão, um deslize, uma perna quebrada e pronto: adeus Caminho.
As curvas se sucediam uma após a outra. Depois de uma nova avistava uma seguinte, mais alta ainda, como que a desafiar-me: vem, vem Sergio - alcança-me se puderes. Na verdade os Pirineus Atlânticos estavam me testando.
Havia algumas cruzes e lápides à beira do caminho. Eram de peregrinos que não tinham conseguido completar suas jornadas. Elas continham, além do nome, a data do desenlace do desafortunado e uma citação religiosa qualquer, quase sempre associada a Santiago de Compostela. Onde estaria a lápide de Pirene, a amante favorita de Hércules que, segundo a mitologia grega, havia sido sepultada por ele em algum lugar por ali depois que este, ferido de amor e tristeza pela sua morte, teria empurrado toda a Península Ibérica sobre o restante do Continente Europeu, criando com o colossal impacto as montanhas que hoje conhecemos como Pirineus? Foi com este pensamento que atingi já no lado espanhol o ponto mais alto dessa primeira etapa e iniciei, com os tênis complemente enlameados, a descida para Roncesvalles.
Após poucos quilômetros de descida e alguns escorregões sem maiores consequências, avistei sentada à beira do caminho recostada a uma árvore, uma jovem muito clara, que a julgar pelo modo como me olhava parecia estar em dificuldades.
E eu estava certo...
Aproximei-me dela e perguntei se necessitava de ajuda. Recebi um "yes" como resposta. Quis saber o que havia ocorrido e ela apontou para seu pé direito dizendo que havia escorregado e torcido o mesmo.
Seu nome era Frida. Uma jovem alemã, meio corpulenta, que resolvera fazer o Caminho inicialmente até Burgos, para voltar no ano seguinte e completá-lo. Ajudei-a a se levantar e iniciamos juntos a descida para Roncesvalles onde àquela altura todos os peregrinos já deveriam ter chegado e certamente estariam batendo papo, trocando informações sobre a etapa seguinte.
Roncesvalles, em basco: Orreaga, é uma cidadezinha da Comunidade Autônoma da Navarra com 15,28 km² de área e somente 34 habitantes.
Situa-se à margem do rio Urrobi a uma altitude de cerca de 900 metros nos Pireneus a 4 km em linha reta da fronteira com a França. Nosso destino era o Albergue para Peregrinos da Colegiata de Santa Maria de Orreaga, na realidade um antigo monastério adaptado para receber os peregrinos que partem de Saint-Jean na França ou que preferem começar o Caminho dali mesmo.
Cada passo para Frida vinha acompanhado de um lamento. A dor realmente devia incomodá-la muito. Tudo o que podia fazer era encorajá-la a prosseguir e deixar que ela se apoiasse em mim segurando meu braço. Enquanto descíamos a escorregadia trilha em meio ao bosque, começou a cair uma daquelas chuvas não muito fortes, mas que incomodam a gente. Isso tornava ainda mais difícil nossa caminhada, aumentando nosso risco de quedas.
Já próximos a Roncesvalles comecei a imaginar onde teria ocorrido naquele bosque a famosa batalha em que poucos bascos atacaram e mataram mais de 10.000 soldados do exército de retaguarda de Carlos Magno, por este ter mandado incendiar, em sua retirada para a França, a cidade de Pamplona por onde passou, para que esta não servisse de fortaleza aos mouros que vinham logo atrás.
Foi uma carnificina terrível onde além dos soldados acabou igualmente perdendo a vida o sobrinho de Carlos Magno, Rolan, que comandava esse destacamento.
Dizem que a terra tingiu-se de sangue. A montanha de cadáveres era tão grande que todos foram enterrados em uma sepultura coletiva, pois seria impossível fazê-lo de outra forma.
A noite já se aproximava quando eu e Frida avistamos o Seminário. Fomos os últimos a chegar ali. Olhei meu relógio e percebi, meio incrédulo, que havia feito cerca de 26 km em 12 horas desde Saint-Jean. Uma média portanto de pouco mais de 2 km por hora (horrível, pois a média desejável situa-se entre 3,5 a 5 km por hora).
Assim que fomos avistados pelos voluntários da Colegiata, estes vieram correndo em nossa direção, apressando-se em aliviar-nos de nossas mochilas (coisa que comumente não ocorre). Certamente perceberam de longe que tínhamos tido dificuldades na travessia desse trecho. Frida foi carregada por dois jovens até o albergue do Seminário.
Exausto como Hércules após ter cumprido as 12 tarefas que lhe foram impostas pelo Oráculo por ter assassinado sua mulher e filhos por influência de Hera, a vingativa mulher de Zeus, tomei uma ducha quente, quase fumegante, mas que exigia que eu apertasse a cada 10 segundos o botão do registro para que a água não cessasse (coisa dos econômicos e precavidos europeus).

 
IV - De Roncesvalles a Zubiri
 
Após ter jantado magnificamente e saboreado o bom vinho da casa servido a todos os peregrinos, fui dormir ainda pensando na difícil jornada há pouco vencida e na que estaria por vir.
Não dormi bem - estava muito excitado. Fiquei acordado ouvindo o forte aguaceiro que caia lá fora, acompanhado do rugir de longos e furiosos trovões. Estariam eles censurando minha solitária aventura?
Além de tudo, como nos albergues para peregrinos quase sempre existe uma boa concentração de pessoas dormindo em um mesmo ambiente, geralmente grandes salões com vários beliches, é inevitável que em algum momento da noite se inicie de forma involuntária e sem maestro, um magnífico concerto sinfônico de roncos e flatulências em várias tonalidades, compassos e andamentos, como que a lembrar-nos de nossa fisiológica condição humana.
Acordei cedo em terras espanholas pela primeira vez no Caminho. Meu novo destino seria Zubiri a cerca de 22 km dali.
Tomei café no bar anexo ao restaurante, enchi meu cantil, coloquei minha mochila nas costas e fui à luta. Estava muito frio, mas pelo menos a chuva havia cessado.
Logo ao sair do bar, deparei-me com a emblemática placa situada às margens da estrada e no início da trilha onde de lia: "Santiago de Compostela a 790 km". Era muito chão....
Imediatamente após Roncesvalles, vem uma linda cidadezinha, na realidade uma vila cujo nome é Burguete (Auritz, em basco). Parece surgida de um conto de fadas. As casas têm suas portas e janelas praticamente encostadas na estrada, pois a calçada é bastante estreita, o que contribui para aumentar sua singularidade. A igreja de San Nicolás de Bari, de origem medieval ali situada, é uma joia de rara beleza. Em tempos idos, em frente a ela foram queimados vários "brujos" e "brujas" por ordem da Santa Inquisição Espanhola, cujo maior expoente foi sem dúvida alguma, Tomás de Torquemada, o grande inquisidor e também confessor da Rainha Isabel, a Católica.
Burguete tornou-se conhecida não só por sua singular beleza, mas também pelo fato de ter hospedado por diversas vezes o famoso escritor Ernest Hemingway, que ali possuía uma espécie de retiro onde encontrava a serenidade necessária para escrever. Existe ali em um hotel um piano em cuja tampa está a sua assinatura.
Hemingway era uma pessoa excêntrica e de personalidade muito forte. Teve várias paixões ao longo da vida. Amava as mulheres e a Espanha, especialmente a cidade de Pamplona onde vivia. Ativista político ferrenho, deixou para a posteridade várias obras literárias magníficas como Adeus às Armas, Por quem os Sinos Dobram e O Velho e o Mar. Sua mente já conturbada estava sempre em ebulição. Assim como seu pai, acabou suicidando-se com um tiro na cabeça.
Fiquei pensando na minha caminhada e na minha solidão. Assim como o personagem de Hemingway em O Velho e o Mar, eu também estava travando minha batalha particular, só que contra algo que não sabia exatamente o que era. O Velho do romance de Hemingway queria trazer seu peixe a qualquer custo. E eu, queria exatamente o quê?
Ele tinha confiança inabalável em si mesmo. E eu teria em mim? Conseguiria chegar ao meu destino e voltar com algum aprendizado sobre a finalidade da vida e a validade da fé?
Com esses pensamentos latejando em minha mente continuei caminhando a passos largos e decididos, de tal sorte que acabei perdendo a orientação das setas amarelas que nos indicam o caminho a seguir. Havia já passado algum tempo sem que eu conseguisse avistar uma única delas. Resolvi entrar numa lojinha de comestíveis que acabara de levantar as portas e ali indaguei por que não estava mais encontrando as setas indicando o Caminho.
O homem que parecia ser o proprietário fitou-me demoradamente e disse: você deveria ter entrado entre dois prédios lá atrás e cruzado uma pequena ponte sobre um riacho ali existente.
Depois era só seguir a trilha que passa ao lado dos campos e das fazendas. As setas indicando a súbita mudança no percurso, estão pintadas sobre o asfalto da estrada. Nem todos conseguem vê-las, concluiu. É melhor você continuar em frente agora, pois em alguns quilômetros encontrará novamente a trilha, desta vez bem sinalizada.
Agradeci e meio aborrecido com o fato continuei caminhando. Quantas vezes na vida perdemos ótimas oportunidades e momentos felizes por não estarmos suficientemente atentos aos sinais que ela nos envia?
Subitamente, como que por magia, comecei a ouvir um cântico ao longe. Eram muitas vozes num coral invisível que cessavam repentinamente para darem início a algo parecido com uma ladainha. Após a primeira curva logo à frente, descobri tratar-se de uma grande procissão. Fiquei estupefato com aquilo tudo e postei-me à beira da estrada para observar sua passagem.
Eu havia perdido um cenário bucólico, florido e verdejante por não ter visto as setas indicando a mudança do caminho quilômetros atrás, mas em compensação havia ganhado algo em troca.
Frequentemente na vida nos lamentamos por alguma coisa que não fizemos e também por oportunidades que não soubemos aproveitar adequadamente.
Mas a vida não é uma equação matemática. A frustração de agora, pode se converter em alegria mais à frente e vice-versa. Eu mesmo acabara de constatar isso na prática.
Após ter encontrado mais adiante o entroncamento que me devolvia ao Caminho, passei a enveredar por lindas e floridas pradarias, margeando de vez em quando algum rio, mas sempre ouvindo o canto de pássaros que eu não conhecia. Apenas conseguia identificar um deles: o do malvado e esperto cuco que coloca seus ovos no ninho de outras aves para que essas os choquem por ele. O pior é que as mães, enganadas, não percebem o ardil e passam também a alimentar os filhotes do cuco como se fossem seus. Para completar a maldade, os bebês invasores crescem primeiro e acabam atirando os legítimos herdeiros de sua madrasta para fora do ninho, matando-os. O cuco não é um sujeito legal. Cá entre nós: bem que podiam ter escolhido outro pássaro pra colocar nos famosos relógios de parede.
Percebi que estava chegando a Zubiri porque acabara de encontrar uma descida muito pronunciada, parecendo o leito seco de um rio e cheia de pedras soltas. Seriam alguns poucos quilômetros, mas que exigiriam toda a minha atenção. Muitos peregrinos já haviam rolado e se ferido seriamente nesse trecho. Por vezes na vida também encontramos pedras em nosso caminho, algumas intransponíveis.
Ernest Hemingway participou de duas guerras mundiais e sobreviveu a dois acidentes de avião. Eu realmente não conseguia entender como ele acabou por tirar a própria vida - só ele sabe o porquê. Os porões da alma e os labirintos da mente são impenetráveis, portanto não cabe a mim julgá-lo.
Absorto em meus pensamentos, já esgotado e com fome após 22 km de caminhada, avistei à frente a Ponte da Raiva sobre o rio Arga, exatamente na entrada de Zubiri, dando-me a certeza que eu havia vencido mais uma etapa das muitas que ainda viriam ao longo deste maravilhoso Caminho de Santiago de Compostela.
 
 
 V - Entrando em Zubiri
 
Assim que entrei em Zubiri começaram meus problemas. Eu fazia o Caminho pausadamente, às vezes abraçando uma árvore ou a coluna secular de uma igreja. Gostava de fotografar de todos os ângulos do Caminho as belíssimas paisagens que se sucediam quase que indefinidamente. Por isso era frequentemente o último a chegar ao final de cada etapa. Eu tinha ido ali para aproveitar todos os momentos e enriquecer minha bagagem cultural. Tinha o tempo necessário para desfrutar do Caminho e era isso o que iria fazer.
Mas tudo tem um preço. O albergue municipal de Zubiri já estava lotado quando cheguei, assim como os hotéis. Apesar de todo o cansaço, pensei em caminhar mais 7 km até Larrasoaña, o próximo ponto alternativo.
De repente vi do outro lado da rua duas moças que me acenavam alvoroçadas. Eram Sarah e Thaís, duas baianas que eu havia conhecido no restaurante em Roncesvalles, pois o "cura" do albergue nos havia encaminhado à mesma mesa para o jantar.
Disseram-me não haver mais hospedagem disponível em Zubiri, mas que elas tinham encontrado um quarto com quatro camas numa casa particular e se eu não queria vir junto e compartilhar.
Elas tinham uma outra irmã que morava na Espanha e que já havia arranjado tudo pelo celular, a quem então me apresentaram naquele momento.
Chamava-se Neise. Ela era mais velha que as outras duas e ao contrário destas, de muito poucas palavras.
Não demorou em deixar as coisas claras dizendo pras irmãs na minha frente: olhem aqui - vocês convidaram esse cara apenas porque o viram em Roncesvalles uma única vez? Assumam as consequências do que estão fazendo e não venham reclamar comigo depois.
Não pude deixar de rir diante de tanta espontaneidade e franqueza. Neise parecia haver incorporado o velho modo de ser europeu. Morei na Itália por dois anos seguidos (Pisa) e já estava acostumado. Os europeus não douram palavras, mas em contrapartida são muito leais e amigos de verdade.
Falei que não queria incomodar e que seguiria adiante. Sarah e Thais se opuseram imediatamente: oxente Sergio, imagina. Nada disso. Você vem com a gente sim.
Mas ainda não jantei, retruquei.
Vai lá que a gente te espera. O cara da casa só vai chegar aqui em meia hora.
Jantei rapidamente no restaurante logo em frente, mas não pude tomar o meu vinho pacientemente como gosto de fazer. Entretanto, as circunstâncias assim o exigiam. Fazer o quê?
O dono da casa chegou em 15 minutos e quando saí do restaurante notei que Neise estava passando uma esculhambação nas irmãs por estarem todos ali me aguardando com as respectivas mochilas já no porta-malas do carro. Pensei em mandar tudo às favas e prosseguir para Larrasoaña, ou até mesmo a passar a noite no meu saco de dormir em algum canto por ali sob uma marquise, mas por outro lado não poderia desdenhar da bondade de Sarah e Thaís. Além disso, na Espanha não há marquises.
Neise foi na frente com o espanhol e eu atrás imprensado entre as duas irmãs.
Já na casa, deixei que elas utilizassem o confortável banheiro da suíte em que estávamos e somente depois tomei meu banho escaldante, mergulhando imediatamente em seguida sob as grossas cobertas.
O problema é que sofro ciclicamente de pesadelos, chegando a gritar de madrugada em algumas ocasiões. Minha mulher já se acostumou. Eu havia me esquecido disso. Paciência - não tinha mais volta. Só me restava rezar para que nada acontecesse.
Despedi-me das três com um boa noite e entreguei meu espírito aos anjos. Neise não retribuiu a minha gentileza.
Lá pelas 3 horas da manhã não deu outra: sonhei que estava despencando de um precipício e dei um potente berro que fez estremecer a porta do quarto e balançar os quadros da parede.
- Puta que pariu, disparou Neise - que merda é essa??
Pedi um milhão de desculpas pelo ocorrido, mas o estrago já estava feito. Neise estava com a cachorra e dirigindo-se às irmãs vociferou: vocês foram as únicas culpadas dessa encrenca toda - se ele der outro grito como esse aqui dentro os três vão ter que pegar o caminho mais cedo pra Pamplona. Tô avisando!!!
Felizmente nada mais aconteceu, mas com medo de que pudesse vir a ocorrer algo novamente, não me atrevi a dormir. De manhã cedo na mesa do café acabamos rindo um bocado sobre o ocorrido, inclusive Neise que parecia mais cordial comigo.
Contou-me que já estava na Espanha trabalhando há anos e não cogitava retornar tão cedo. Deixei que elas partissem na minha frente para Pamplona, pois eu queria mesmo era caminhar sozinho durante os 23 km necessários para chegar a essa linda e milenar capital da Comunidade Autônoma da Navarra.

 
VI - De Zubiri a Pamplona
 
A rua da casa onde dormimos se conectava naturalmente ao Caminho. Assim que as três irmãs baianas desapareceram lá no final após uma curva, despedi-me do proprietário e pus-me em marcha. Não queria chegar muito tarde a Pamplona, pois tinha medo de não encontrar abrigo no Albergue Municipal daquela cidade, já que muitos peregrinos preferem iniciar o Caminho a partir dali. Tentei resistir à tentação de parar para fazer novas fotos, mas isso era praticamente impossível. Comecei a encontrar rios de águas cristalinas e livres de qualquer contaminação, onde alguns pescadores enchiam seus cestos com trutas. Parei para observá-los, mas percebi uma certa reprovação estampada em seus rostos, talvez pelo receio de que eu pudesse fazer algum ruído que atrapalhasse a pescaria. Continuei a caminhar, mas não antes de fazer algumas fotos do que estava vendo.
Lembrei-me que Ernest Hemingway também adorava pescar trutas nos riachos de Burguete para depois saboreá-las com o bom vinho da Navarra.
Como que num voo imaginário feito nas costas de um pássaro mitológico, cruzei extasiado vários "pueblos" e vilas, cada um mais interessante que o outro, com suas igrejas e casas amarelo escuro ou cor de tijolo queimado, que em muito lembram as cores da bandeira espanhola. Larrasoaña, Akerreta, Zuriain, Irotz, Zabaldika, Arieta, Trinidad de Arre e finalmente lá estava ela bem diante de mim: a imponente e linda capital da Navarra.
Pamplona (Iruña, em basco) é uma cidade ímpar. Remonta ao 1° milênio A.C. quando era um povoado de bascos, tendo sido convertida em cidade por Pompeu, general romano que ali instalou um acampamento militar em 74 a.C.
Hoje Pamplona tem cerca de 200 mil habitantes. É o centro cultural, comercial e industrial da Navarra. Seu povo é alegre e festeiro. À noite, as ruas situadas em sua parte mais antiga e histórica, ficam praticamente intransitáveis com verdadeiros cordões humanos seguindo as ruidosas charangas, que vão serpenteando pelas ruelas tocando animadas fanfarras. O chope, o vinho, as tortilhas e a alegria do povo espanhol somada àquela dos turistas estão por toda parte. É simplesmente contagiante!!!
O Café Iruña, situado na Plaza del Castillo, é outro ponto de atração da cidade. Assemelha-se muito à Confeitaria Colombo do Rio de Janeiro, com suas paredes espelhadas, lindos lustres antigos e suas mesas de ferro com tampos de mármore. Ali você pode beber tranquilamente uma "caña" (chope), tomar uma garrafa de vinho ou até mesmo jantar, sem o risco de se surpreender com o valor da conta. Algo espantoso em um ambiente que era frequentado quase que diariamente por Ernest Hemingway quando viveu num quarto de hotel ali próximo.
Outra grande atração de Pamplona são os "encierros".
Durante as festas de São Firmino no mês de julho, os touros são soltos diariamente nas ruas e percorrem um traçado previamente determinado. Várias pessoas, (entre as quais gostaria de estar), correm à frente desses pesados e enfurecidos animais, experimentando uma dose fenomenal de adrenalina em seus corpos. Alguns se ferem seriamente. Outros até perdem suas vidas. Mas morrer fazendo o que se gosta não deve ser algo reprovável.
Assim pensando, fui ao encontro do albergue para tomar meu banho, fazer a barba, lavar e secar minha roupa suja acumulada, carimbar a minha Credencial do Peregrino, (que nos permite ser aceitos nos albergues e receber a Compostelana, o certificado de conclusão do Caminho em Santiago de Compostela).
Para minha decepção, o albergue estava lotado.
 
 
VII - Em Pamplona
 
Vale aqui uma explicação: os Albergues Municipais são mantidos pelos "Ayuntamientos", ou seja, pelas prefeituras das cidades que por sua vez têm ajuda do governo. É compreensível essa filosofia espanhola, já que os milhares de peregrinos que realizam o Caminho de Santiago todos os anos, contribuem decisivamente para o incremento das verbas obtidas com o turismo.
O preço para um bom banho, uma vaga em uma cama beliche, com direito a usar cozinhas totalmente aparelhadas, inclusive com geladeiras e micro-ondas, sanitários limpos, sala de descanso e lugar para lavar e estender a roupa, custa em média 6 euros. Uma bagatela!
Geralmente abrem às 10H00 para entrada dos peregrinos e fecham às 22H00, horário em que todos já devem estar em suas camas quando a luz é então apagada. Costumam ser operados por voluntários, normalmente peregrinos que já concluíram o Caminho e querem, assim, expressar seu reconhecimento e gratidão.
Depois existem os Albergues Paroquiais, normalmente mantidos por igrejas e situados quase sempre ao lado delas. Oferecem esses mesmos serviços, além do jantar e café da manhã. Normalmente nada cobram, aceitando qualquer valor como donativo.
Costumam engajar o peregrino em dinâmicas de grupo e solicitar sua presença em missa na própria igreja, não tolerando grupos, falatórios, nem o consumo abusivo de bebidas, ainda que seja o secular vinho.
Um outro segmento é o dos Albergues Aderidos, ou seja, albergues particulares cujo funcionamento é autorizado pelos "Ayuntamientos" e que cobram em média 12 euros. Costumam ser mais organizados e modernos.
A regra contém exceções. Conheci muitos bons albergues municipais, como o de Burgos (Los Cubos), que tem até elevadores com cabines em aço escovado e comandos digitais e também albergues aderidos bem mais simples. Entretanto, todos atendem adequadamente aos peregrinos. Muitos deles têm máquinas de lavar e secar roupa, para a venda de sanduíches, sorvetes, café, refrigerantes, internet, WI-FI e outras facilidades.
Resolvi perguntar ali mesmo onde poderia encontrar um hostal, que normalmente variam entre 20 e 40 euros, quando tive minha atenção despertada por um homem e duas mulheres com o mesmo problema. Ele chamava-se Jerry, um padre Irlandês que fazia o Caminho sozinho, como mais tarde viria a saber. As mulheres eram duas australianas de cujos nomes não me recordo. Juntei-me a eles, já que estávamos todos no mesmo barco e após as apresentações de praxe, como: "what's your name" e "where you from", Jerry me disse que haviam sido informados da existência de um hostal modesto (Pensión Eslava), mas situado em pleno centro de Pamplona, onde poderíamos encontrar quartos para duas pessoas cada, com banho no corredor.
Fomos os quatro batendo papo pelas vielas seculares, rindo de nossas topadas e desenganos, até que chegamos ao local desejado onde constatamos haver vagas - exatamente dois quartos. O preço era justo: 30 euros por quarto que dividi com Jerry. As duas australianas ficaram com o outro quarto e não mais nos veríamos.
Deixei Jerry tomar banho primeiro. Aproveitei para jogar todo o conteúdo da minha mochila sobre a minha cama e comecei a procurar por itens supérfluos, pois achava que estava demasiadamente pesada.
Acabei eliminando muita coisa como vários sabonetes, idem tubos de creme dental, aparelhos de barba descartáveis, loção após barba, diversos pares de meia, uma bússola, desodorante, um apito (por que raios eu tinha trazido isso?). Me desfiz também de parte da minha roupa (fiquei só com 3 bermudas, 3 cuecas, 3 camisas, 1 casaco de frio, uma calça e uma só toalha de banho).
No Caminho a gente aprende a ter menos. Constatamos que não necessitamos de muito para viver nossas vidas e que a maioria das coisas e bens materiais que possuímos, são apenas excessos - nada mais. Quantas vezes nem lembramos das roupas e sapatos que temos nos armários? De Saint-Jean a Pamplona, aprendi que míseros gramas fazem muita diferença num percurso de 70 km que era o que eu tinha andado até aqui.
Jerry saiu do banho e disse que me esperaria num determinado bar no centro de Pamplona para conversarmos e tomarmos umas cervejas.
Após o meu banho desci e comecei a procurar por ele buscando o tal bar cujo nome, confesso, não havia memorizado muito bem.
Sem conseguir encontrar nem um, nem outro (a noite em Pamplona estava animada, com muita gente nas ruas e nos bares), resolvi jantar e voltar para o quarto, onde me joguei na cama e adormeci imediatamente. Percebi quando Jerry chegou, bem mais tarde, mas fingi estar dormindo. Ele se recolheu sem dizer nada.
Na manhã seguinte, meio aborrecido, ele quis saber o porquê de eu não ter cumprido com o combinado na noite anterior. Após minhas vagas explicações, que aparentemente não o convenceram, saímos do hostal e fomos tomar café para logo depois iniciarmos nossa caminhada. Como de praxe, comecei a parar para fazer minhas fotos o que acabou por aborrecê-lo, pois ele tinha pressa. Disse-me então que iria seguir sozinho para Puente la Reina, caso eu não me importasse.
Era tudo o que eu queria.

 
VIII- De Pamplona a Puente la Reina
 
Jerry afastou-se a passos largos. Na véspera tinha me contado que pretendia encerrar seu Caminho em Santo Domingo de la Calzada, a 150 km de onde estávamos, pois necessitava voltar à Irlanda. Mais tarde viria para retomá-lo a partir daquela cidade.
Saí de Pamplona com a firme convicção de que ainda retornaria. Afastei-me lentamente de seu Centro Histórico e comecei a seguir as setas indicativas do Caminho. O tráfego de veículos começava a aumentar à medida que eu caminhava.
Passei ao lado da "Universidad de Navarra", situada num magnífico complexo estudantil de gigantescas proporções. Lindo lugar.
O sol começava a aparecer. Ainda era muito cedo, mas resolvi tirar meu casaco assim mesmo. Prefiro o frio ao calor. Detesto transpirar, ainda mais com uma mochila de 9 kg nas costas. Não obstante a "faxina" realizada no dia anterior, ela ainda estava pesada.
Passei por Cizur Menor e em seguida atravessei a estrada enveredando por uma trilha de terra que cortava lindos campos floridos. O perfume exalado era inebriante. O vento começou a orquestrar uma sinfonia magistral, onde as flores se exibiam em graciosos movimentos.  Avistei um banco sob uma árvore e acelerei o ritmo. Queria sentar-me ali na primeira fila e contemplar aquele espetáculo maravilhoso que estava acontecendo bem diante dos meus olhos. Algumas pétalas se desprendiam pela força do vento e ficavam sob o comando de sua experiente batuta, executando passos ornamentais como exímias bailarinas.
Alguém muito maior que o vento, e que está no comando de todas as coisas neste mundo, certamente tinha organizado aquele evento.
E justamente eu, mero pecador e mortal, havia ganhado dos céus aquele inesperado presente.
Absorto e feliz, fui sacudido inesperadamente pela realidade. Um grupo de ciclistas brasileiros, vendo a bandeira do Brasil "espetada" na minha mochila, disparou em alto e bom som: "Vamos lá cara - nada de moleza" e distanciaram-se em ruidosas gargalhadas. Eles não haviam recebido ingressos para aquela sinfonia. Que pena.......
Prossegui para Guenduláin e depois para Zariquiequi, onde parei para descansar e encher meu cantil. Precisava me preparar para a longa subida que vinha pela frente e que me conduziria ao "Alto del Perdón" com seus 770 m de altura. Antes de iniciar a marcha resolvi tomar um canecão de cerveja saída daquelas lindas chopeiras de cobre, quase sempre jorrando do bico de uma águia. Recebi um pratinho com "pinchos" ou "tapas" - São "tira-gostos" que normalmente acompanham de forma gratuita as bebidas na Espanha.
"Pinchos", vem de "pinchar" que em espanhol significa ESPETAR (os salgadinhos). Já "tapas," vem de TAPAR (outrora tapava-se o copo da bebida com o pratinho do tira-gosto para evitar que alguma mosca caísse lá dentro).
O sol esquentava tudo do lado de fora do bar. Nem parecia primavera. Resolvi pedir mais uma caneca de cerveja. Lá veio ela com um novo pratinho de azeitonas, pepininhos e cebolinhas. Saboreei vagarosamente a bebida e como o bar tinha WI-FI pedi o login e "la clave" (senha) ao proprietário, pois queria aproveitar para mandar fotos, vídeos e noticias minhas para casa. Isto feito, pensei em sorver mais um canecão daquela deliciosa bebida, mas desisti por perceber que já estava ficando muito "alegre".
A bebida funcionou como combustível em minhas veias fazendo-me caminhar a passos decididos, aumentando a minha resistência. Por isso, quase passei direto pela "Fuente de la Reniega", onde segundo reza a lenda, o demônio apareceu a um peregrino que por ali passava sob um sol escaldante, quase morto de sede. Disse que lhe daria de beber se renunciasse a Cristo e a Santiago de Compostela.
- Prefiro então a morte, ter-lhe-ia respondido o peregrino.
Imediatamente um raio de luz perfurou a rocha fazendo jorrar um esguicho de água cristalina onde o caminhante saciou sua sede.
Ia pensando sobre esse fato quando fui açoitado por um forte vento que dificultava minha subida, mas mesmo assim cheguei eufórico ao cume da "Sierra del Perdón" ou ao "Alto del Perdón" propriamente dito.
Eu me sentia como um soldado romano. As figuras esculpidas pareciam dar-me as boas vindas. Era o Monumento ao Peregrino. Uma inscrição feita a fogo sobre o ferro dizia: "Donde se cruza el camino del viento con el de las estrellas".
A referência lembrava que o Caminho de Santiago, todo ele situado sob a Via Láctea, ali dava as mãos a um dos poderosos elementos da natureza.
O vento assobiava incessantemente obrigando-me a fechar o zíper do casaco e a segurar bem minha câmera. Não à toa naquela região no cume das elevações próximas, uma considerável quantidade de geradores eólicos havia sido instalada. Perfilados, lembravam os moinhos de vento contra os quais Dom Quixote se insurgiu. Tentei imaginar por onde andariam Marta e Paulo que desapareceram engolidos pela neblina nos Pirineus bem diante dos meus olhos.
Certamente já haviam passado por ali, pois quem consegue vencer os Pirineus não encontrará pela frente outro desafio de igual magnitude.
Após um rápido descanso, preparei-me para a formidável descida que vinha logo à frente. Eu teria que caminhar agora até Puente la Reina distante 11 km dali e baixar de 770 para 345 m de altitude .
Pra piorar, o declive além de pronunciado tinha inúmeras pedras soltas. Bastaria uma cochilada pra pôr tudo a perder.
Mais adiante encontrei as três baianas. Sarah havia torcido um pé e queria recuperar-se um pouco antes de continuar. Lamentei o ocorrido e ofereci ajuda. Neise, a invocada e distêmica irmã, estava mais cordial comigo. Fizemos uma foto juntos e parti em seguida passando por Uterga.
Pouco antes da entrada desse "pueblo" de 170 habitantes, existe uma linda estátua conhecida como - A Virgen de Uterga. Contam que um peregrino sentiu-se mal do coração quando por ali passava e caiu fragorosamente ao chão. Socorrido pela ambulância, foi mais tarde aconselhado pelo médico em Pamplona a interromper imediatamente sua caminhada e voltar pra casa.
Este então rezou à virgem e prometeu que se conseguisse concluir o Caminho retornaria mais tarde para mandar fazer uma estátua em sua honra para colocá-la exatamente no local onde havia tombado. Na manhã seguinte acordou disposto e continuou sua marcha sob os olhares atônitos da equipe médica. Não preciso contar o final, pois a estátua está lá.
Após Uterga, cruzei Muruzábal e parei em Óbanos para mais um canecão de cerveja, pois ninguém é de ferro como as figuras do "Alto del Perdón". Após caminhar mais 2,5 km entrei empoeirado, suado e exausto em Puente la Reina, onde para minha grande surpresa encontrei Jerry que apontando para um bar foi logo dizendo: "vai pro albergue deixar tuas coisas e venhas aqui pra gente tomar aquela cerveja que não tomamos em Pamplona". Concordei e fui andando. Ele não satisfeito disparou: "sem desculpas dessa vez, hein?".
Puente la Reina (Gares, em Basco) é uma daquelas lindas cidades que nasceram por causa do Caminho de Santiago e que dele muito dependem até hoje. Ali se unem as trilhas que começam em Saint-Jean Pied-de-Port (Caminho Francês) e em Somport (Caminho Aragonês). Remonta à Idade Média e tem entre seus destaques a Igreja do Crucifixo ligada à Ordem dos Templários, em cujo interior se encontra um lindo trabalho em madeira de um Cristo Crucificado com os braços em "Y", (dizem ser a única cruz existente no mundo nesse formato). Outra joia singular é a ponte sobre o rio Arga, em estilo românico, mandada construir pela Rainha da Navarra, Doña Mayor no século XI, para facilitar o deslocamento dos peregrinos que antes tinham que fazer a travessia de barco.
Fiquei no Albergue de Peregrinos dos Padres Reparadores, logo na entrada da cidade. Marquei minha cama colocando sobre ela meu saco de dormir, tomei meu banho, fiz a barba, lavei e estendi minha roupa no varal do pátio e fui imediatamente encontrar Jerry, o padre irlandês que havia conhecido em Pamplona. Ele devia estar impaciente.
Mas para minha surpresa, ele não estava lá. Resolvi sentar-me e pedir um canecão de cerveja que veio acompanhado do icônico pratinho de "tapas". Depois de uns 20 minutos chegou Jerry com um enorme Guia do Caminho, quase um catálogo telefônico.
- É pra você, disse-me.
Agradeci e falei que não poderia aceitar. Ele insistiu muito dizendo que era um presente especial. Acabei concordando, mas estava convicto que por trás da gentileza ele também estava querendo livrar-se do peso que aquilo representava.
Ficamos ali batendo papo enquanto as canecas de cerveja se sucediam num vaivém preocupante. Jerry é o que nós conhecemos como "bom de copo" e eu me esforçava muito para acompanhá-lo. Contou-me sobre sua vida na Irlanda e a descoberta da sua vocação religiosa.
Falei-lhe também de minha família e de mim, da vida no Rio de Janeiro, dos problemas do nosso país, etc., etc., mas que precisava voltar ao albergue, pois este fechava pontualmente às 22H00. Ele havia se hospedado num hostal e não tinha esse problema.
Finalmente ele concordou e tirou do bolso sua câmera fotográfica, pedindo para o dono do bar tirar uma foto nossa.
Observei que era idêntica a uma que eu achara na praia numa das minhas caminhadas matinais e que conseguira devolvê-la à legítima dona semanas depois, através de uma pesquisa minuciosa nas fotos que estavam nela. Mais um canecão de chope e contei a Jerry esse acontecimento. Ele se levantou e me deu um forte abraço aprovando emocionado minha atitude: "You did right my friend Sergio - You're a good man".
Despedimo-nos com um longo abraço e voltei ao albergue meio trôpego (não era pra menos) e já no limite do horário de fechamento de suas portas, admirando as ruas medievais daquela linda cidade que agora se iluminava de uma luz dourada com o conluio e a magia de seus graciosos lampiões. Eu era feliz e sabia.
 
 
 
IX - De Puente la Reina a Estella
 
Acordei na manhã seguinte com o "cura", uma espécie de administrador do albergue, entrando no dormitório e entoando desafinadamente um cântico religioso cuja única finalidade era colocar-nos para fora. Isto é compreensível porque precisam limpar e arrumar tudo para a chegada de novos peregrinos. Parei num bar ali perto para tomar café e lembrei-me da noite anterior. Onde estaria Jerry agora? Na realidade não tornaria a vê-lo.
Atravessei a famosa ponte em estilo românico sobre o rio Arga e dirigi-me para Estella (Lizarra, em basco) que ficava a 22 km dali. Uma "moleza" porque praticamente não havia subidas neste percurso, exceto uma bem pronunciada logo na saída de Puente la Reina. Eu caminhava muito bem e sem nenhum resquício dos canecões de cerveja tomados na véspera.
No Brasil, eu havia reduzido meu peso de 117 para 93 kg em três meses com dietas e muitos exercícios físicos, caminhando, pedalando e nadando diariamente. Ainda não sabia que isso me seria útil alguns meses depois quando resolvi fazer o Caminho. Foi pura coincidência.
Ou será que não? Alguém ou algo estaria me preparando para essa aventura de tal forma que eu não me transformasse em mais uma cruz à beira do caminho como aquelas que havia visto?
Caminhando cheguei a Mañeru cruzando depois Cirauqui, Lorca e Villatuerta e após passar pela histórica Ermita de San Miguel, comecei a avistar os primeiros sinais de Estella. Ali encontrei-me com um casal de italianos que tinha conhecido nos Pirineus. Eram Andrea e Giovanna.
Indicaram-me o albergue onde estavam e ficaram me aguardando numa praça até que eu retornasse para jantarmos juntos. Meia hora depois nos encontramos e começamos a andar pela cidade.
Não conseguíamos nos decidir por um restaurante. Queríamos, obviamente, unir o bom, bonito e o barato, na medida do possível.
Vimos um casal de meia idade caminhando em nossa direção e resolvemos perguntar se eles poderiam nos indicar alguma coisa. Eram peregrinos Australianos, bastante simpáticos.
Nos sugeriram um lugar excepcional do tipo que procurávamos onde tinham exatamente acabado de jantar. Mas seria meio complicado chegar lá, disseram.
Percebendo nossa desilusão, resolveram fazer todo o caminho de volta levando-nos até bem próximo ao restaurante. Os peregrinos sempre se ajudam - faz parte das regras desse mágico Caminho de Santiago.
Comemos um pernil mais que delicioso com molho agridoce e cogumelos, logo após termos tomado algumas boas taças de vinho. Andrea e Giovanna me perguntaram: "ma Sergio, come è possibile che tu parli così bene la nostra lingua se sei un brasiliano?".
Expliquei-lhes que era filho de italiana e que também havia morado por 2 anos na Itália. Voltamos para o nosso albergue felizes pelo vinho e pelo delicioso pernil. No dia seguinte outros 22 km me esperavam até Los Arcos.
 
 
X - De Estella a Los Arcos
 
Antes de sair de Estella, fui ao correio local e despachei para o Seminário Menor Belvís em Sanatiago de Compostela, onde me hospedaria, uma caixa de papelão contendo mais alguns itens que eu estava considerando supérfluos. Sobre a caixa escrevi: Peregrino em trânsito - favor reter.
Já havia caminhado alguns quilômetros após ter saído de Estella, quando vi uma placa no Caminho nas proximidades de um lindo Monastério: Bodegas Irache - Fuente de Vino - onde animados peregrinos bebiam gratuitamente, e à vontade, o vinho que saía de uma torneira na parede. Acima dela havia uma placa onde se lia:
"Peregrino Se quieres llegar a Santiago con fuerza y vitalidad de este gran vino echa un trago y brinda por la felicidad.”
Tomei um pouco do saboroso vinho enquanto imaginava que algo similar não funcionaria no meu país, por motivos que obviamente são do conhecimento de todos.
Pensei em visitar o Museu do Vinho e o Monastério de Irache já que estava ali, mas eu havia perdido muito tempo em Estella e resolvi prosseguir para Los Arcos.
Continuei a caminhar agradavelmente até Azqueta apreciando as flores e os campos de trigo que bailavam ao meu lado açoitados pelo vento.
Meu segundo par de tênis incomodava um pouco por ser novo. O que eu amaciara preventivamente caminhando quase que diariamente entre o Recreio dos Bandeirantes, onde moro, e a Barra da Tijuca, teve que ser jogado fora. É que no caminho para Pamplona, ao sair de uma igreja em Zabaldika, ao lado de um albergue paroquial onde fui pedir informações, escorreguei numas pedras soltas e desci uma pirambeira de costas. O tombo foi muito feio!!
Não havia ninguém na trilha para me socorrer. Quando finalmente parei, fiquei inerte olhando para o céu sem mexer um músculo. Tinha receio de ter quebrado algum osso ou luxado alguma articulação. Levantei-me sozinho e vi que além do meu orgulho ferido e o tênis do pé esquerdo em frangalhos, tudo estava bem.
Eu fora salvo pela mochila, pois caí de costas e ela amorteceu todo o impacto. Ainda bem que eu levara um par reserva.
Depois de Azqueta, encontrei novamente campos e vinhedos. Antes da pronunciada subida que leva a Villamaior de Monjardin que venci com relativa facilidade, visitei a Fonte de Los Moros, uma interessante construção em forma de cisterna que fica bem à margem do Caminho e que tem saciado a sede dos peregrinos desde a Idade Média.
Segui para Urbiola e após uma caneca de cerveja chequei finalmente a Las Cruces de onde iniciei a descida até Los Arcos.
Eu havia completado até agora, 138 km em 6 dias. Uma média diária de 23 km. Teria que caminhar outros 700 km até Santiago de Compostela.
Los Arcos é uma simpática cidadezinha com 1200 habitantes e como muitas outras não existiria sem o Caminho e sem os peregrinos.
Hospedei-me no albergue Casa de Áustria logo na entrada da cidade. Ao carimbar a minha credencial de peregrino, percebi que uma mulher que parecia a administradora, "passava um sabão" num rapaz por este estar sentado numa cadeira girada ao contrário, isto é, com os braços apoiados sobre o encosto.
Depois fui apresentado aos meus aposentos: uma acomodação no sótão com vários colchões dispostos lado a lado sobre um piso de tábuas envernizadas. Tudo muito rústico, mas bem limpinho e organizado.
Banho tomado, barba feita, desci pra conhecer a cidade. Depois, como de praxe, viriam o vinho e o jantar.
Passando pela cozinha do albergue, vi sobre a pia uma garrafa grande de refrigerante já aberta e quase vazia. É normal nos albergues, quando alguma coisa nos sobra, colocá-la sobre a bancada da pia para que outros a utilizem. É uma questão de cordialidade e compartilhamento - quase um código tácito de conduta. Eu mesmo já havia deixado sobre a pia latas de pêssegos, sacos de biscoito abertos, etc., etc. Evita-se assim também o desperdício de muitas coisas que ainda podem ser aproveitadas.
Assim que enchi meu copo com o refrigerante, a mesma administradora, uma loira magra com forte sotaque alemão, veio repreender-me.
Meio sem entender, expliquei-lhe meu ponto de vista e por que eu havia feito aquilo. Quis pagar pelo copo de refrigerante, mas ela não aceitou. Saí dali ruborizado e bastante chateado.
Estava dando umas voltas pela cidade quando de repente avistei Thaís e Sarah, as duas irmãs baianas. Perguntei por Neise e fui informado que ela havia voltado a Madri para retomar o trabalho. Perguntaram-me onde eu estava hospedado.
- Na Casa de Áustria, respondi.
Thaís com os olhos faiscando de raiva me falou que elas também estavam lá, mas que não aguentaram a perseguição da tal administradora. Bateram de frente e discutiram com ela, indo para outro albergue.
Thaís continuou: "eu vou arrasar com ela na Internet" (na verdade usou outro verbo que achei melhor não colocar aqui, mas todos vocês entenderam).
- Saia de lá também, Sergio, disse-me Sarah. Vem pro nosso albergue - tem vaga.
- Não, obrigado. Vou ficar lá mesmo, agradeci.
Depois de tomar meu vinho e consumir o já conhecido "Menú del Peregrino" - normalmente composto de um primeiro prato, um segundo, sobremesa, vinho, pão e azeite à vontade (tudo por 10 euros), voltei pro albergue para usar um dos computadores, daqueles que funcionam com moedas, pois tinha que enviar várias fotos e vídeos do Caminho para casa e amigos. Já estava quase concluindo quando chegou a mesma administradora.
- Vamos encerrando com isso porque vou desligar os computadores daqui a 5 minutos.
- Ponderei que o tempo que tinha à disposição e pelo qual já havia pagado era bem maior. E eu ainda estava concluindo o "upload" das fotos.
- Você agora só tem 4 minutos e eu vou desligar em seguida.
A mulher era o cão chupando manga, a besta-fera, o rabudo em pessoa.
Sempre tive muito medo da mistura do sangue que levo nas veias: o italiano por parte de mãe e o espanhol por parte de minha avó paterna. Fiquei imaginando o que faria se ela cumprisse a ameaça. Ia ser um bafafá dos infernos e não valeria a pena. Afinal eu não havia saído de casa pra me aborrecer tão longe.
Assim pensando, salvei meu e-mail na pasta "Rascunhos" para retomá-lo mais tarde em outro lugar e fui pro dormitório, antes que a neurótica mulher me mandasse para o pelourinho tomar umas 50 chibatadas. No dia seguinte iria para Logroño, a 28 km de onde estava.
 
 
XI - De Los Arcos a Viana
 
Acordei cedo em Los Arcos e deixei o albergue imediatamente. Toda a cidade ainda dormia e não havia nenhum negócio aberto - teria que tomar meu café noutro lugar.
Comecei a seguir as setas amarelas que surgiam lentamente aqui e ali, ora pintadas sobre uma parede secular, ora quase imperceptíveis, desenhadas no chão e desgastadas pelas botas dos peregrinos.
Já havia deixado a cidade para trás havia algum tempo, quando os primeiros raios de sol começaram a tingir as nuvens de um tom rosa maravilhoso. Subitamente os pássaros começaram a disparar seus trinados matinais numa linda e perfeita sinfonia da natureza.
As nuvens trocaram o manto que as envolvia por outro, de um tom alaranjado, mas não menos belo que o anterior.
Isto tudo sob um céu azul-escuro que deixava entrever algumas tímidas estrelas que, aos poucos, iam se despedindo do cenário ofuscadas pela luz do dia. Era lindo demais!! Fazia um pouco de frio. Calculei uns 5 graus.
Após 7 quilômetros de caminhada avistei Sansol, um bonito povoado com menos de 100 habitantes, onde finalmente encontrei um bar aberto. Tomei ali meu café.
Mais adiante passei por Torres del Rio, igualmente bela e com cerca de 150 habitantes.
Eu estava conhecendo as entranhas da Espanha, seus intestinos, suas vísceras, algo que até mesmo muitos espanhóis ainda não viram.
Subitamente pensei a respeito disto tudo e senti um enorme orgulho. Teria muito que contar quando voltasse pra casa, com certeza.
Depois de Torres del Rio comecei a encontrar subidas e descidas bastante pronunciadas. O sol já começava a incomodar e resolvi tirar meu casaco de frio. Comecei a suar, o que detesto. Algumas moscas resolveram infernizar a minha vida e começaram a bater no meu rosto. Tentavam entrar pela minha boca, narinas e ouvidos. Acelerei o passo e elas finalmente me deixaram em paz.
Depois de ter caminhado por 19 quilômetros cheguei a Viana, outra agradável e histórica cidadezinha de 4.000 habitantes.
 
Resolvi conhecê-la melhor e decidi ficar. Afinal eu tinha dias de sobra para chegar a Santiago de Compostela. Hospedei-me num albergue "aderido" onde aproveitei para lavar e secar minha roupa, dividindo o custo da operação com duas jovens inglesas por sugestão delas próprias (acho que foi também porque viram minha dificuldade em operar a máquina). Primeiro a obrigação, depois a devoção.
Deixei o albergue e fui imediatamente tomar um canecão de cerveja para somente mais tarde conhecer a cidade.
 
 
 
XII - De Viana a Logroño
 
Acordei cedo no Albergue Izar de Viana. Estava me preparando para pôr o pé na estrada e descobrir alguma padaria aberta, quando ao passar pelo refeitório, junto à cozinha, encontrei aquele simpático casal de australianos que nos levou até à porta do restaurante em Estella.
Somente agora nos apresentamos formalmente. Eram Robert e Ruth. Tinham feito café e me convidaram. Aceitei apenas um copo de suco de laranja - não quis abusar da gentileza. Conversamos um pouco a respeito da nossa aventura em terras tão distantes e nos despedimos. Como sempre ocorre nesses casos, trocamos antes nossos endereços de e-mail para eventuais e futuros contatos.
Mas eu ainda estava morto de fome. Não era uma hipérbole. Era literal. Não comi suficientemente na véspera e fui dormir ainda cedo, com o sol de fora. Caminhar todos os dias uma média de 20 km dá uma fome violenta, pois o gasto calórico é enorme.
Haja cerveja, vinho e "Menú del Peregrino" pra repor isso tudo.
O ganho físico obtido com as caminhadas é fantástico!! Observei também que todas as minhas funções fisiológicas haviam entrado num compasso perfeito. Virei um reloginho suíço dos bons.
No caminho para Logroño, logo na saída de Viana, encontrei um restaurante aberto (coisa rara de acontecer) e comi uma deliciosa "tortilla" feita na hora. Pedi que "caprichassem" na cebola, no que fui atendido.
Já satisfeito comecei a caminhar com o sol às costas. Uma seta amarela aqui, outra ali e lá vamos nós. O dia estava agradabilíssimo: céu de brigadeiro, sem vento e com uns 10 graus de temperatura - excelente pra se caminhar.
Já havia percorrido uns 6 km quando fui alcançado por Robert e Ruth. Eles caminhavam forte. Tiramos algumas fotos juntos e nos despedimos.
Alguns quilômetros mais e coloquei radiante meus pés na Comunidade Autônoma de La Rioja, conhecida mundialmente pelo alto padrão de qualidade de seus excelentes vinhos. Era a segunda Comunidade Autônoma do percurso. Até Santiago de Compostela ainda teria que cruzar outras duas: Castilla y León e finalmente a Galícia.
Cabe aqui uma explicação: a Espanha como a conhecemos, é constituída por 17 Comunidades Autônomas, cada uma com suas respectivas capitais, regiões e províncias.
Fazendo o Caminho Francês, obrigatoriamente temos que atravessar quatro delas, a saber:
Navarra – Capital Pamplona
La Rioja – Capital Logroño
Castilla y León – Capital Valladolid
e finalmente a Galícia, cuja capital é Santiago de Compostela.
Entrei em Logroño atravessando sua magnífica ponte sobre o rio Ebro. É uma linda cidade com 153.000 habitantes. Não obstante, ou "sin embargo" como dizem os espanhóis, pareceu-me bastante tranquila.
Depois de admirar suas ruas sem um único papel ou guimba de cigarro no chão e fotografar algumas igrejas, fui até à biblioteca municipal para utilizar-me de um computador, pois precisava colocar a correspondência em dia. Sentia-me um verdadeiro correspondente internacional enviando relatos, fotos e vídeos de minha espetacular caminhada para a família e amigos.
Para não perder o hábito, tomei um canecão de cerveja sentado do lado de fora de um bar bem no centro de Logroño, apreciando embevecido, e em detalhes, o ir e vir daquela gente ordeira e instruída.
A Espanha merece ser amada.

 
XIII - Um Anjo no Caminho para Navarrete
 
O sol parecia estar disposto a encenar uma de suas melhores apresentações naquele dia. A temperatura começara a subir inexoravelmente e resolvi pegar o Caminho para Navarrete, antes que as coisas se complicassem. Seriam mais 13 quilômetros até lá. Queria ficar onde estava, mas achei que tinha caminhado muito pouco - somente 10 km - quando o normal gira em torno de 25 km/dia. Não obstante, saí de Logroño com a firme convicção de que ainda voltaria algum dia para conhecê-la melhor.
Enveredei por ruas tortuosas e movimentadas e assim, aos poucos, fui deixando mais uma bela cidade para trás. Foi um parto suave, sem dores. Eu estava feliz e bastante disposto a caminhar.
Um silêncio quase absoluto, que só o Caminho de Santiago tem, aos poucos se impunha sobre o falatório das pessoas e o ruído dos automóveis. O ser humano parece não saber fazer outra coisa a não ser barulho e provocar a erosão.Talvez estivesse sendo excessivamente crítico em meu julgamento, pensei comigo mesmo.
Fui seguindo as famosas setas amarelas e após caminhar por 7 quilômetros sem descanso, cheguei ao "Parque de la Grajera". O lugar era maravilhoso. Muito verde, com um grande lago, frondosas árvores, bancos de cimento estrategicamente colocados e principalmente água - muita água. Eu estava precisando dela. Enchi meu cantil e mergulhei a cabeça sob o jato daquele precioso líquido que jorrava de uma grande bica estilizada de metal. Molhei-me todo, mas foi delicioso!!
Repousei por uns 15 minutos deitado sobre um dos bancos, olhando as copas das árvores logo acima de mim. Ao levantar-me, reparei que havia uma capelinha com uma santa ali bem perto. Parecia ser a Virgem Maria. Parei bem em frente e resolvi fazer uma prece, coisa rara para mim, devo admitir.
Pedi pela minha mulher, filho, netos, irmã, parentes e amigos. Agradeci pelo fato de ter chegado até ali sem qualquer sequela. Eu não tinha nem mesmo uma única bolha nos pés, terror de todos os peregrinos. Agradeci por estar vivendo jornadas inesquecíveis e por ser ainda lúcido e saudável, apesar dos meus quase 70 anos. Pedi para nunca fazer o mal a ninguém e que, ao contrário, pudesse ajudar os meus semelhantes.
Retomei finalmente a marcha. O dia esquentava cada vez mais e eu tinha uma subida de 3 km para vencer até o "Alto de la Grajera". Cheguei lá em cima extenuado. O suor saía por todos os meus poros.
Resolvi sentar-me sob uma árvore, quando comecei a ver alguém vindo em sentido contrário e a passos largos. Eu podia ouvir o ruído provocado pelos cajados que usava: um em cada mão - tac, téc, tac, téc, tac, téc, tac.......
Aquele som perfeitamente cadenciado ia aumentando aos poucos e se aproximava cada vez mais e onde eu estava.
- Um peregrino fazendo o Caminho de Santiago no sentido inverso? Isso não costuma ser boa coisa, pensei.
Percebi tratar-se de uma jovem. Ela caminhava bem no meio da trilha olhando para o chão, como que procurando por alguma coisa. Levantei-me e indaguei se ela estava precisando de ajuda.
Era uma linda moça de uns 20 anos. Tinha uma beleza fulgurante, difícil de não ser notada. Era alta e esguia. O esforço que empregava caminhando determinadamente sob aquele sol impiedoso, lhe iluminava ainda mais o rosto suado, tornando-o ainda mais vívido e colorido. Parecia um anjo. De onde tinha saído? Para onde ia? O que objetivava? Ofereci-lhe meu cantil. Ela estava visivelmente cansada e bebeu sofregamente, acabando com toda a água que eu tinha. Acho que a dela tinha terminado. Ela desculpou-se.
- Não foi nada - pego mais depois, falei. Quero mesmo é saber qual é o teu problema.
Com os olhos úmidos, explicou-me que havia perdido sua pedra e tinha que encontrá-la, custasse o que custasse.
- Pedra? Perguntei por ter achado que não tinha entendido muito bem.
- Sim, minha pedra - Eu a trouxe da Holanda. Antes de vir para o Caminho meus parentes e amigos fizeram cada um deles um pedido a Santiago de Compostela segurando uma pequena pedra. Algumas dessas pessoas estão enfermas e nela depositaram suas últimas esperanças.
Eu prometi a eles que a colocaria aos pés da Cruz de Ferro que existe no Caminho logo após Foncebadón, como normalmente fazem os outros peregrinos. E eu simplesmente a perdi. Como pude fazer isso? Já liguei para os albergues e restaurantes por onde passei, mas ninguém a encontrou. Devo tê-la perdido pelo caminho e preciso encontrá-la de qualquer maneira.
- Ponderei dizendo-lhe que sua empreitada era muito difícil, até mesmo impossível. Falei que deveria desistir e explicar aos seus parentes e amigos o que havia acontecido. Eles saberiam entender e certamente a desculpariam.
- "No way" - nem pense nisso, respondeu-me determinadamente.
Quando falou, seus olhos verdes faiscavam. Ela me olhava com certa fúria por eu estar atrapalhando seus planos. Meio sem graça, talvez por ter percebido seu descontrole, agradeceu-me pela ajuda e continuou sua caminhada.
Não havia mais ninguém ali, provavelmente pelo forte sol que fazia naquele momento. Apenas eu, ela e o silêncio do Caminho. Meio surpreso e inconformado com aquele desfecho, deixei minha mochila encostada na árvore e alcancei-a logo adiante.
Segurei-a firmemente pelo braço e falei: tudo bem, você pode continuar a fazer o que quer, mas antes lembre-se de que um peregrino jamais deve voltar sobre seus próprios passos. Isto é desdenhar do que você já conquistou até aqui com a ajuda de Santiago. Ele te quer bem e deseja te receber em sua Catedral!! E dessa maneira talvez você nem chegue lá. Ela agora parecia estar considerando os fatos, pois me olhava com outra expressão - estava refletindo. Começou a ensaiar um choro baixinho, quase imperceptível.
- Eu continuei: e quanto à tua pedra, esqueça-te dela. Santiago já a pegou pra ele. Por isso é que tu não a encontras. Ainda assim, se queres tanto colocar uma pedra aos pés da Cruz de Ferro como prometeste, retoma a tua marcha e escolha a mais bonita que achares no Caminho.
Encoste-a à tua testa e mentalize com muita fé, pedindo que todas as preces, anseios e energia que te confiaram antes da tua vinda pra cá, sejam transferidas para ela. Isso feito, quando chegares aos pés da cruz, faça uma oração e deixe-a cair para que tome seu lugar entre as outras milhares que ali estão. Assim, tua missão estará cumprida e prosseguirás teu Caminho em paz.
Logo que acabei de dizer isso, ela largou os cajados e abraçou-me, chorando convulsivamente. Quando parou, distanciou-se um pouco e olhou-me com ternura - tinha a gratidão estampada em seu rosto.
Com um grande e iluminado sorriso me disse: "thank you man. You really helped me".
Retomou vigorosamente e a passos largos seu Caminho, dessa vez na direção certa, enquanto eu fiquei ali estatelado sem entender como tinha conseguido dizer tudo aquilo. Na verdade não entendi até hoje.
Vi-a desaparecer ao longe após uma curva na trilha de terra, não antes de ter parado e acenado demoradamente para mim.
Nesse momento quem começou a chorar fui eu......
Como é bom fazer o bem. Senti uma grande onda de felicidade invadindo todo o meu corpo. Uma recompensa extraordinária, sem par....
E eu, que fiz milhares de fotos pelo Caminho, não me lembrei de fotografar essa moça. Nem mesmo perguntei seu nome. Sua imagem ainda permanece viva em minha mente.
Retomei devagar e aos poucos minha marcha para Navarrete.
O perfume daquela jovem desconhecida parecia ter ionizado o Caminho e estava em todos os lugares sobrepondo-se ao das flores.
Custei a conciliar o sono naquela noite. Seria ela realmente um anjo? Com este pensamento em minha mente acabei adormecendo, por fim - tinha que sair cedo no dia seguinte.
A cidade de Nájera, próxima parada indicada no mapa estava esperando por mim.
 
 
XIV - De Navarrete a Nájera
 
O dia já havia raiado quando o administrador do albergue entrou no dormitório: “Vamos peregrino, levántate. Tienes que caminar mucho si quieres llegar a Santiago de Compostela” – disse-me em alta voz e sorrindo. Notei que eu era a única pessoa que ainda estava ali.
- “Vas a desayunar con nosotros?”, Perguntou-me
- “No, gracias – Voy a desayunar en el camino”, respondi-lhe ainda meio tonto e sem saber exatamente onde estava.
Eu havia dormido muito mal e sentia-me alquebrado. Pulei pra fora da cama literalmente, vesti-me rapidamente e desci até à portaria, onde calcei meu tênis, peguei meu cajado e saí.
Vale aqui outra explicação: nos albergues os calçados dos peregrinos assim como seus cajados, devem ser deixados do lado de fora dos dormitórios por questão de higiene. Entretanto, por algumas vezes vi essa regra não ser obedecida, principalmente naqueles de cidades mais simples. Também é proibido usar aparelhos eletrônicos nos dormitórios ou fazer ruídos que possam incomodar aos demais.
As portas costumam ser fechadas pontualmente às 22H00 e você pode abri-las por dentro para sair a qualquer hora e retomar seu Caminho. Essa é a regra, mas você sempre encontrará uma exceção a tudo isso que eu disse. É próprio do ser humano.
O que mais me incomodava não eram os roncos nem as eventuais flatulências alheias durante a madrugada, mas a incrível mania que alguns peregrinos têm de bater a porta do dormitório ao entrar e sair. Notei que os europeus são campeões nessa modalidade. Eles são muito educados, tudo bem, mas adoram dar uma porradinha com a porta.
Reparem que quando eles fecham a do automóvel, parecem estar praticando uma nova modalidade de esporte: “lançamento de porta”. A pancada é tão violenta que chega a estremecer todo o veículo. Se você por distração deixar sua mão encostada no encaixe da porta nessa hora, seguramente vai perder todos os dedos. Será que eles fazem isso para se certificarem de que está bem fechada? Vai saber....
Tirando isso, acho até salutar a vida nos albergues, pois você acaba desenvolvendo um sentido comunitário muito forte. Alguns partilham até o preparo das refeições, dividindo os custos das compras e lavando a louça toda ao final. Já fui convidado para comer uma “paella” feita dessa forma assim que cheguei em um deles. Quis pagar pela minha parte, mas não aceitaram. "Esqueça isso. Vai sobrar mesmo!!! Sente-se aqui e coma com a gente".
Já na estrada, o dia estava muito bom e o sol já botava suas asinhas de fora, obrigando-me a tirar o agasalho e consecutivamente a mochila. Amarrei o casaco na cintura pelas mangas e recoloquei a mochila. Era uma verdadeira ginástica e a gente vai perdendo calorias. Vamos lá!!! Tenho que chegar a Nájera ainda hoje, pensei.
Fui caminhando e observando aqueles lindos campos de trigo, alguns já colhidos e transformados em enormes feixes à beira do Caminho aguardando por transporte. Os europeus aproveitam cada centímetro de terreno vazio.
Comecei a pensar no episódio do dia anterior, nos mistérios da vida e da sua efemeridade. Por que estamos aqui neste mundo? E para quê?
Não tenho medo da morte – nunca tive, mas temo a “causa mortis”. Esta sim é o problema.
Há pessoas que pedem a Deus uma vida longa - mas sem qualidade, não serve. Morrer com noventa anos sobre uma cama, com fraldão, tomando banhos de asseio, cheio de chagas e dando trabalho pra todo mundo não é nada bom. Pensei que talvez morrer ainda lúcido ali no Caminho e ter uma cruz com minha foto encravada sob uma árvore até que seria bom.
Não acredito em destino. Deus não seria tão injusto com a sua criatura. Morrer com dia e hora marcados como um boi num matadouro, não é coisa para seres humanos. Nós temos o livre arbítrio. Se fizermos besteira por aqui, vamos ter que voltar para expiar nossos erros e saldar a nossa dívida. Nossa alma é como uma pedra pontiaguda – nascemos imperfeitos e viemos a este mundo para rolar e acertar nossas arestas. Quando estivermos redondinhos, ascenderemos a novos planos nesse gigantesco universo criado pela sabedoria divina cujo amor e misericórdia são infinitos. Eu pelo menos penso assim.
Nossa matéria é efêmera assim como a nossa vida. Nosso corpo quando privado do espírito e do sopro da vida, nada mais é que carne para os vermes: apenas um cadáver.
Não sou eu quem está dizendo nem estou inventando nada.
A própria palavra CADÁVER é composta pelos prefixos silábicos da frase: Carne Dada aos Vermes (Ca+Da+Ver), ou como diziam os antigos pensadores – “CARA DATA VERMIS”.
Com essas coisas na cabeça, porque no Caminho o que você mais tem é tempo pra pensar, acabei chegando a Ventosa, outra graciosa cidadezinha com 150 habitantes. O sol já ia a pino quando resolvi entrar num bar para tomar aquele já conhecido canecão de cerveja, porque ninguém é de ferro.

 
XV - Em Nájera
 
Cheguei a Nájera numa linda tarde de sol e fiquei impressionado com sua beleza. Assim que se entra na cidade, avista-se a ponte sobre o rio Najerilla, este largo e de águas cristalinas com pedras muito brancas em seu leito. Dali podia-se ver grande parte das construções que margeiam o rio e também um morro alto, cor de tijolo, que mais parecia uma falésia, tornando Nájera inconfundível ao viajante. A cidade tem pouco mais de 8.000 habitantes.
Nájera teve um importante papel no passado quando Garcia Sanches, Rei de Pamplona, transferiu para ali toda a sua corte. O terrível Abderramán III no ano de 924 destruiu completamente aquela cidade, não restando a Garcia outra opção que não a mudança.
O Monastério de Santa Maria La Real situado ali perto merece plenamente ser visitado, não só pela sua beleza arquitetônica, mas também pelo acervo histórico que possui, onde se destacam uma imagem antiquíssima em madeira da Virgem Maria com o Menino Jesus e as tumbas dos reis de Nájera e Pamplona nas dinastias Jimena e Abarca. Seu claustro conhecido como “Claustro de los Caballeros”, também é singular e de rara beleza.
Hospedei-me no Albergue particular Puerta de Nájera. Muito bem mantido e finamente decorado. Tem móveis antigos e espelhados, piso de madeira envernizado e até lindos lustres e quadros. A cozinha é pequena, mas funcional. Está situado de frente para o rio Najerilla, em sua margem direita. O banho é amplo e confortável, com boas duchas quentes, mas como sempre funcionando na base do botão com mola: a gente aperta o dito cujo e depois de 15 segundos a água cessa, obrigando-nos a pressioná-lo novamente. A economia em primeiro lugar! O quarto onde estava tinha apenas 3 beliches com duas caminhas cada. Isso para o peregrino é quase uma “suíte presidencial". Tinha acabado de me vestir quando chegou um casal de idosos americanos - deviam estar na faixa dos 80 anos.
Aqui vai uma nova explicação: alguns peregrinos, principalmente aqueles mais idosos ou com alguma dificuldade de locomoção, não fazem necessariamente todo o Caminho a pé. Muitos se utilizam dos meios de transporte disponíveis, como trens, ônibus e até mesmo táxis, mas usam a rede de albergues porque é bem mais barata. Outros despacham suas mochilas para o destino seguinte no próprio albergue onde estão, preenchendo um formulário próprio e pagando 5 euros. Quando você chega no outro ponto, sua mochila já está lá. O serviço é perfeito e confiável. Nos dias de chuva a gente costuma ver muitos peregrinos fazendo isso.
A senhora cumprimentou-me e apoiou seu cajado (que deveria ter ficado no cesto na portaria) ao lado do seu beliche. Virou-se para dizer algo ao marido e quando voltou à posição inicial, bateu violentamente com a mão no cajado que como uma lança, saiu voando e acertou em cheio o grande vidro de uma das portas que dava para uma pequena sacada, fragmentando-o em mil pedaços.
O marido deu-lhe uma bronca magistral dizendo que ela sempre fora desajeitada e desatenciosa. Fiquei meio passado com aquilo e com muita pena da pobre mulher que estava visivelmente melindrada e constrangida. Intercedi em seu socorro dizendo-lhe que não se preocupasse porque isso poderia acontecer com qualquer pessoa, até mesmo com os mais jovens e atenciosos.
O homem olhou-me furiosamente, talvez até mais do que Anfitrião para Alcmena, sua mulher, quando descobriu que esta o traíra com Zeus e que ainda por cima estava grávida dele. Mais tarde dessa relação espúria, nasceria Hércules.
Aquilo também fora uma injustiça, já que Zeus tinha assumido a forma de Anfitrião quando teve uma noite de amor com Alcmena na sua ausência.
Coisa dos imaginativos gregos............
Imediatamente chegou a administradora do albergue e pôs-se em atividade para resolver o problema, dizendo à senhora que se tranquilizasse, pois tinham seguro para esse tipo de acontecimento e que tudo seria resolvido.
Já de banho tomado, barba feita e de roupa limpa, saí instintivamente à procura de um canecão de cerveja, dos bons. Dei sorte: encontrei logo um aconchegante bar bem atrás do albergue. Fiquei ali sentado um bom tempo pensando no ocorrido. Certamente se aquela senhora tivesse deixado seu cajado na portaria, aquilo não teria acontecido. Quantas vezes na vida temos problemas por não seguir adequadamente certas regras e ensinamentos?
Por outro lado, o cajado a ajudou a subir até o dormitório. Talvez sem ele, pudesse ter escorregado na escada com consequências ainda piores.
Muitos diriam simplesmente que ela deu azar, mas eu particularmente não acredito nem no azar e tampouco na sorte. Ambos são apenas eufemismos para o acaso negativo e o acaso positivo. O bem e o mal correm indistintamente ao justo e ao ímpio e também ao bom e ao mau.
Costumamos dizer que uma pessoa de sucesso e de grande destaque na vida, chegou aonde chegou porque teve sorte, quando na realidade deveríamos admitir que ela apenas teve mais capacidade e inteligência do que nós.
Da mesma forma dizemos que tivemos azar em realizar algo que queríamos tanto, quando apenas não fomos capazes nem tenazes o bastante para perseguir nosso objetivo até o fim ou aproveitar adequadamente as oportunidades.
Coisas da imperfeição humana....
Aproveitei para conhecer aquela linda cidade. Após ter jantado voltei ao Albergue “Puerta de Nájera” para me recolher. O vidro da porta já havia sido recolocado, mas o casal de idosos havia desistido da hospedagem e se fora. Acho que ambos se sentiram expostos e constrangidos com o acontecido, principalmente a pobre senhora.
Fui dormir pensando na jornada do dia seguinte. A cidade de Santo Domingo de la Calzada me aguardava de braços abertos a 21 km dali.

 
XVI - De Nájera a Sto. Domingo de la Calzada
 
Acordei cedo e bem disposto em Nájera. Olhei pela janela do meu quarto e vi que o céu estava límpido e que o sol já havia nascido. Saí caminhando tranquilamente e resolvi tomar café em Azofra, um simpático povoado com pouco mais de 250 habitantes, 6 km à frente. No Caminho encontrei dois peregrinos italianos. Conversa vai, conversa vem, disseram-me para estar atento, pois alguns comerciantes inescrupulosos estavam mudando a direção de algumas setas indicativas do Caminho, com a intenção de desviar os peregrinos para que passassem em frente aos respectivos negócios. Isso poderia aumentar em vários quilômetros o percurso original. Disseram-me que um amigo deles que insistira para que fizessem o Caminho, acabou passando por essa experiência desagradável.
- Desconfie quando vir uma seta amarela pintada recentemente. Se a tinta estiver fresquinha, vale a pena duvidar, disseram-me.
Acredito que hoje em dia esse cuidado não seja tão necessário, pois vi vários peregrinos fazendo o Caminho com auxílio do GPS de seus smartphones. E no mapa do GPS ninguém pode pintar nenhuma seta amarela.
Eu particularmente não gosto de usar esse tipo de tecnologia, pois acho que tira um pouco do gostinho da aventura. Servi-me sempre do simples e prático mapa que me foi gentilmente fornecido pela AACS – Associação dos Amigos do Caminho de Santiago no Rio de Janeiro. Na dúvida, esperava por algum peregrino passante e ia discretamente atrás dele. Até agora isso não tinha falhado.
Outra dica é você saber que deve sempre iniciar sua caminhada de manhã com o sol às costas, pois você está percorrendo o caminho no sentido Leste/Oeste. Quando estiver chegando ao seu destino, normalmente o sol já deverá estar se pondo à sua frente. Não dá pra ninguém se perder.
Depois de tomar café em Azofra, continuei a caminhar. O sol já incomodava, embora estivéssemos ainda na primavera com temperaturas amenas. Após ter caminhado por 9 km, encontrei um “oásis” pouco antes de Cirueña. Era o Rioja Alta Golf Club, com gramados bem cuidados e um lindo bar e restaurante que convidava os peregrinos que por ali passavam. Uma placa dizia: “Bienvenido Peregrino – Precio especial – Desayuno/Almuerzo/WI-FI".
Era tudo o que eu queria. Entrei e sentei-me num salão com portas de vidro e vista privilegiada para os campos de golfe. Pedi imediatamente meu canecão de cerveja (somente para não perder o hábito) e fiquei imaginando como era possível que um estabelecimento comercial daquele nível e porte, convidasse abertamente peregrinos a entrar, quando às vezes estamos suados, empoeirados pela caminhada e com os tênis sujos de lama? Certamente regras impostas pela recessão, pensei.
Depois do segundo canecão de cerveja continuei caminhando até Cirueña, outro povoado de 150 habitantes. Enchi ali meu cantil e percorri mais 6 km chegando finalmente a Santo Domingo de la Calzada, onde me hospedei em uma antiga abadia cisterciense logo no início da cidade. Era simples, mas tinha o suficiente e para mim isso bastava. Além do mais era uma construção histórica e com um átrio espaçoso e confortável, onde pude lavar minha roupa manualmente e estendê-la ao sol. Achei engraçado ver aquele bailado das minhas peças no varal misturadas àquelas dos outros peregrinos enquanto alguns deles estavam sentados sobre a grama lendo seus livros ou analisando seus mapas.
Santo Domingo de la Calzada, fundada no ano de 1040 por Domingo García, é uma cidade com pouco mais de 6.000 habitantes e cheia de história. Está intimamente ligada ao Caminho de Santiago. Sua catedral é de magistral beleza e abriga peças sacras de grande valor e importância, além de um galo e uma galinha dentro de uma gaiola. Sim, um galo e uma galinha - e vivos.
Contam que um casal de peregrinos alemães fazia o Caminho acompanhado do filho, um lindo rapaz que não correspondeu aos assédios da filha do dono da pensão onde se hospedaram.
Furiosa pela recusa e sentindo-se humilhada, a moça colocou dois castiçais de prata na mochila do pobre jovem e avisou ao pai do sumiço. Não demorou muito para que as peças fossem encontradas. O rapaz foi então sentenciado à forca pelo corregedor da cidade.
Os pais desesperados viram-no ser enforcado numa árvore sem que nada pudessem fazer. Não lhes foi permitido sequer enterrá-lo.
O humilde casal orou a Santiago externando sua dor pela injusta execução, pedindo que ao menos ele fosse recebido no reino dos céus. Então ouviram uma voz dizendo: “Isto não será necessário, pois o vosso filho ainda vive”.
Aos prantos, procuraram o corregedor que estava almoçando no momento e contaram-lhe o ocorrido. Esse lhes disse: “Deixem de bobagem. O vosso filho está tão vivo como este galo e esta galinha que estou comendo agora”.
Imediatamente as duas aves pularam da bandeja e, cantando, começaram a saltitar sobre a mesa diante dos olhares atônitos de todos os presentes.
O rapaz foi tirado da forca ainda com vida e prosseguiu a viagem com seus pais. A filha do dono da pensão, diante do milagre, pôs-se a chorar e confessou toda a ardilosa trama. A partir desse evento, a cidade passou a manter um galo e uma galinha no interior da sua catedral para que nunca se esquecessem do milagre ali ocorrido.
Os peregrinos que a visitam, ficam horas esperando que o galo ou a galinha cante, pois dizem ser sinal de bom augúrio. Eu esperei um pouco, mas eles não cantaram. Assim fui conhecer a linda cidade e jantar para dormir em seguida.
Nessa linda cidade existe um conhecido dito popular: “Santo Domingo de la Calzada – donde cantó la gallina después de asada” No dia seguinte iria para Belorado, a 23 km dali e estava ansioso, pois deixaria La Rioja e entraria na terceira e penúltima Comunidade Autônoma do Caminho: “Castilla y León”.

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>Nota: Os capítulos de XVII a XXV encontram-se no livro:
Uma Aventura no Caminho de Santiago II.


 
Sergio Righy
Enviado por Sergio Righy em 29/09/2017
Reeditado em 20/11/2017
Código do texto: T6128240
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