Natália Correia e Carneiro Pacheco
FALANDO DE CULTURA (1)
Natália Correia e Carneiro Pacheco
Ao estudar, com profundidade, a crise académica vivida e encrespada em Coimbra no ano de 1907 – que culminou com a greve estudantil nacional de 29 de fevereiro – a micaelense Natália Correia ajuda-nos a compreender o pensamento juvenil de António Faria Carneiro Pacheco, a Monarquia e o Operariado.
No limiar do século XIX e dealbar do século XX, a Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra era o viveiro dos estadistas e políticos dum país em que a Monarquia e a República disputavam, ombro com ombro, a prevalência política, como se de dois partidos eleitorais se tratasse.
Embora em minoria, em 1906, os estudantes republicanos expeliam num manifesto antimonárquico que
“A Universidade de Coimbra não viverá enquanto não morrer!” segundo um manifesto de 1906 da minoria republicana de estudantes, que representavam vinte por cento dos 1100 alunos de Coimbra e, intransigentes, não concordavam com a solução de compromisso encontrada para a greve de 1907, contra os 60% de monárquicos e vinte por cento de indiferentes à política.
Carneiro Pacheco nasceu em Santo Tirso, em 14 de novembro de 1887, na casa onde eu, em 1970, fui considerado apto para o serviço militar, numa inspeção realizada na sede da Legião Portuguesa.
O jovem Carneiro Pacheco que, como estudante de Coimbra, residia no n.º 4 da Rua de Tomar, na “república tirsense”, conhecera o Rei por intermédio do Marquês de Lavradio e apanhara, até, uma boleia real do Porto para Coimbra e Alfarelos, em que causou a melhor das impressões ao monarca. Com pouco mais de vinte anos, eram praticamente da mesma idade!
Ruy Enes Ulrich, lente da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, fora seu professor e destacou mais tarde, num simples memorando, a “singular habilidade política” de Carneiro Pacheco, que “Já na mocidade se salientara na sua colaboração com o Rei D. Manuel no estudo dos problemas sociais.”
Nos primórdios de 1908, ainda príncipe, Manuel Maria andava a preparar-se para a admissão à Escola Naval, com os professores Abel Fontoura da Costa, Alexandre Rey Colaço e com o padre Fiadeiro.
Não esqueçamos que D. Manuel II – que um crime de regicídio erguera da sua situação de filho segundo da Casa reinante à de Chefe da Nação Portuguesa – governou apenas desde 6 de maio de 1908 até à República que foi implantada em 5 de outubro de 1910, isto é, menos de dois anos e meio!
Em maio de 1908, foi a Lisboa um numeroso grupo de estudantes monárquicos de Coimbra, dinamizado por Carneiro Pacheco, entregar uma mensagem de saudação ao novo Rei. O tirsense capitaneava um grupo integrado por Fezas Vital, António de Bourbon, Pacheco de Amorim, Eduardo Burnay, Paulo Cancela de Abreu, Reis Torgal, Almeida Braga, Alberto Navarro e outros.
A personalidade do jovem Rei, ainda por desvendar plenamente, revela-nos um homem impreparado, ao que parece e se compreende, que passeava entre o povo, com despreocupações de segurança, noticiando os diários lisboetas, com muita frequência, os passeios do Rei pelas avenidas de Lisboa em carro aberto, a despeito de sérios avisos do chefe do Governo. A sua simpatia era contagiante e todos os políticos dos maiores partidos, condenando o assassinato de Fevereiro, pareciam comungar da perenidade da Monarquia.
Talvez D. Manuel II, inexperiente e quiçá lunático, tivesse imaginado uma República que o livrasse dos entediantes laureados da genealogia, mas conservasse um Rei.
Já vimos que tal é e tem sido possível, desde a Grécia a Espanha, com passagem por África e América latina. Com efeito, o mundo está repleto de monarquias republicanas!
Uma outra faceta do jovem Rei é-nos revelada pelo seu putativo diário íntimo, dado a público em Buenos Aires pelo «La Razón» e na Catalunha pelo «La Publicidad», que chamava à local “Páginas do Diário do Manolo”. O filho de D. Carlos começa o seu registo pelas memórias cruciadoras do regicídio, mas descamba em promessas da coroa a uma “querida e deliciosa” amante alemã, que a rainha D. Amélia pôs secretamente fora de Portugal, desandando o filho pimpolho com uma tremenda descompostura.
A uma amante espanhola o pretenso pássaro-bisnau dava lições de aristocracia: “Porquê pensar que a infidelidade é um pecado? Os reis e os génios têm leis de moral que lhes são próprias, dispensam etiquetas.”
Sobre o regicídio, anota que o comboio real, que vinha de Vila Viçosa, fora sabotado em Casa-Branca, tendo descarrilado, o que provocou um atraso de três quartos de hora, essencial para que se consumasse o crime. Que a culpa da vinda para Lisboa da ilustre família reinante foi da rainha que, se tivesse quebrado uma perna, teria gorado a história pátria e o Buiça.
Pernoitasse em Sintra, Necessidades ou na Tapada de Mafra, sua alteza tinha visões de espíritos. Ficava furibundo, porque nem o criado João os via, nem o próprio sentinela do corredor. Ouvia lamentos e rumores de vozes veladas. O falecido pai, D. Carlos, também lhe aparecia, envergando o uniforme do 5º Regimento de Caçadores.
Confessa, nessas notas íntimas, que não gostava do visconde da Ribeira Brava, do João Franco e, sobretudo, que tinha um rancor enorme ao tredo Afonso Costa – o tal que esperava pelas revoluções dentro dos elevadores – que tachava de medroso, covarde, desvergonhado, “do pior que existe não só em Portugal como em todo o mundo”.
Sobre a situação política, o achado privado delata que o inábil monarca, no Verão de 1910, continha o pensamento: “O povo não crê nos impropérios de Brito Camacho.” “Os meus súbditos são as criaturas mais felizes do mundo. Eu sei como hei de agradar às massas.” “O coronel Couceiro disse-me que os republicanos estão entretendo o povo com contos de fadas. Não há nada em Portugal que me sugira o temor de uma revolução.”
É neste panorama, real ou matizado com cores românticas, que é iniciado o tirsense Carneiro Pacheco.
Em «A Questão Académica de 1907», Seara Nova, Natália Correia – e alhures João Ribaixo – ajudam-nos a viver o ambiente universitário da transição dos séculos, em que o lente (“eis o inimigo!”) era, para a juventude grevista em que militava o próprio filho desnaturado do ditador João Franco, um “farricoco” seguido de “balandraus pretos”, significando que a Universidade tinha uma Sala dos Capelos que, em “atos de alguns licenciandos, se tornava em local de galhofa dos alunos assistentes reagindo a lentes impertinentes.”
Monteverde, em 8 de fevereiro de 1910, informa el-Rei que António Faria Carneiro Pacheco, preparando-se para “defender teses” na Universidade, iria usar os temas da organização do operariado e das suas reivindicações.
O Rei “pondera a utilidade de atrair os socialistas e operários, desviando-os do partido republicano”. Nas palavras do próprio Monarca: “desta maneira vamos desviando o operariado do partido republicano e orientando-o, o que virá a ser uma força útil e produtiva”.
O Socialismo nasceu em França em finais do séc. XVIII, e conseguiu instalar no parlamento gaulês – em resultado das eleições de 1898 – quarenta e seis deputados, sob uma panóplia de veniagas: uns eram socialistas propriamente ditos, outros possibilistas, alemanhistas e outros coletivistas. O comunismo, o mutualismo, o sansimonismo e o fourierismo, eram também socialismos devidamente formatados.
É neste caldo político europeu – adubado com o nihilismo russo e greves violentas, conferências, panfletos, congressos e propostas de reformar sociais – que D. Manuel II pondera cativar os “socialistas” do Reino!
Mas os propósitos, como habilmente escrutinou Carneiro Pacheco, eram o afrontamento do terreno fértil do desenvolvimento da juventude para semear a propaganda republicana.
E aí nada havia a fazer. As equipas em disputa eram muito desequilibradas. Pelos “mestres de Teologia” alinhavam Sobral Cid, Daniel de Matos, João Franco, Ferreira do Amaral, Luciano de Castro, Wenceslau de Lima, Sebastião Teles, Campos Henriques, Teixeira de Sousa, Júlio Vilhena, Pimentel Pinto, José Maria Alpoim, conde de Sabugosa, D. Miguel de Bragança, Almeida Azevedo, Alfredo Aquiles Monteverde, Azedo Gneco, Garcia de Vasconcelos, Gonçalves Guimarães e Oliveira Guimarães.
Pelos “anarquistas do Arsenal” alinhavam: Marnoco e Sousa, Álvaro Vilela, Caeiro da Mata, Francisco Fernandes, Pedro Martins, Mendes dos Remédios, Alves dos Santos, Ângelo da Fonseca, Afonso Costa, Leonardo Coimbra, Guerra Junqueiro, Brito Camacho, Jaime Cortesão, Alexandre Braga, António José de Almeida, Teófilo Braga e Bernardino Machado.
Carneiro Pacheco foi deputado sidonista, por Santo Tirso, em 1918 e Sidónio Pais, o árbitro, foi sacrificado como tal.
Para a Casa Real lusa, a implantação do regime republicano, em 5 de outubro de 1910, não foi um acontecimento inesperado e, para bem o digamos, totalmente indesejado.
Enquanto Vasconcelos Porto, adorado ministro da Guerra, garantia ao jovem príncipe e na cara da revolta gorada de 28 de janeiro de 1908 que tudo estava sossegado e bem, António José de Almeida barregava: “Não faço acordos, não entro em combinações com monárquicos. Sou republicano intransigente nas ideias e sou um combatente que só conhece os homens da sua grei.” Todos atuando em nome da Carta e das suas garantias!
António Jorge Ribeiro