Crítica: 'Três leituras', de Alfredo Bosi Novo livro do autor reafirma papel da crítica como resistência
RIO - Por ter Alfredo Bosi completado 80 anos de vida e 50 de efetivo ofício crítico em 2016, “Três leituras: Machado, Drummond, Carpeaux” pode ser lido como ilustração concentrada de uma obra robusta e consistente, que permanece animada pelo espírito dialético. Ao mesmo tempo, “Três leituras” também pode ser ponto de partida para se conhecer os alicerces reflexivos do crítico, pelas frequências diferentes com que ele visitou os autores listados e pela modesta extensão do volume.
Sobre Machado, Bosi publicou quatro livros exclusivos, e a ele volta analisando “O espelho”, em “O duplo espelho em um conto de Machado de Assis”. A partir de teses positivistas do século XIX, o crítico observa a objetivação do militar Jacobina quando fardado, “a ponto de o alferes ter eliminado o homem” (p. 15). Ao se questionar o lugar do narrador-protagonista na constituição social do sujeito, a observação sobe ao nível da problematização, e a dimensão especular do enredo é desdobrada em dimensão especulativa do narrador-personagem. A ambivalência torna insuficiente o conceito de objetivação, pois o alferes já não é mais homem completamente, mas não deixa de sê-lo por completo. Alfredo Bosi recorre ao conceito de reificação, de extração dialética, porque homem e objeto formaram outro existir, e o encaminhamento interpretativo alcança plenitude quando se analisa a condição existencial do alferes pelo viés etimológico, um traço basilar do trabalho do crítico. Para ele, Jacobina “rendeu-se à perspectiva e à expectativa social, rigorosamente re-signou-se, reiterando e incorporando a si o signo com que o outro o tinha mirado” (p. 20).
Dos três autores, Carlos Drummond de Andrade foi o menos lido por Bosi em trabalhos anteriores, mas comparece agora num texto inédito (diferentemente dos outros dois ensaios, já publicados em revista). “Em torno de um poema de A rosa do povo” relativiza a noção de contexto para o exame literário, afirmando que a expressão de um panorama geral não é prioritária para o poeta: “(...) o contexto que interessa ao intérprete de poesia é o horizonte percebido, sentido e expresso no texto poético” (p. 37). A relativização encaminha a leitura do poema “Visão 1944”, do qual se exploram “contradições lancinantes”, a começar pela formada entre título e verso de abertura de suas vinte e cinco estrofes (“Meus olhos são pequenos para ver”). Alfredo Bosi reitera a necessidade de se ler o poema em voz alta (outro fundamento de seu fazer crítico), para que o ouvido aprofunde o lido: “Sonoridade: nelumbo é afim, como rima interna toante, a mundo, que os olhos pequenos do poeta veem, pasmam e baixam deslumbrados; este adjetivo participial, por sua vez, traz no bojo os mesmos fonemas (um – b) que integram o centro do nome da flor” (p. 50).
“Relendo Carpeaux” elabora um legado intelectual de uma das referências centrais para a formação crítica de Alfredo Bosi, destacando principalmente interpretações marcantes; a elaboração de um método crítico socioestilístico, sensível a convergências e divergências do tempo e do homem na obra literária; e sua oposição à ditadura militar brasileira. Este último destaque é duplamente oportuno, porque enaltece a rejeição ao que deve ser rejeitado e por indiretamente motivar reflexão sobre o que fazer quando há ataques sistematizados à democracia ao mesmo tempo em que fervem apelos às dicotomias (como se dá no Brasil atual). Otto Maria Carpeaux opôs-se à ditadura, mas fez coro com movimentos que culminaram com o golpe civil-militar de 1964, em cuja véspera se publicou o infeliz editorial “Basta!”, do jornal Correio da Manhã, que tinha em Carpeaux um de seus redatores. No ensaio, Alfredo Bosi faz da crítica literária uma crítica à ordem mercadológica e alienante —“A barbárie ronda a nossa civilização” (p. 70) —, e assim reafirma o âmbito resistente da crítica, o que torna seu trabalho pedagógico e necessário, já tão consolidado e ainda novo.
Marcos Pasche é professor de Literatura Brasileira da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ) e crítico literário.