A FILOSOFIA DE SUSAN NEIMAN

A FILOSOFIA DE SUSAN NEIMAN

A filósofa norte-americana Susan Neiman inicia sua especulação, qual Voltaire, a partir do terremoto de Lisboa para mostrar como o mal deixou de ser divino para se tornar criação da humanidade. Ela começa seu estudo, referindo-se ao mal nosso de cada dia..., dando destaque a um texto do poeta Alexander Pope († 1744), que, com o poema “Ensaio sobre o homem”, de 1734, recoloca o problema filosófico acerca do "melhor dos mundos possíveis" (todo o mal leva ao bem do todo), desenvolvido nos “Ensaios de Teodicéia”, de Leibniz, obra de 1710.

Susan Neiman nasceu em Atlanta, Geórgia, USA, em 1955, e estudou filosofia em Harvard, onde recebeu graduação em doutorado em 1986. Na década de oitenta graduou-se na mesma área na Universidade Livre de Berlim.

Em defesa do Criador, quando posto diante da questão da origem do mal, vimos, Leibniz sustenta que o mundo criado por Deus não poderia ser melhor do que este em que vivemos, pois se assim o fosse, se houvesse a possibilidade de um mundo melhor do que este que foi criado, isso entraria em choque com a natureza de Deus.

Até o devastador terremoto de Lisboa em 1755 prevaleceu, segundo Susan Neiman (filósofa com passagem por Harvard, Yale, Berlim e Tel- Aviv, atualmente dirigindo o Einstein Fórum em Potsdam) a visão de males naturais (físicos) como punição para males morais (pecados). O mundo pré-moderno experimentava terremotos e relâmpagos com um medo tal que serviam para reforçar o temor punitivo-religioso. Mas o de Lisboa, com seus 20 mil mortos, ocorreu num contexto de atividade intelectual intensa, e o tremor de dez minutos sincronizado com maremoto que impedia a fuga pelas águas, seguido de incêndio de uma semana que destruiu o resto de um patrimônio incalculável, deixou petrificada a Europa do século XVIII. A cidade teve uma reação igual a do ministro Pombal, que, indagado pelo rei sobre o que poderia ser feito depois do terremoto, respondeu: “Enterrar os mortos e alimentar os vivos”.

Neiman detecta com maestria que a empreitada da modernidade atinge o impasse com o Holocausto. Se a humanidade perdeu a fé na natureza em Lisboa, é provável que tenha perdido a fé em si mesma em Auschwitz, que foi conceitualmente devastador porque revelou uma possibilidade que se esperava não ver: seres humanos comportando-se como demônios. Para Neiman, no entanto, caso pudesse ser provado que alguma coisa em Auschwitz era essencialmente alemã, a vida seria mais fácil. Ao contrário, todas as discussões filosóficas sobre o assunto insistem no ponto de que as condições na Alemanha apontavam não para uma barbárie em que crianças são assassinadas em câmaras de gás, mas para uma genuína civilização.

Lisboa chocou o século XVIII [de uma maneira] como terremotos maiores e mais destruidores não comoveram o século XX. E embora a Guerra dos Trinta Anos [séc. XVII] tenha sido bárbara e devastadora, não deixou seus sobreviventes sentindo-se conceitualmente devastados. Auschwitz deixou. A diferença entre as duas respostas está na diferença entre as estruturas que cada época usou para dar sentido ao sofrimento (In: Neinam, O mal no pensamento moderno, Difel, 2002).

A distinção entre mal natural e mal moral, tão evidente hoje em dia, nasceu com o terremoto e foi alimentada por J. J. Rousseau († 1778), que preconizou que os males não faziam parte da natureza, mas eram uma conseqüência das ações humanas. Certas certezas sucumbiram, depois de Lisboa, sob a suspeita de que havia algum mal radical, numa discussão que envolveu pensadores como Voltaire, projetou Kant e inaugurou o moderno.

Para Neiman, Lisboa marca o nascimento da humanidade, porque o alcance da tragédia exigiu o reconhecimento de que natureza e moralidade são separadas. Como ponto de partida do pensamento moderno, Lisboa aboliu as causas morais, absolveu Deus e os pecados coletivos, e os terremotos passaram a ser vistos como desastres naturais, algo fora da intenção divina ou responsabilidade humana. Explicar o terremoto como processo natural, implicando mais a natureza em si, foi uma forma de tornar o mundo menos ameaçador.

Se antes de Lisboa, os males dividiam-se em questões de natureza, metafísica ou moralidade, depois a palavra mal ficou restrita àquilo que antes era chamado de mal moral. O mal moderno passa a ser um produto da vontade. Como mostrou Freud, um dos objetivos para desencantar o mundo foi resolver o problema do mal natural. Com este reduzido a infortúnios desprovidos de força moral, e o mal metafísico transformado no reconhecimento dos limites que espera-se que todo adulto assuma, o mal no limiar do século XX parecia um problema filosófico no caminho da dissolução.

No problema de Lisboa ainda há um ingrediente de folclore. Há quem vincule ao terremoto, ocorrido no “dia de todos os santos” justamente quando, por motivos não sabidos, a procissão foi transferida. O desastre de Lisboa trouxe de volta discussões sobre o mal, reavivando perguntas do tipo “como pode um Deus bondoso e onipotente criar um mundo com sofrimento?”. Ou, por que coisas ruins parecem acontecer a pessoas boas? Isso sem lembrar que Deus arruinou a vida do pobre Jó para provar sua fé. Susan Neiman mostra que isso ocorre porque algo na essência do mal parece mesmo resistir a explicações. “Designar algo como mau é uma maneira de assinalar que aquilo abala nossa crença no mundo”. O fato é que o terremoto de Lisboa e seus milhares de mortos abalou bastante a argumentação teísta.

Não é surpresa, portanto, que o sofrimento seja um tema tratado por religiosos, filósofos e poetas em nosso tempo. E não é descabido que se tente traçar as linhas gerais do modo como ele tem sido concebido desde que entrou em cena o chamado modo moderno de vida, desde que a racionalidade iluminista reivindicou um espaço para explicar qual é a fonte das dores humanas e, por conseguinte, de seu nexo com o mal. Ou seja, está no escopo de nosso tempo refletir acerca do entrelaçamento entre o sofrimento humano e o papel do mal nesses três últimos séculos; de refletir como esse entrelaçamento foi feito por filósofos, a partir de acontecimentos históricos que lhes exigiram um posicionamento, à luz dos problemas filosóficos com os quais se depararam. Essa é a tarefa a que se propõe Susan Neiman em seu livro aqui aludido.

Susan Neiman possui sete livros editados. O mais notável deles é “Evil in Modern Thought: An Alternative History of Philosophy, 2002, Princeton: Princeton University Press (O mal no pensamento moderno) traduzido para várias línguas no mundo todo.