A beleza e a nostalgia de Marizópolis, no sertão da Paraíba
Desde os primeiros rastros de boiadas no interior do Nordeste até o século XIX, Marizópolis, hoje cidade, não passava de terras devolutas e esquecidas do interior da Paraíba, como tantas outras deste vasto sertão de Meu Deus. O município fica localizado em um imenso relevo, entrecortado bem no meio pela rodovia transamazônica. Por ser o ponto mais alto da região, tornou-se o refúgio dos são-gonçalenses, quando Boqueirão de Piranhas enchia até a tampa e causava assombro e desassossego à população.
Durante o trajeto São Gonçalo-Marizópolis, pela BR-230, olhando para o norte, os transeuntes avistam o descortinar de uma colossal planície, a perder de vista. Linda e grandiosa, a planície não tem começo nem fim. A vista não alcança os seus limites. Detentora de uma natureza quase intocável, com uma exponencialidade singular, desperta fascínio e curiosidade em todos os que cruzam aquela importante rodovia.
Do cume da autoestrada, é possível ouvir o forte silêncio que domina o ambiente, sentir a serenidade do lugar, perceber os redemoinhos produzidos por ventos rasteiros, encandear-se com as fortes rajadas de raios solares que cobrem toda a planície.
Mas aquela chapada nordestina tem dono. É propriedade exclusiva do sertão. Sua população é eclética, contudo pertence a uma única etnia: a caatinga. São seus habitantes a jurema, o pau d’arco, o mandacaru, o pereiro, a aroeira, o angico, a macambira, o marmeleiro...
O horizonte é infinito. Ao fundo, todo pintado de verde folha, o vale é cercado por um conjunto harmônico de serras, cuidadosamente bem desenhadas. Parece uma obra de arte. Na parte superior, um céu azul-celeste com recheio de algumas brancas e esparsas nuvens dão o retoque final no quadro natural da paisagem, para o deleite dos expectadores. E o painel respira vida. No final da tarde, pequenos e inúmeros pontos branco-neve riscam os seus céus. São bandos sincronizados de garças regressando para o aconchego de seus lares, para se abrigarem dos mistérios da noite que se anuncia, após um dia inteiro de trabalho de sol-a-sol.
A paisagem imperecível representa a insurreição da natureza ante o clima, muitas vezes inóspito e viril da caatinga. Uma prova de força, de resistência do sertão, do bravo sertão nordestino, que sempre cismou em ser bem-parecido. E sempre foi. E sempre será...
Aquele mágico panorama se constitui numa verdadeira apologia às belezas naturais da majestosa caatinga nordestina. A visão é magnífica. Um deslumbre para os olhos e coração do sertanejo, um aperitivo emocional para a sua alma. Como são belos os vales deste sertão!
Michelangelo, Da Vinci, Van Gogh, Picasso, Dali, Manet e Rembrandt eram geniais na sua arte, mas não são páreos para Deus.
Na realidade, toda a área geográfica da região de Sousa é completamente cercada por serras bem unidas que, de mãos dadas, abraçam todos os limites do torrão sousense. Os grandes paredões rochosos, vestidos a caráter pela grife da caatinga, produzem um círculo espetacular, uma circunferência mágico-verdejante que envolve todo o maravilhoso vale, transformando-o numa bacia natural.
Como todo povoado que se preze, Marizópolis possui o seu espaço para o descanso eterno, numa parte mais baixa e pobre da localidade, que tornam os seus sepultamentos espetáculos mais tristes e insólitos.
Nas proximidades do tímido cemitério local, os melancólicos e lamuriosos cortejos adentram em uma viela estreita, descendo ladeira abaixo. Na realidade, era um beco íngreme transformado em rua. Em épocas pretéritas, a apertada ruela era formada por casas simples, taperas de barros nanicas e desalinhadas. Alguns moradores saíam às calçadas para prestar homenagens aos extintos. Inúmeras vezes, não sabiam quem era, mas sabiam que era um dos seus. Muitos vieram parar naquele lugar depois que foram expulsos de São Gonçalo, pela modernidade da instalação do perímetro irrigado. O chão esburacado revelava a passagem recente de algumas chuvas. Por outro lado, criminava que o poder público nunca havia andado por lá. No período junino, a comitiva, conduzindo o corpo do morto, tinha que se esquivar dos restos mortais das fogueiras de São João e São Pedro. A rua, demasiadamente estreita, servia para dar impressão de um espetáculo fúnebre lotado.
Embora a rua fosse constituída por casas de pau a pique, já havia umas poucas e atrevidas residências de alvenaria, apesar do reboco áspero, paredes em latente desaprumo e pintura em cal parcialmente anegrejada. Este fato representava muito mais que a transição de um estado de miséria para uma pura condição digna de moradia, ainda que mínima. Significava, sobretudo, uma ação de rebelião contra o descaso e inércia do estado e das próprias intempéries e infortúnios que afligiam o povo esquecido do Nordeste. O flagelo, que teimava em se perpetuar, começava a ser execrado a partir de iniciativa de suas próprias bases.
O cemitério Santo Antonio havia sido construído bem distante do centro do vilarejo cidade e numa baixada de fatigante acesso. Não obstante, com o crescimento urbano, logo se viu arrodeado de ruas, vielas e becos, o que era uma prática comum em muitos e insolentes arruados nordestinos. Quem descesse aquela ladeira deitado com as mãos cruzadas, nunca mais retornaria.
Aquela rua era desprovida de cores, nublada pelo luto, dominada pelo semblante funéreo de suas casas. Jamais saíra de um estado absoluto de quaresma. Seguramente, é a rua mais soturna daquela povoação. A testemunha ocular de todas as mortes, de muitas orfandades, de inúmeras dores, de tantos soluços... Até mesmo nas horas de recesso das madrugadas era possível sentir a fragrância da morte, escutar os sons do adeus, ouvir os lamentos da saudade, presenciar o fraquejar da fé...
Mas alguns residentes até gostavam da vizinhança daquele campo-santo. Sentiam-se privilegiados ao imaginar que seriam sepultados no terreiro de casa, que não precisariam pagar passagem pela última viagem.