Descompassados dias
Por Gustavo Pilizari
Houve um tempo (não faz tanto tempo assim); tínhamos um trato diferente com as coisas da vida. Não era só com os objetos, mas também com a vida e seus significados...
Ofereço aqui, pequenos exemplos para refletirmos:
Ouvir o Rádio era um desses programas em família o qual não podíamos nos atrever a fazer dez coisas ao mesmo tempo; não podíamos perder o precioso momento de união em que sentados na sala, parávamos tudo para ouvirmos uma gutural terrosa voz ou uma sofisticada música tocada “ao vivo” nos estúdios da Rádio (tudo aqui era foco, atenção e respeito com os demais e com o momento).
Ouvir um Vinil no Gramofone, Vitrola ou Toca-Discos exigia do indivíduo destreza e precisão no manuseio. Não era fácil repetir a sua música favorita, existia um compromisso com o Vinil – cuidado, zelo, respeito pela sua fragilidade. Depois de posicionada a agulha no início do Disco, o mesmo deveria ser ouvido do começo ao fim. Para desfrutarmos novamente da mesma música, tínhamos de pegar a agulha e descobrir - pelos microssulcos do vinil -, onde estaria o ponto inicial da canção para assim reposicionar (neste vai e vem da agulha, os riscos na superfície do Disco eram enormes; logo, cuidado, paciência e ordem eram palavras intrínsecas ao processo).
Nestas nostálgicas cenas podemos perceber coisas as quais perdemos na vida atual: silêncio, paciência, disciplina, reflexão, imaginação, dedicação, prudência, tempo, senso de zelo e emoção (existia um pacto entre os ouvintes para que todos, juntos, pudessem se deleitar com tal distração: existia ordem, critério e raridade... havia um compromisso entre indivíduo e a Vitrola para que a mesma não fosse danificada, podendo assim, continuar oferecendo satisfação ao ouvinte).
Existia um Tempo: era necessário dar valor e atenção a este tempo (tínhamos de ser submissos ao momento), pois não podíamos prever quando ouviríamos novamente tal música ou mesmo um noticiário. Não tinha como rebobinar, ouvir noutra ocasião aquela programação ou canção. Havia a noção de regularidade e de continuidade; o rito era parte do processo de preparação para a justificativa da pausa e aura artística.
A ideia de “único”, de “inédito”, de “raridade” era mais presente em nosso intelecto, em nossas atitudes e, em nosso olhar. Tínhamos de viver o momento. E isso era muito bonito!
Nos dias atuais não degustamos a raridade dos instantes: nós esgotamos, consumimos e engolimos os momentos pois sabemos que teremos outros iguais – não haverá falta de novo gozo, logo, preservar sua raridade não faz sentido. Aquilo que temos mais é aquilo que temos pouco!
A contemporaneidade é uma maravilha (não há dúvida); destarte, desde a invenção da Internet, não mais temos o contentamento com as coisas em si, com o momento das coisas e as emoções que os objetos provocam.
Diria que perdemos a sensibilidade e todas as outras qualidades outrora vigentes: paciência, zelo e reflexão, visto que, em nossa época, não temos mais um objeto físico para cuidarmos, tudo está nas “nuvens” ou em algum “site” passivo de ser acessado facilmente e de forma delirante trilhões de vezes (tal processo causa a perda de lucidez, de continuidade, ritmo, expectativa e ordem – tudo ocorre no mesmo angustiante tempo); a falta destas qualidades é responsável por aflorar o mal da modernidade: ansiedade e estresse!
Não precisamos nos reunir frente a um objeto estático para desfrutarmos de alegrias. Não necessitamos proceder a um ritual cansativo de preparação para gozar dos prazeres estéticos - haja vista que tudo o que eu desejo está na Internet - e, mais precisamente, na palma de minha mão: celular. Posso ouvir a mesma canção milhões de vezes; é minha responsabilidade parar a música quando queira ou, sem hesitar, excluir e nunca mais ouvir (a ideia de “excluir” é sinônimo de “eliminar” e, aqui, o termo “eliminar” é prerrogativa de todas as ações: posso eliminar uma música da minha vida ou, de forma virtual, “eliminar” uma pessoa ou coisa).
Nos tornamos singulares em nosso descompasso cognitivo. Não estamos mais presentes em família para ouvir algo que marcaria nossa percepção estética; não precisamos mais sentir a gostosa sensação da “espera” por algo raro.
Tudo está ai ao mesmo instante e, na atualidade, temos “ruídos” e “barulhos” na esfera pessoal, interpessoal e frente aos objetos da vida. Tudo o que vem fácil, vai fácil (e nesse ínterim, nem sabemos o que passou), pois temos o poder de parar, adiantar ou repetir freneticamente algo que poderia ser degustado e não engolido.