Eu, estudante
Deixei a escola em 1977, quando tinha dezesseis anos e cursava o segundo ano do segundo grau numa escola pública, hoje correspondente ao “Ensino Médio”.
Iniciei minha convivência escolar no Jardim de Infância com uns quatro anos, quando me lembro de minha mãe que, sentada ao meu lado numa das pequenas cadeiras das mesinhas que ocupavam a sala apinhada de outras crianças com suas mamães, se quedara junto delas pra esperar que seus filhos e filhas se adaptassem as suas novas condições de estudantes; e mais: a não terem suas progenitoras por perto, ou qualquer outro membro de suas famílias, em primeiros exercícios de independência familiar.
Mas até que isso acontecesse, minha mãe e as outras mães passaram alguns dias por perto a observarem as reações de seus filhos e filhas, tendo logo que se mostrarem de volta ao consolo dos chorões que – como eu – abriam o berreiro ao perceberem que suas mães os “abandonaram” ali.
Passado período de adaptação da ausência de mamãe, veio o longo (e insuperável) período de adaptação ao universo escolar, cujo constante aprendizado compulsório exigia de nós – como ainda exige – uma boa dose de paciência à audição das instruções de professoras e professoras que raramente pareciam dizer algo interessante, quer pra mim ou para a maioria de meus colegas. Porque passávamos pelas tais ansiosos por ouvir o toque da sirene que nos liberaria ao intervalo; ou quando anunciava o fim das aulas do dia, principalmente se era sexta-feira; ou quando determinava o início das férias e, mais ainda, o fim do ano letivo. Porque, fora as “longas” horas de aulas, também tínhamos que enfrentar as investidas perversas dos maus colegas e as humilhações com as quais nos presenteavam ora as meninas – que debochavam de minha magreza, minhas pernas finas e minhas esquisitices – ora dos professores, tendo um me reprovado em Matemática por causa de meio ponto a menos em minha média final, fazendo-me repetir toda a oitava série!
No geral, era “bom aluno”, embora mais por meu comportamento na sala de aula do que por tirar notas altas, uma vez que muitas vezes fingindo estar realizando tarefas de classe – que, dependendo do que fosse, realizava rápido – punha-me depois secretamente a fazer desenhos e escrever “poesias”; daquelas cujo interesse primário é jogar de buscar palavras que formassem rimas com palavras semelhantes, sem que muito me importassem seus conteúdos.
Entre mudanças de escolas, de séries e de turmas eu raramente pude conservar a amizade entre colegas estudantes, estando ainda rendendo a amizade que fiz com o jornalista Gilson Renato, que estudou comigo no Estadual do ABC, no bairro de Jaguaribe (em João Pessoa, Paraíba, onde nasci em 1961), e sempre fora a minha casa depois das aulas para ver meus desenhos, ouvir música e conversar, já que eu morava em frente da escola onde estudávamos – e de onde um dia saí para casa na hora do intervalo para, com apoio de meu pai, nunca mais retornar.
A despeito de ter sido criticado por sua atitude “irresponsável” para comigo, meu pai era homem culto. Inicialmente autoditada, amante da Cultura e suas artes, particularmente apreciador das artes plásticas, da Música e da Literatura, ele formou-se em Literatura Inglesa (não deixando de querer aprender e ter aprendido outros idiomas, como o francês, o alemão e o italiano, tendo se interessado pelo japonês), tendo sido convidado pelo amigo Virgínius da Gama e Melo para ser um dos professores da Faculdade de Filosofia, antecessora da Universidade Federal da Paraíba (ou da “Fundação Virgínius da Gama e Melo”), tendo sido professor fundador do Curso de Educação Artística.
Por experiência própria, tanto como inicialmente um autodidata como por sua convivência comigo – e, mais, com a Universidade – ele sabia que me forçar a ir para escola não me oportunizaria o prazer de aprender muito do que, de fato, eu não aprenderia. Porque no máximo, graças à necessidade de “passar de ano” – e às torturas a que eu era submetido por minha madrasta, que naturalmente se impacientava com minha “preguiça mental” quando tentava me auxiliar em meus deveres de casa escolares – eu apenas decoraria ensinamentos que, depois de vencidas primeiras etapas acadêmicas, eu fatalmente esqueceria, como aconteceu e como acontece com todos. Pois, sabia ele, o melhor pra mim (embora não necessariamente para que me engajasse num bom emprego futuro) era que passasse os primeiros anos de minha adolescência com a liberdade de fazer as escolhas que me proporcionassem o encontro comigo mesmo; ou, por outro lado, que me auxiliassem a construção daquele que, bom ou mau, fui capaz de ser até aqui.
E que eu fosse “bom, pelo menos, à realização de uma coisa”.
O que fiz, então, usando de minha liberdade de escolha não o decepcionou, pois, ao contrário de outros garotos – que não iam ou fugiam da escola para estarem se aventurando em descobertas dos prazeres e perigos do mundo, o que também fiz – resolvi que depois de ler partes do Velho Testamente e todo o Novo, buscaria ler os livros de sua vasta biblioteca que, a partir de seus títulos e capas, me atraíssem o interesse, já que pouco sabia sobre a produção de seus autores, tendo sido alguns indicados por meu pai; desde livros de Poesia, de contos, novelas, romances, ensaios e textos teatrais a tratados científicos e filosóficos sobre as mais variadas questões que abordam os mistérios da Existência, embora tenha me debruçado à leitura de poucas obras nacionais e muitas orientais, sentindo particular ojeriza por clássicos regionalistas os quais, muitas vezes utilizando linguajar arcaico e abordando temas e valores de épocas passadas, não me contavam sobre nada que me estimulasse o interesse.
Dessa forma, entre exercícios de Desenho, Pintura, Literatura e Cinema eu vivi quase uma década dedicado aos impulsos de aprendizados autodidatas, tendo sido algumas vezes provido de recursos para tanto e orientado por meu pai – tendo feito depois provas do Supletivo de Segundo Grau e o vestibular num mesmo ano, motivado por uma tia materna que, então com cinquenta anos, decidira fazer o vestibular para cursar Psicologia; não apenas por necessidade de ascensão profissional, mas também para me estimular a “não desperdiçar” meus talentos negligenciando a possível obtenção de um ou mais diplomas que me garantissem possibilidades de mais seguros engajamentos trabalhistas e bons salários; segundo ela (e a maioria), “o mais importante a conquistar na vida”.
Tendo sido aprovado no Supletivo e no vestibular, não me foi naturalmente possível optar por outro curso senão os oferecidos pelas Humanidades, sendo o extinto curso de “Educação Artística” fundado por meu pai o meu escolhido. Mas, depois de quase dez anos estudando obras filosóficas por vontade própria, mais particularmente as que tratam da Estética, a despeito de ter tido o privilégio de receber instruções de professores como Gabriel Bechara, Maria Das Graças Santiago, Jomard Muniz de Brito, Silvino Espinola e Erinaldo Alves Do Nascimento, entre outros e outras – tendo tido meu pai como meu professor particular – em geral me sentia como se estivesse de volta a uma espécie de “curso primário”, uma vez que, em casa, recebera já formação superior, tendo mesmo escrito artigos e iniciado produção de ensaios, poemas e contos, os quais, revisados e aprovados por meu pai, eram publicados em revistas e jornais da cidade; como o Correio das Artes – suplemento literário do jornal A UNIÃO, onde são também publicados ainda hoje.
Dessa forma, entre o cansaço de ter compulsoriamente que rever muito do que já sabia por longas duas ou três horas sentando numa sala desconfortável e calorenta, a periódica falta de professores e de suas justas greves por melhores condições de trabalho e salário – além da necessidade de reconquistar meu tempo à continuidade de minhas produções – terminaram por me desmotivar a conclusão do curso e buscar o engajamento em empresas que, precisando de talentos como os meus, pudessem não apenas me proporcionar mais conhecimentos como um tanto da independência financeira de que precisava. E então, abandonando a Universidade, fui trabalhar em agências de publicidade e emissoras de TV, tendo estado Diretor de Arte na extinta agência Shorin e, depois, membro do Departamento de Arte da 9Ideia – de propriedade do jornalista, poeta e publicitário Lucas Sales, que conheci em Campina Grande enquanto colega de trabalho na TV Paraíba.
Foi em agências de publicidade que descobri meu lado publicitário, tendo dado contribuições para campanhas e mesmo projetado alguma, ao mesmo tempo em que apreendia a usar os recursos do programa gráfico Photoshop, os quais me servem até hoje e que, em minha época de estudante universitário, não poderia ter aprendido na Universidade, entre outros muitos aprendizados impossíveis de serem adquiridos numa sala de aula; como os apreendidos quando exercitei função de Coordenador de Programação da TV Paraíba, emissora filiada à Rede Globo – para onde fui convidado a ir para um estágio de seis meses em São Paulo, depois que os técnicos da Rede Globo, que nos treinavam, descobriram meus talentos.
A questão de por que não quis ir pra lá é outro assunto.
Ainda sobre atuações no universo audiovisual, enquanto Funcionário da Prefeitura de João Pessoa fui convidado a produzir, dirigir e apresentar o programa Quadro a Quadro, gravado e emitido pela municipal TV Cidade João Pessoa, então sob direção do jornalista Walter Galvão, prioritariamente destinado a divulgar produção de artistas visuais paraibanos, fossem quadrinistas, ilustradores, cineastas ou produtores de vídeos, além de realizar entrevistas com educadores e outros profissionais ligados à arte-educação e outras áreas do conhecimento – embora paralelamente nunca tenha deixado de produzir minhas próprias obras, fossem desenhos, pinturas, fotografias, artigos, contos, romances ou Música.
Mas isso depois que fui Chefe de Divisão de Arte e Música da Secretaria Municipal de Educação – onde sou lotado – embora tenha lá vivido dividido entre o prazer de receber muitos parabéns por meus trabalhos por parte de muitas (até então) desprezadas professoras de Artes das escolas municipais e o desprazer de ser criticado por burocratas acadêmicos, que exigiram “minha cabeça” por falta da diplomação acadêmica que me daria direito legal ao exercício da função, aos quais escrevi um comentário de cinco laudas dizendo o que penso sobre o valor de diplomas como atestados de competência profissional.
Depois de ter assistido muitas aulas sobre as conquistas e avanços de sistemas de ensino e seus muitos estilos, de ter participado de várias conversas sobre Educação, assistido palestras sobre o tema e de mesmo ter dado algumas, numa recente postagem in facebook escrevi:
“Os parâmetros que fundamentam meus ideais de conteúdos e formas da reestruturação do dinamismo didático-pedagógico à realização de nossa plena educação (humana) é de outro planeta! Só pode ser”, porque não creio ser possível que meus desejos de arte-educador – ou, mais apropriadamente, de artista-educador – sejam realizados; pois, para que se realizem, seria necessário que professores e professoras de todas as disciplinas em todos os níveis do ensino fossem também artistas-educadores, sendo imprescindível, para tanto, que também fossem intelectuais, o que nem sempre um artista é ou está disposto a se tornar, não sendo preciso para se ser um artista que se seja um intelectual, embora seja imprescindível que se seja um intelectual – assim como perspicaz observador e experimentador da vida cotidiana – a ser considerado um bom professor ou uma boa professora.
Pois é muito difícil aprender sem o prazer que o lúdico-artístico trás embutido em sua pretensão de abordar e repassar questões “sérias”. Porque, mesmo para quem não tem um natural interesse pela aquisição de conhecimentos, mais que os rigores da disciplina e sisudez dos sábios o aprendizado pode mesmo ser administrado “goela abaixo” do estudante; ou seja: de fora pra dentro.
Desde que o que ele vai engolir tenha, antes de tudo, o inequívoco sabor da alegria.