OS LIVROS QUE NÃO LEMOS
– Você já leu todos esses livros?, volta e meia pergunta algum operário ou jornalista que vem à minha casa.
A resposta pode ser variada, tipo: “Li esses e muitos que não estão aqui” ou: “Há livros que são para consulta eventual, outros que aguardam sua hora, outros que não lerei, alguns que nem lembro se li, outros que comprei de novo, pois nem me lembrava de tê-los”.
Pois outro dia, em Paris, comprei um livro com esse título intrigante: Como falar de livros que não lemos? (Edition de Minuit). Essa pergunta de Pierre Bayard torna-se mais inquietante porque cresce angustiantemente o número de livros que não lemos.
Há um conto de Cortázar em que ele fala que os livros se esparramaram pelas ruas e inundaram oceanos.
Drummond, num poema, pedia para não lhe mandarem mais textos porque não tinha sequer lido os anais de Assurbanipal e, não tendo esgotado os clássicos, como chegar aos modernos? A coisa piora quando se é escritor, pois há os que temos que escrever e os que sabemos que não escreveremos jamais.
Há, portanto, um remorso progressivo quanto aos livros por ler. Quem tem que fazer ou orientar tese vive em pânico, porque não se pode mais controlar a bibliografia do aluno. Já propus criarem até a profissão de leitor, alguém que leia para a gente e faça um resumo do que há de importante. É uma profissão de futuro, garanto. Aliás, um médico pesquisador me confessou que tem uma equipe de leitores para garimpar textos para ele.
Enfim, a tese de Pierre Bayard é que somos mais não-leitores do que leitores. É um aspecto que andava meio escamoteado nas questões da leitura.
Pois há diversas espécies de não-leitores, mesmo entre escritores. O próprio Bayard confessa descaradamente que não leu Ulisses, de Joyce. Defende a tese de que podemos ter noção de certas obras sem lê-las. Assim, passamos a ter noção de uma certa “biblioteca coletiva”. Analisando, por exemplo, a obra de Paul Valéry, concluí que esse verdadeiro guru da cultura francesa lia pouco. Como prova, refere-se ao fato de que Valéry escreveu um ensaio sobre Proust, embora tivesse lido só um volume de Em busca do tempo perdido. E acrescenta que o mesmo Valéry, ao entrar para a Academia Francesa, foi capaz de fazer o discurso de saudação ao antecessor – Anatole France – sem mencionar um livro sequer desse autor. Aliás, nem lhe mencionou o nome, embora o elogiasse vagamente.
Entre as espécies de não-leitores, ele cita o bibliotecário do romance O homem sem qualidades, de Musil. Desfilando diante de mais de 3 milhões de livros sob sua guarda, confessa que nunca lera qualquer livro que fosse. Sua tarefa era catalogálos, não lê-los. É a situação inversa à de Borges na sua imaginária “biblioteca de Babel”, onde, de tanto ler, já não sabia se era leitor ou escritor. Em geral, somos feitos de “livros de que ouvimos falar”. Existia, já antes da internet, uma biblioteca virtual coletiva que orientava as pessoas sem que elas tivessem lido Homero, Dante, Balzac, Dostoiévski e Kafka. Nesse universo de livros abstratos, algumas obras inexistentes tornaram-se famosas, como a Comédia, de Aristóteles, de que trata O nome da rosa, de Umberto Eco. Dizem que o livro se perdeu na Antigüidade, mas é em torno dele que acontecem crimes no romance de Eco. Aliás, dizem que Homero e Shakespeare também não existiram. Bom, esse seria um outro capítulo que o autor daquele livro poderia escrever: autores prováveis, improváveis e anônimos. O escritor Manuel Graña Etcheverry escreveu a incrível história da literatura de um povo que nunca existiu, os Hedes, ressaltando seus críticos e autores principais.
Dizem alguns sábios que esquecer é uma arte. Que, se tivéssemos tudo presentemente fervilhando na cabeça, seria um tormento insuportável. De certa maneira, Pierre Bayard faz até o elogio do esquecimento, quando menciona que Montaigne afirmava nem se lembrar dos livros que lera. E gostava disto. Sem esse “esquecimento”, aliás, ninguém vira autor. Gente que vive citando os outros acaba não tendo “redação própria”. Há que digerir e ir em frente. Já dizia Valéry que o lobo é a soma dos cordeiros assimilados.
Há nessa obra de Bayard, no entanto, algo ambíguo e perigoso. Preocupado em tirar nosso complexo de culpa diante dos livros não lidos, ele acaba fazendo o elogio da não-leitura. Chega a ver como criativo o aluno que “inventa” o livro que não leu. Incentivar esse tipo de “criatividade” é diferente de incentivar a arte da “interpretação”. O nãoleitor não é igual ao leitor relativo. Convenhamos, não é não-lendo que se lerá.
Affonso Romano de SantAnna