NIETZSCHE E A GENEALOGIA DA MORAL
Houve uma época em minha vida que foi de descoberta dos chamados "malditos" da cultura ocidental. Era muito jovem, talvez nem tivesse ainda 18 anos, mas já estava a ler Antonin Artaud e o seu teatro da crueldade, em uma edição da L&PM denominada "Rebeldes e Malditos" e tantos outros, como Edgar Alan Poe, Baudelaire, etc; era os idos dos anos 80 e estava deslumbrado com O PT, o marxismo e as ideias de Nietzsche e Sigmund Freud. Tinha um amigo meu professor de história de uma universidade que era leitor voraz de Friedrich Nietzsche (1844-1900) , foi ele o primeiro a me falar sobre esse filósofo que tanto influenciou o pensamento moderno. Alias diz-se que Nietzsche, Freud e Marx, esses dois últimos judeus, são os alicerçes da modernidade. O primeiro livro que ganhei de Nietzsche me foi dado por este amigo, era uma edição de bolso de capa vermelha intitulado “A genealogia da moral”, não me lembro a editora, ah me lembro era da Cutrix, quando ele me presenteou me disse que era um filósofo alemão ''demolidor' da cultura ocidental e de suas tradições calcadas nos valores judaico cristãos. Falou-me da "morte de Deus" e da transmutação dos valores morais e do super-homem, ou além-homem, confesso que fiquei assombrado com tudo aquilo, mas peguei o livro e naturalmente o li sem pestanejar, pois tudo que era polêmico e me inquietava queria conhecer, coisa de jovem curioso, mesmo que isso implicasse em correr perigos. Nietzsche é daqueles autores que além de dominar a escrita com maestria é um psicólogo da alma humana. Sua escrita é persuasiva e tem uma força de atração muito grande. Quando li os primeiros capítulos confesso que um universo novo se abriu para mim porque até então meu sistema moral, filosófico e metafisico estava calcado na ideia de Deus e nos evangelhos, pois sou de uma família católica. A leitura do polêmico filósofo me mostrou outros horizontes que até então não havia vislumbrado. A Genealogia da Moral (1887) é em minha opinião o livro capital de Nietzsche, claro que há opiniões divergentes já que há outros escritos tão importantes quanto este como Assim Falou Zaratustra, Humano demasiado humano, A Gaia Ciência e outros tantos. Mas a Genealogia da Moral, a meu ver, explicita bem o pensamento do filósofo. Mas qual é esse novo horizonte de que falei? É exatamente essa crítica demolidora a cultura judaica cristã e todo o seu sistema de valores que o filósofo bigodudo denominará de "decadentes" que está em questão. Nietzsche fala da doença do homem ocidental, dos valores arraigados como unha e carne em nosso ser mesmo que inconsciente, esses valores teriam raízes na moral do rebanho que tem como datação histórica a penetração do cristianismo na civilização romana. É a partir desse momento que Nietzsche passa a identificar toda uma civilização de rancorosos e decadentes que se contrapõe a cultura e as tradições dos antigos calcados em valores não morais, mas em códigos de honra baseado na força dos fortes sobre os fracos. É a moral do individuo nobre se contrapondo a "moral dos escravos", a moral do ressentido, ou seja, para ser feliz precisa comparar-se a outro sujeito que lhe é diferente, que lhe é superior. Forma-se uma negação de valores, ou seja, de início, não é ele que é bom, mas são os valores do nobre que são maus (exercício do pensamento ressentido), e desta inversão de valores, e após negar a bondade no nobre, o colocará como mau, pois; “eu que sou inferior e fraco é que sou bom”, ele que é forte “é mau, pois me inferioriza”. O cristianismo vem e perverte esses valores e transforma os homens de ação em homens doentios e rançosos, que ao invés de se lançar no mundo e fazer sua história agora agem e pensam segundo uma moral do rebanho que se contrapõe a moral aristocrática de outrora. Essa doença acabou por minar as forças psíquicas criadoras de modo a recalcar e reprimir a energia vital dos indivíduos e acabou por causar neuroses, auto repressão, o medo e a doença que desembocará no niilismo. Segundo Nietzsche a transmutação do homem valoroso num ser ressentido começa quando o ódio a tudo que é criativo torna-se uma moral, ou seja, um conjunto de valores que se traduziram em códigos de éticas e condutas sociais. Nietzsche fala de uma qualidade muito esquecida pelos homens plebeizados e arrebanhados dos nossos dias, a qualidade de berrar de esbravejar, ele também identifica a oficina onde se constrói o ideal, sejam eles religiosos ou políticos, e nesse particular faz uma critica contundente aos paraísos artificiais de Platão, sobretudo a República, e as promessas de paraísos extraterrenos feitos pela religião judaico-cristã, diz Nietzsche "... ar, ar, essa oficina onde se constrói o ideal me cheira a embuste e a mentira". Nesse contexto nega-se a vida como atividade criativa e volta-se para uma promessa futura a se realizar. Confesso que depois que li a genealogia da moral não consegui mais acreditar no cristianismo e nem no marxismo. Percebi que depois da minha "queda" o que me restava era pensar o mundo e me posicionar diante dele não mais a partir de crenças metafisicas ou ideologias que prometem mas não cumprem suas promessas e assim me tornei um individuo mais realista e menos idealista. Mas confesso ainda que foi muito duro partir agora sozinho sem nenhum sistema de crenças que me amparassem, e me dessem sossego, não havia mais verdades absolutas e me restava apenas os clarões das incertezas. Confesso também que saiu das minhas costas o peso da culpa e do pecado, agora caberia a mim um jovem de pouco mais de 19 anos, encarar a vida em sua crueza trágica e sua beleza cômica, tentando ser um individuo singular e não mais um membro da manada. Até hoje Nietzsche tem tido muita influência sobre mim, embora com o passar dos anos alguns aspectos do seu pensamento tenham sido superados. Mas enfim, o que resta nesta nossa breve vida por este mundo que exige de nós tantos papéis e jogos de máscaras que a todo custo quer nos homogeneizar é se rebelar contra o instituído e sempre me vem à mente as palavras do filósofo que nos instiga a lembrar daquela qualidade hoje esquecida que é a de esbravejar e ruminar. É esse aspecto seminal do pensamento de Nietzsche que ainda me inspira.