Diversão e reflexão
O computador, anulando distências e apagando o tempo, permite que um emissor longíquo, com diferência de segundos, faça chegar até nós mensagens comunincando o resultado das pesquisas de um certo cientista japonês. Nela fica demonstrado que determinados sons, palavras, pensamentos, sentimentos alteram a estrutura molecular da água. Como a composição de nosso corpo é em grande parte composta de água, conclui a mensagem que boa regra de vida é manter sempre bons sentimentos, desejos de paz e amor, evitando qualquer sentimento poluído de conteúdos negativos.
É só sair do computador e a TV nos oferece imagens que vão do trágico - catástrofes, desastres, mortes, guerras de toda a ordem - a lúdicas demonstrações de beleza, jogos e conquistas amorosas, entremeados de astuciosas e requintadas propagandas. Numa linearidade de indiferene e cínica somos mergulhados em um horizonte poluído por uma avalenche de imagens: um gol de Ronaldo, a dor da morte de uma estrela da TV, um gráfico demonstrando a fuga de capitais, sem faltar o schow dos espetáculistas em marketing.
Essa velocidade e o caráter imediato da comunicação, aliados ao culto da exibição avassaladora de imagens deixam pouco lugar à reflexão. Reflexão que nos poderia levar a perguntar por uma gritante contradição. De um lado, o elogio e a confiança cega nas descobertas da ciência, de outro lado, a equalização das boas e más consequências do inusitado e perturbador aparecimentos do homem sobre a terra.
A primeira simplica a tarefa ética ocultando as inevitáveis contigências a que o espectador está submetido, confundindo valores com dados da realidade e retirando do sujeito a liberdade e responsabilidade pela ação. No rol de notícias e imagens descartáveis, o fato humano perde, então, seu sentido, em nada implicando o espectador que simplesmente deixa o tempo passar e, por vezes, até se diverte.
A palavra é correta: divertir. Divertir significa "apartar-se da realidade". Nada de converter-se, ter algo a haver com a coisa dada em espetáculo.
Mais triste ainda ocorre quando se faz dessas meias verdades das imagens toda verdade, tornando-se partidário de uma divinização profana da natureza, isto é, da crença em um naturalismo ingênuo e reducionista. Ingênuo porque parece esquecer o negativo igualmente presente na natureza, sua força destruidora e indomável: ainda ontem uma tsumani. Reducionista porque faz da história humana uma variante das leis da natureza.
Diante de tudo isso, a cultura contemporânea reclama de cada cidadão e toda a sociedade uma nova maneira de pensar. Nova maneira de pensar que ultrapasse o naturalismo que ressurge hoje a partir das conquistas da ciência, sobretudo no que concerne à chamada natureza humana. Certamente o velho Aristóteles, século 4 a C. se vivesse hoje, concordaria com seu colega filósofo do século 21, e subscreveria a tese: "Não há natureza humana na qual se possa repousar".
O homem é um acontecimento, uma invenção, para tanto lhe dada a liberdade de criar e amar. Liberdade pela qual ele deve se responsabilizar, tornando-se sujeito face à outros sujeitos na sociedade dos homens.
Certo, não se pode negar que a liberdade representada no desejo de saber, motor das pesquisas científicas e no desejo de amar são atributos maiores da existência do homem.
Todavida, nada menos absoluto que o exercício da liberdade presente nesses dois atos. Nem sempre liberdade de pesquisar significa direito de pôr em prática o conhecimento conquistado. E, acerca do laço liberdade e amor, por ser irmão da contingência, nada mais precisa ser dito.
José de Anchieta Correia
Filósofo, professor universitário e escritor
(Tive a felicidade ser aluno do Professor Anchieta na UFMG)