HEGEL
Georg Wilhelm Hegel nasceu em Stuttgart em 27 de agosto de 1770, filho de um funcionário do governo do duque de Württemberg. Ele foi educado na Royal Highschool em Stuttgart 1777-88. Em outubro de 1788 Hegel começou a estudar em um seminário teológico em Tübingen, a Tüberger Stift, onde ele fez amizade com o poeta e filósofo Friedrich Hölderlin Schelling. Em 1790 Hegel recebeu um mestrado, um ano após a queda da Bastilha na França, um evento acolhido por estes jovens estudantes idealistas. Pouco tempo depois da formatura, Hegel tomou um cargo como tutor para uma rica família suíça, em Berna 1793-96. Em 1797, com a ajuda de seu amigo Hölderlin, Hegel mudou-se para Frankfurt para assumir outra tutela. Durante esse tempo ele escreveu ensaios inéditos sobre religião que mostravam,já naquele momento, uma certa tendência radical de pensamento em sua crítica da religião ortodoxa.
Em janeiro de 1801, dois anos após a morte de seu pai, Hegel deixa a tutoria e vai para Jena, onde assume o cargo de Privatdozent (conferencista não-assalariado ou livre-docente) na Universidade de Jena, onde Schelling já havia realizado uma cátedra universitária por três anos. Hegel colaborou com Schelling em um jornal, Crítica da Filosofia (Kritisches Jornal der Philosophie) e também publicou um artigo sobre as diferenças entre as filosofias de Fichte e Schelling (Differenz des Fichte'schen und Schelling'schen Sistemas der Philosophie) no qual expressa de modo consistente sua preferência pelo último pensador. Depois de ter atingido um cargo de professor em 1805, Hegel publica sua primeira grande obra, a Fenomenologia do Espírito (Phänomenologie des Geistes, 1807) que foi entregue à editora justamente na época da ocupação de Jena pelos exércitos de Napoleão. Com o fechamento da Universidade, devido à vitória do francês na Prússia, Hegel teve que procurar emprego em outro lugar, aceitando então um emprego como editor de um jornal em Bamberg, Bavaria, em 1807 (Die Bamberger Zeitung), seguido de um deslocamento para Nuremberg em 1808, onde se tornou diretor de uma escola preparatória (Gymnasium), equivalente a uma escola secundária, e na filosofia também lecionou até 1816. Durante esse tempo, Hegel se casou, teve filhos, e publicou seu Science of Logic (Wissenschaft der Logik) em três volumes.
Um ano após a derrota de Napoleão em Waterloo (1815), Hegel assumiu o cargo de Professor de Filosofia na Universidade de Heidelberg, onde ele publicou sua primeira edição da Enciclopédia das Ciências Filosóficas em Contorno (Encyklopädie der philosophischen Wissenschaften im Grundrisse, 1817 ). Em 1818 tornou-se professor de Filosofia na Universidade de Berlim, através do convite do ministro von Altenstein Prussion (que introduziu muitas reformas liberais na Prússia até a queda de Napoleão), e Hegel ensinou lá até sua morte em 1831. Hegel lecionou sobre vários temas de filosofia, principalmente em história, arte, religião e história da filosofia e tornou-se bastante famoso e influente. Ele ocupou cargos públicos como membro da Real Exame Comissão da Província de Brandenberg e também como um vereador no Ministério da Educação. Em 1821 ele publicou a Filosofia do Direito (Philosophie des Rechts) e em 1830 foi dada a honra de ser eleito Reitor da Universidade. Em 14 de novembro de 1831 Hegel morreu de cólera em Berlim, quatro meses depois de ter sido condecorado por Friedrich Wilhelm III da Prússia.
O IDEALISMO LÓGICO
Georg Wilhelm Hegel nasceu em Stuttgart em 27 de agosto de 1770, filho de um funcionário do governo do duque de Württemberg. Ele foi educado na Royal Highschool em Stuttgart 1777-88. Em outubro de 1788 Hegel começou a estudar em um seminário teológico em Tübingen, a Tüberger Stift, onde ele fez amizade com o poeta e filósofo Friedrich Hölderlin Schelling. Em 1790 Hegel recebeu um mestrado, um ano após a queda da Bastilha na França, um evento acolhido por estes jovens estudantes idealistas. Pouco tempo depois da formatura, Hegel tomou um cargo como tutor para uma rica família suíça, em Berna 1793-96. Em 1797, com a ajuda de seu amigo Hölderlin, Hegel mudou-se para Frankfurt para assumir outra tutela. Durante esse tempo ele escreveu ensaios inéditos sobre religião que mostravam,já naquele momento, uma certa tendência radical de pensamento em sua crítica da religião ortodoxa.
Em janeiro de 1801, dois anos após a morte de seu pai, Hegel deixa a tutoria e vai para Jena, onde assume o cargo de Privatdozent (conferencista não-assalariado ou livre-docente) na Universidade de Jena, onde Schelling já havia realizado uma cátedra universitária por três anos. Hegel colaborou com Schelling em um jornal, Crítica da Filosofia (Kritisches Jornal der Philosophie) e também publicou um artigo sobre as diferenças entre as filosofias de Fichte e Schelling (Differenz des Fichte'schen und Schelling'schen Sistemas der Philosophie) no qual expressa de modo consistente sua preferência pelo último pensador. Depois de ter atingido um cargo de professor em 1805, Hegel publica sua primeira grande obra, a Fenomenologia do Espírito (Phänomenologie des Geistes, 1807) que foi entregue à editora justamente na época da ocupação de Jena pelos exércitos de Napoleão. Com o fechamento da Universidade, devido à vitória do francês na Prússia, Hegel teve que procurar emprego em outro lugar, aceitando então um emprego como editor de um jornal em Bamberg, Bavaria, em 1807 (Die Bamberger Zeitung), seguido de um deslocamento para Nuremberg em 1808, onde se tornou diretor de uma escola preparatória (Gymnasium), equivalente a uma escola secundária, e na filosofia também lecionou até 1816. Durante esse tempo, Hegel se casou, teve filhos, e publicou seu Science of Logic (Wissenschaft der Logik) em três volumes.
Um ano após a derrota de Napoleão em Waterloo (1815), Hegel assumiu o cargo de Professor de Filosofia na Universidade de Heidelberg, onde ele publicou sua primeira edição da Enciclopédia das Ciências Filosóficas em Contorno (Encyklopädie der philosophischen Wissenschaften im Grundrisse, 1817 ). Em 1818 tornou-se professor de Filosofia na Universidade de Berlim, através do convite do ministro von Altenstein Prussion (que introduziu muitas reformas liberais na Prússia até a queda de Napoleão), e Hegel ensinou lá até sua morte em 1831. Hegel lecionou sobre vários temas de filosofia, principalmente em história, arte, religião e história da filosofia e tornou-se bastante famoso e influente. Ele ocupou cargos públicos como membro da Real Exame Comissão da Província de Brandenberg e também como um vereador no Ministério da Educação. Em 1821 ele publicou a Filosofia do Direito (Philosophie des Rechts) e em 1830 foi dada a honra de ser eleito Reitor da Universidade. Em 14 de novembro de 1831 Hegel morreu de cólera em Berlim, quatro meses depois de ter sido condecorado por Friedrich Wilhelm III da Prússia.
Com o idealismo absoluto de Hegel, o idealismo fenomênico kantiano alcança logicamente o seu vértice metafísico. Hegel fica fiel ao historicismo romântico, concebendo a realidade como vir-a-ser, desenvolvimento racionalizado por Hegel como processo dialético, circular, emanentista.
Como a filosofia de Spinoza, a de Hegel é uma filosofia da inteligibilidade total, da imanência absoluta. A razão, aqui, pretende ser não apenas, como em Kant, o entendimento humano, o conjunto dos princípios e das regras segundo as quais pensamos o mundo. Ela igualmente se arroga à realidade profunda das coisas, a essência do próprio Ser. Ela é não só um modo de pensar as coisas, mas o próprio modo de ser das coisas: "O racional é real e o real é racional". Podemos, portanto, considerar Hegel como o filósofo idealista por excelência, uma vez que, para ele, o fundo do Ser (longe de ser uma coisa em si inacessível) é, em definitivo, Idéia, Espírito. Seu sistema tenta representar, ao mesmo tempo, com relação à crítica kantiana do conhecimento, um retorno à ontologia. É o ser em sua totalidade que é significativo e cada acontecimento particular no mundo só tem sentido finalmente em função do Absoluto do qual não é mais do que um aspecto ou um momento.
Hegel porém se distingue de Spinoza e surge para nós como um filósofo essencialmente moderno, pois, para ele, o mundo que manifesta a Idéia não é uma natureza semelhante a si mesma em todos os tempos, que dizia que a leitura dos jornais era "sua prece matinal cotidiana", como todos os seus contemporâneos, muito meditou sobre a Revolução Francesa, e esta lhe mostra que as estruturas sociais, assim como os pensamentos dos homens, podem ser modificadas, subvertidas no decurso da história. O que há de original em seu idealismo é que, para Hegel, a idéia se manifesta como processo histórico: "A história universal nada mais é do que a manifestação da razão".
As principais obras de Hegel são: A Fenomenologia do Espírito; A Lógica; A Enciclopédia das Ciências Filosóficas; A Filosofia do Direito. Freqüentemente deforma os fatos para enquadrá-los no esquema lógico do seu sistema racionalista-dialético, bem como altera este por interesses práticos e políticos.
É preciso compreender também que a história é um progresso. O vir-a-ser de muitas peripécias não é senão a história do Espírito universal que se desenvolve e se realiza por etapas sucessivas para atingir, no final, a plena posse, a plena consciência de si mesmo. "O absoluto, diz Hegel, só no final será o que ele é na realidade". O panteísmo de Spinoza identificava Deus com a natureza: Deus sive natura. O panteísmo hegeliano identifica Deus com a História. Deus não é o que é - ao menos só é parcial e muito provisoriamente o que atualmente é - Deus é o que se realizará na História. (Neste sentido, ainda há algo de hegeliano na filosofia de Teilhard de Chardin). Por conseguinte, a história, para Hegel, é uma odisséia do Espírito Universal", em suma, se nos permitem o jogo de palavras, uma "teodisséia". Consideremos a história da terra. De início só existem minerais, depois, vegetais e, em seguida, animais. Não temos a impressão de que seres cada vez mais complexos, cada vez mais organizados, cada vez mais autônomos surgem no Universo? O Espírito, de início adormecido, dissimulado e como que estranho a si mesmo, "alienado" no universo, surge cada vez mais manifestamente como ordem, como liberdade, logo como consciência. Esse progresso do Espírito continua e se concluirá através da história dos homens. Cada povo cada civilização, de certo modo, tem por missão realizar uma etapa desse progresso do Espírito. O Espírito humano é de início uma consciência confusa, um espírito puramente subjetivo, é a sensação imediata. Depois, ele consegue encarnar-se, objetivar-se sob a forma de civilizações, de instituições organizadas. Tal é o espírito objetivo que se realiza naquilo que Hegel chama de "o mundo da cultura". Enfim, o Espírito se descobre mais claramente na consciência artística e na consciência religiosa para finalmente apreender-se na Filosofia (notadamente na filosofia de Hegel, que pretende totalizar sob sua alçada todas as outras filosofias) como Saber Absoluto. Desse modo, a filosofia é o saber de todos os saberes: a sabedoria suprema que, no final, totaliza todas as obras da cultura (é só no crepúsculo, diz Hegel, que o pássaro de Minerva levanta vôo). Compreendemos bem, em todo caso, que, nessa filosofia puramente imanentista, Deus só se realiza na história. Em outras palavras, a forma de civilização que triunfa a cada etapa da história é aquela que, naquele momento, melhor exprime o Espírito. Após ter saudado em Napoleão "o espírito universal a cavalo", Hegel verá no estado prussiano de seu tempo a expressão mais perfeita do Espírito Absoluto. Por conseguinte, Hegel é daqueles que acham que a força não "oprime" o direito (essa fórmula, abusivamente atribuída a Bismarck, nada significa), mas que o exprime, que aquele que é vitorioso na História é, simultaneamente, o mais dotado de valor e que a virtude, como ele diz, "exprime o curso do mundo".
Segundo as normas da lógica clássica, essa identificação da Razão com o Devir histórico é absolutamente paradoxal. De fato, a lógica clássica considera que uma proposição fica demonstrada quando é reduzida, identificada a uma proposição já admitida. A lógica vai do idêntico ao idêntico. A história, ao contrário, é o domínio do mutável. O acontecimento de hoje é diferente do de ontem. Ele o contradiz. Aplicar a razão à história, por conseguinte, seria mostrar que a mudança é aparente, que no fundo tudo permanece idêntico. Aplicar a razão à história seria negar a história, recusar o tempo. Ora, contrariando tudo isso, o racionalismo de Hegel coloca o devir, a história, em primeiro plano. Como tal delírio é possível?
É possível (para Hegel, pelo menos) porque Hegel concebe um processo racional original - o processo dialético - no qual a contradição não mais é o que deve ser evitado a qualquer preço, mas, ao contrário, se transforma no próprio motor do pensamento, ao mesmo tempo em que é o motor da história, já que esta última não é senão o Pensamento que se realiza. Repudiando o princípio da contradição de Aristóteles e de Leibnitz, em virtude do qual uma coisa não pode ser e, ao mesmo tempo, não ser, Hegel põe a contradição no próprio núcleo do pensamento e das coisas simultaneamente. O pensamento não é mais estático, ele procede por meio de contradições superadas, da tese à antítese e, daí, à sintese, como num diálogo em que a verdade surge a partir da discussão e das contradições. Uma proposição (tese) não pode se pôr sem se opor a outra (antítese) em que a primeira é negada, transformada em outra que não ela mesma ("alienada"). A primeira proposição encontrar-se-á finalmente transformada e enriquecida numa nova fórmula que era, entre as duas precedentes, uma ligação, uma "mediação" (síntese).
A dialética para Hegel é o procedimento superior do pensamento é, ao mesmo tempo, repetimo-la, "a marcha e o ritmo das próprias coisas". Vejamos, por exemplo, como o conceito fundamental de ser se enriquece dialeticamente. Como é que o ser, essa noção simultaneamente a mais abstrata e a mais real, a mais vazia e a mais compreensiva (essa noção em que o velho Parmênides se fechava: o ser é, nada mais podemos dizer), transforma-se em outra coisa? É em virtude da contradição que esse conceito envolve. O conceito de ser é o mais geral, mas também o mais pobre. Ser, sem qualquer qualidade ou determinação - é, em última análise, não ser absolutamente nada, é não ser! O ser, puro e simples, equivale ao não-ser (eis a antítese). É fácil ver que essa contradição se resolve no vir-a-ser (posto que vir-a-ser é não mais ser o que se era). Os dois contrários que engendram o devir (síntese), aí se reencontram fundidos, reconciliados.
Vejamos um exemplo muito célebre da dialética hegeliana que será um dos pontos de partida da reflexão de Karl Marx. Trata-se de um episódio dialético tirado da Fenomenologia do Espírito, o do senhor e o escravo. Dois homens lutam entre si. Um deles é pleno de coragem. Aceita arriscar sua vida no combate, mostrando assim que é um homem livre, superior à sua vida. O outro, que não ousa arriscar a vida, é vencido. O vencedor não mata o prisioneiro, ao contrário, conserva-o cuidadosamente como testemunha e espelho de sua vitória. Tal é o escravo, o "servus", aquele que, ao pé da letra, foi conservado.
a) O senhor obriga o escravo, ao passo que ele próprio goza os prazeres da vida. O senhor não cultiva seu jardim, não faz cozer seus alimentos, não acende seu fogo: ele tem o escravo para isso. O senhor não conhece mais os rigores do mundo material, uma vez que interpôs um escravo entre ele e o mundo. O senhor, porque lê o reconhecimento de sua superioridade no olhar submisso de seu escravo, é livre, ao passo que este último se vê despojado dos frutos de seu trabalho, numa situação de submissão absoluta.
b) Entretanto, essa situação vai se transformar dialeticamente porque a posição do senhor abriga uma contradição interna: o senhor só o é em função da existência do escravo, que condiciona a sua. O senhor só o é porque é reconhecido como tal pela consciência do escravo e também porque vive do trabalho desse escravo. Nesse sentido, ele é uma espécie de escravo de seu escravo.
c) De fato, o escravo, que era mais ainda o escravo da vida do que o escravo de seu senhor (foi por medo de morrer que se submeteu), vai encontrar uma nova forma de liberdade. Colocado numa situação infeliz em que só conhece provações, aprende a se afastar de todos os eventos exteriores, a libertar-se de tudo o que o oprime, desenvolvendo uma consciência pessoal. Mas, sobretudo, o escravo incessantemente ocupado com o trabalho, aprende a vencer a natureza ao utilizar as leis da matéria e recupera uma certa forma de liberdade (o domínio da natureza) por intermédio de seu trabalho. Por uma conversão dialética exemplar, o trabalho servil devolve-lhe a liberdade. Desse modo, o escravo, transformado pelas provações e pelo próprio trabalho, ensina a seu senhor a verdadeira liberdade que é o domínio de si mesmo. Assim, a liberdade estóica se apresenta a Hegel como a reconciliação entre o domínio e a servidão.
Hegel parte, fundamentalmente, da síntese a priori de Kant, em que o espírito é constituído substancialmente como sendo o construtor da realidade e toda a sua atividade é reduzida ao âmbito da experiência, porquanto é da íntima natureza da síntese a priori não poder, de modo nenhum, transcender a experiência, de sorte que Hegel se achava fatalmente impelido a um monismo imanentista, que devia necessariamente tornar-se panlogista, dialético. Assim, deviam se achar na realidade única da experiência as características divinas do antigo Deus transcendente, destruído por Kant. Hegel devia, portanto, chegar ao panteísmo imanentista, que Schopenhauer, o grande crítico do idealismo racionalista e otimista, declarará nada mais ser que ateísmo imanentista.
No entanto, para poder elevar a realidade da experiência à ordem da realidade absoluta, divina, Hegel se achava obrigado a mostrar a racionalidade absoluta da realidade da experiência, a qual, sendo o mundo da experiência limitado e deficiente, por causa do assim chamado mal metafísico, físico e moral, não podia, por certo, ser concebida mediante o ser (da filosofia aristotélica), idêntico a si mesmo e excluindo o seu oposto, e onde a limitação, a negação, o mal, não podem, de modo nenhum, gerar naturalmente valores positivos de bem verdadeiro. Mas essa racionalidade absoluta da realidade da experiência devia ser concebida mediante o vir-a-ser absoluto (de Heráclito), onde um elemento gera o seu oposto, e a negação e o mal são condições de positividade e de bem.
Vejamos um exemplo muito célebre da dialética hegeliana que será um dos pontos de partida da reflexão de Karl Marx. Trata-se de um episódio dialético tirado da Fenomenologia do Espírito, o do senhor e o escravo. Dois homens lutam entre si. Um deles é pleno de coragem. Aceita arriscar sua vida no combate, mostrando assim que é um homem livre, superior à sua vida. O outro, que não ousa arriscar a vida, é vencido. O vencedor não mata o prisioneiro, ao contrário, conserva-o cuidadosamente como testemunha e espelho de sua vitória. Tal é o escravo, o "servus", aquele que, ao pé da letra, foi conservado.
a) O senhor obriga o escravo, ao passo que ele próprio goza os prazeres da vida. O senhor não cultiva seu jardim, não faz cozer seus alimentos, não acende seu fogo: ele tem o escravo para isso. O senhor não conhece mais os rigores do mundo material, uma vez que interpôs um escravo entre ele e o mundo. O senhor, porque lê o reconhecimento de sua superioridade no olhar submisso de seu escravo, é livre, ao passo que este último se vê despojado dos frutos de seu trabalho, numa situação de submissão absoluta.
b) Entretanto, essa situação vai se transformar dialeticamente porque a posição do senhor abriga uma contradição interna: o senhor só o é em função da existência do escravo, que condiciona a sua. O senhor só o é porque é reconhecido como tal pela consciência do escravo e também porque vive do trabalho desse escravo. Nesse sentido, ele é uma espécie de escravo de seu escravo.
c) De fato, o escravo, que era mais ainda o escravo da vida do que o escravo de seu senhor (foi por medo de morrer que se submeteu), vai encontrar uma nova forma de liberdade. Colocado numa situação infeliz em que só conhece provações, aprende a se afastar de todos os eventos exteriores, a libertar-se de tudo o que o oprime, desenvolvendo uma consciência pessoal. Mas, sobretudo, o escravo incessantemente ocupado com o trabalho, aprende a vencer a natureza ao utilizar as leis da matéria e recupera uma certa forma de liberdade (o domínio da natureza) por intermédio de seu trabalho. Por uma conversão dialética exemplar, o trabalho servil devolve-lhe a liberdade. Desse modo, o escravo, transformado pelas provações e pelo próprio trabalho, ensina a seu senhor a verdadeira liberdade que é o domínio de si mesmo. Assim, a liberdade estóica se apresenta a Hegel como a reconciliação entre o domínio e a servidão.
Hegel parte, fundamentalmente, da síntese a priori de Kant, em que o espírito é constituído substancialmente como sendo o construtor da realidade e toda a sua atividade é reduzida ao âmbito da experiência, porquanto é da íntima natureza da síntese a priori não poder, de modo nenhum, transcender a experiência, de sorte que Hegel se achava fatalmente impelido a um monismo imanentista, que devia necessariamente tornar-se panlogista, dialético. Assim, deviam se achar na realidade única da experiência as características divinas do antigo Deus transcendente, destruído por Kant. Hegel devia, portanto, chegar ao panteísmo imanentista, que Schopenhauer, o grande crítico do idealismo racionalista e otimista, declarará nada mais ser que ateísmo imanentista.
No entanto, para poder elevar a realidade da experiência à ordem da realidade absoluta, divina, Hegel se achava obrigado a mostrar a racionalidade absoluta da realidade da experiência, a qual, sendo o mundo da experiência limitado e deficiente, por causa do assim chamado mal metafísico, físico e moral, não podia, por certo, ser concebida mediante o ser (da filosofia aristotélica), idêntico a si mesmo e excluindo o seu oposto, e onde a limitação, a negação, o mal, não podem, de modo nenhum, gerar naturalmente valores positivos de bem verdadeiro. Mas essa racionalidade absoluta da realidade da experiência devia ser concebida mediante o vir-a-ser absoluto (de Heráclito), onde um elemento gera o seu oposto, e a negação e o mal são condições de positividade e de bem.
Apresentava-se, portanto, a necessidade da invenção de uma nova lógica, para poder racionalizar o elemento potencial e negativo da experiência, isto é, tudo que há no mundo de arracional e de irracional. E por isso Hegel inventou a dialética dos opostos, cuja característica fundamental é a negação, em que a positividade se realiza através da negatividade, do ritmo famoso de tese, antítese esíntese. Essa dialética dos opostos resolve e compõe em si mesma o elemento positivo da tese e da antítese. Isto é, todo elemento da realidade, estabelecendo-se a si mesmo absolutamente (tese) e não esgotando o Absoluto de que é um momento, demanda o seu oposto (antítese), que nega e o qual integra, em uma realidade mais rica (síntese), para daqui começar de novo o processo dialético. A nova lógica hegeliana difere da antiga, não somente pela negação do princípio de identidade e de contradição - como eram concebidos na lógica antiga - mas também porquanto a nova lógica é considerada como sendo a própria lei do ser. Quer dizer, coincide com a ontologia, em que o próprio objeto já não é mais o ser, mas o devir absoluto.
Dispensa-se acrescentar como, a experiência sendo a realidade absoluta, e sendo também vir-a-ser, a história em geral se valoriza na filosofia; igualmente não é preciso salientar como o conceito concreto, isto é, o particular conexo historicamente com o todo, toma o lugar do conceito abstrato, que representa o elemento universal e comum dos particulares. Estamos, logo, perante um panlogismo, não estático, como o de Spinoza, e sim dinâmico, em que - através do idealismo absoluto - o monismo, que Hegel considerava panteísmo, é levado às suas extremas conseqüências metafísicas imanentistas.
Podemos resumir assim:
1.° - A lógica tradicional afirma que o ser é idêntico a si mesmo e exclui o seu oposto (princípio de identidade e de contradição); ao passo que a lógica hegeliana sustenta que a realidade é essencialmente mudança, devir, passagem de um elemento ao seu oposto;
2.° - A lógica tradicional afirma que o conceito é universal abstrato, enquanto apreende o ser imutável, realmente, ainda que não totalmente; ao passo que a lógica hegeliana sustenta que o conceito é universal concreto, isto é, conexão histórica do particular com a totalidade do real, onde tudo é essencialmente conexo com tudo;
3.° - A lógica tradicional distingue substancialmente a filosofia, cujo objeto é o universal e o imutável, da história, cujo objeto é o particular e o mutável; ao passo que a lógica hegeliana assimila a filosofia com a história, enquanto o ser é vir-a-ser;
4.° - A lógica tradicional distingue-se da ontologia, enquanto o nosso pensamento, se apreende o ser, não o esgota totalmente - como faz o pensamento de Deus; ao passo que a lógica hegeliana coincide com a ontologia, porquanto a realidade é o desenvolvimento dialético do próprio "logos" divino, que no espírito humano adquire plena consciência de si mesmo.
Visto que a realidade é o vir-a-ser dialético da Idéia, a autoconsciência racional de Deus, Hegel julgou dever deduzir a priori o desenvolvimento lógico da idéia, e demonstrar a necessidade racional da história natural e humana, segundo a conhecida tríade de tese, antítese e síntese, não só nos aspectos gerais, nos momentos essenciais, mas em toda particularidade da história. E, com efeito, a realidade deveria transformar-se rigorosamente na racionalidade em um sistema coerente de pensamento idealista e imanentista.
Não é mister dizer que essa história dialética nada mais é que a história empírica, arbitrariamente potenciada segundo a não menos arbitrária lógica hegeliana, em uma possível assimilação do devir empírico do desenvolvimento lógico - ainda que entendido dialeticamente, dinamicamente. Tal história dialética deveria, enfim, terminar com o advento da filosofia hegeliana, em que a Idéia teria acabado a sua odisséia, adquirindo consciência de si mesma, isto é, da sua divindade, no espírito humano, como absoluto. Mas, desse modo, viria a ser negada a própria essência da filosofia hegeliana, para a qual o ser, isto é, o pensamento, nada mais é que o infinito vir-a-ser dialético.
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Desde que Platão enfatizou a separação entre o mundo dos entes corpóreos e o mundo das “idéias” (ou mais propriamente “formas”), a distinção entre o absoluto e o relativo, entre o Ser e os entes, entre o permanente e o transitório, entre estrutura e processo, se incorporou às raízes do pensamento filosófico e científico no Ocidente ao ponto de que não é exagero resumir todo o esforço intelectual de dois milênios e meio na busca dos fatores estáveis por trás dos fenômenos em mudança. A idéia mesma de “leis científicas” é isso e nada mais.
O empreendimento de Hegel consistiu em introduzir nesse sistema de distinções uma confusão profunda, geral e aparentemente insanável. Partindo da observação milenar de que o mundo dos fenômenos é uma aparência ou manifestação do fundamento absoluto, ele dá um giro de cento e oitenta graus na relação entre os dois mundos e reduz o absoluto ao conjunto das suas manifestações relativas. Diz ele que o Ser, considerado em si mesmo, é idêntico ao nada; só a sucessão das suas manifestações temporais lhe dá alguma consistência; logo, o tempo é a substância da eternidade, o devir é a única realidade do ser.
As conseqüências metodológicas que tiradas,por Hegel, dessas teses acabaram por moldar a mentalidade do movimento revolucionário.
Se o devir é o Ser e se o único processo autoconsciente no conjunto do devir é a história humana, esta se torna automaticamente o campo por excelência da auto-realização do Ser. O Espírito, o Absoluto ou Deus é uma potencialidade inconsciente de si, que só se conhece e se realiza no processo histórico tal como Hegel o compreende (o que implica, naturalmente, que Hegel em pessoa seja o ponto mais alto da autoconsciência divina, modéstia à parte). Como no curso do processo todos os momentos altos e baixos são igualmente necessários, todos eles são igualmente portadores da verdade. A diferença entre a aparência e a realidade, que para o pensamento antigo coincidia com a fronteira entre o transitório e o permanente, é assim sutilmente deslocada para dentro do terreno do próprio transitório: a única verdade de cada fenômeno é o lugar que ele ocupa no conjunto do processo (tal como Hegel entende o processo). O falso, o ilusório, é apenas o que está isolado do processo, mas, como nada está isolado do processo, o falso não existe, é apenas uma aparência de falsidade. A verdade, por sua vez, consiste apenas em estar inserido no fluxo total, isto é, em ir para onde Hegel acha que as coisas vão.
Essa é a lei profunda que orienta e unifica o movimento revolucionário em todas as suas variantes e modificações. Por exemplo, é notório que Marx ou Lênin jamais se preocuparam em descrever como seria a futura sociedade socialista. Ao mesmo tempo, asseguram que todo o movimento histórico vai na direção do socialismo. Mas como é possível saber com certeza que um certo desenlace é inevitável, se não se sabe nem mesmo dizer que desenlace é esse? A resposta implícita é a seguinte: não é a finalidade que determina o processo, mas o processo é que determina a finalidade. Esta não é senão o processo mesmo considerado na sua totalidade. Isso implica, naturalmente, que a finalidade conscientemente alegada em cada momento pode mudar de figura um número infinito de vezes sem que se perca a unidade do processo. Por isso é que os esquerdistas tanto mais se apegam à unidade do movimento revolucionário quanto mais os objetivos pelos quais lutam em vários lugares e momentos são inconexos e contraditórios entre si. Os militantes seguem a liderança com igual fidelidade quando ela os manda fomentar a economia de mercado ou substituí-la pela estatização dos meios de produção; quando ela os manda combater todo nacionalismo como expressão da obstinação reacionária ou, ao contrário, criar movimentos nacionalistas; quando ela apóia o nazismo ou luta contra o nazismo; quando ela condena a liberdade sexual como sinal da decadência burguesa ou quando ela fomenta a mais extrema anarquia erótica contra o império do “moralismo burguês”. E assim por diante. O observador alheio às sutilezas do esquerdismo vê nisso incoerências escandalosas que, a seu ver, ameaçam a unidade do movimento revolucionário ao ponto de torná-lo inofensivo perante os triunfos econômicos e técnicos do capitalismo. Mas é dessas incoerências que se alimenta o processo – e o processo é tudo.
Alguns estudiosos de Hegel disseram que sua Lógica não é propriamente uma lógica, mas uma ontologia, uma teoria sobre a estrutura da realidade. Seria o caso, entretanto, de se considerar a possibilidade de haver uma teoria do ser quando se começa por dissolver a substância do ser na idéia do processo. A lógica de Hegel é nada mais que uma psicologia, um estudo dos processos cognitivos que orientam (ou melhor, desorientam) o movimento da história humana. Sob certos aspectos, é mesmo uma psicopatologia – a lógica interna do desvario revolucionário.
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FONTES
HEGEL-COLEÇÃO OS PENSADORES-NOVA CULTURAL
MUNDO DOS FILÓSOFOS (SITE)
INTERNET ENCYCLOPEDIA OF PHILOSOPHY
A LÓGICA DA DESTRUIÇÃO(artigo)-Olavo de Carvalho