HISTÓRIA DO RAMAL FERROVIÁRIO DO PIRANGA
Discorrer sobre o antigo “Ramal do Piranga” ou “Trem da Piranguinha” não é uma tarefa fácil. Há poucas evidências históricas sobre o tema. O ramal do Piranga surgiu como uma proposta para estender a linha da Estrada de Ferro Central do Brasil (EFCB) até acidade de Vitória, passando pelos vales dos rios Piranga/Doce. Apesar do intento, o projeto ficou no papel, pois foram construídos apenas 57,8 km de ferrovia, entre a cidade de Santos Dumont, onde passava a linha tronco da EFCB, e a de Mercês. A história do “Ramal do Piranga” inicia-se no final do século XIX. Em 2 de outubro de 1890, João Pereira de Lemos Torres, membro da Junta Comercial do Rio de Janeiro, assinou contrato para construção de uma estrada de ferro, que deveria partir da cidade de João Gomes (Santos Dumont) até Piranga, com privilégio de exploração por 50 anos e garantia de juros de 6% ao ano durante vinte anos sobre o capital que efetivamente fosse empregado, na razão de 45:000$ por quilômetro. Para o prolongamento dessa estrada, celebrou-se contrato com a companhia “Promotora de Indústrias e Melhoramentos”. O objetivo era estender a ferrovia pelo vale do Rio Doce até a confluência deste com o Rio Santo Antônio, de modo a entroncar-se com a linha que partia de Vitória ao Peçanha.
O empresário João Pereira de Lemos Torres, juntamente com a companhia mencionada, organizou a empresa denominada “Estrada de Ferro do Rio Doce”. Em 1892, acionistas da companhia, à época denominada “Banco Iniciador de Melhoramentos”, foram notificados para depositarem a 3ª entrada de 10% ou 10$000 por ação, a qual se encontrava em atraso. Na lista figurava 28 nomes, a exemplo do Dr. Fernando Pereira da Rocha Paranhos (20 ações, no valor de 200$) e do Dr. José Paes de Carvalho (1.740 ações, no valor de 17:400$). Na lista dos acionistas havia famílias tradicionais, ligadas à cafeicultura, como o Barão de Vidal, e bancos, como o Sul Americano, Itália-Brasil e Minas Gerais. Em 1896, o presidente do Banco Iniciador de Melhoramentos, José Américo dos Santos, em decisão da mesa diretora, destacou que a carteira comercial do banco não possuía capitais suficientes para dar cabo à obra de ampliação da Estrada de Ferro Rio Doce e propôs em reunião do conselho fiscal a necessidade de contração de um empréstimo. Como as obras já estavam iniciadas, o presidente da companhia destacou que a paralisação seria um desastre. A proposta de empréstimo foi colocada em votação e a diretoria foi autorizada a contrai-lo. Pelo estatuto aprovado (art.27, alínea 3º), a assembleia geral também autorizou a diretoria a negociar a alienação da Estrada de Ferro do Rio Doce quando julgasse vantajosa ao banco.
No ano de 1902, haviam sido construídos apenas 26,6km de ferrovia, ligando as cidades de Santos Dumont a Oliveira Fortes (A referida extensão correspondia a apenas 1,15% da rede mineira). No ano citado, encontravam-se paralisados no estado a ampliação de 451 km, dos quais 147,756 referentes ao trecho da estrada de João Gomes a Piranga. Apesar da conclusão dos 26,6km de ferrovia, o tráfego começou a apresentar interrupções desde 1900, o que levou o governo a notificar o Banco Iniciador de Melhoramentos, que reestabeleceu o trânsito em 1901. Embora intimado a tomar conta da estrada, o banco cessionário não cumpria a determinação, obrigando o governo, em determinados momentos, a administrá-la na forma dos contratos. A estrada citada era uma ferrovia deficitária: no relatório de gastos e receitas das ferrovias mineiras, o Ramal do Piranga apresentou um déficit de 17:714$258 em 1902, após também amargar prejuízo no ano anterior, da ordem de 45:016$637. Mas, essa não era uma característica exclusiva do Ramal do Piranga, pois, à época, apenas duas estradas (Oeste de Minas e Juiz de Fora a Piau) haviam obtido lucros.
Quais eram as principais mercadorias transportadas pelo trem da Piranguinha? Se analisarmos o rol dos produtos transportados em outras estradas, teremos os seguintes: café, fumo, açúcar, aguardente, álcool, cevados, leite, madeira, gado de raça destinado à reprodução, máquinas agrícolas, adubos para lavoura etc. O território vasto e a população disseminada eram importantes desafios para integrar as áreas e muitas ferrovias foram implantadas sem seguir uma sistemática de integração. De acordo com o Relatório de Presidente de Província de 1908, era necessário sistematizar os traçados, visando, nas novas construções, privilegiar caminhos mais curtos para tornar menos onerosos os custos de transporte das mercadorias. O movimento de passageiros e de cargas, em declínio, era um reflexo da crise geral pela qual passava a indústria e o comércio, contribuindo para a redução das rendas e para o crescimento dos déficits. O próprio governo reconhecia a depressão generalizada da receita das vias férreas, fruto da redução da produção e do consumo, e destacava a necessidade da implantação de culturas nas zonas marginais das estradas de ferro, de modo a favorecer o transporte de mercadorias com fretes mais reduzidos.
No ano de 1903, os serviços de transporte na estrada “João Gomes a Piranga” mais uma vez estavam paralisados. Este ramal era o único que não mantinha um fluxo regular, pois o Banco Iniciador de Melhoramentos, em liquidação, se recusava a assumir a direção da ferrovia. Com isso, o governo foi forçado a administrá-la para não deixar o tráfego paralisado, situação que exigia medida de liquidação do banco para livrar o Estado de despesas que não seriam reembolsadas. Apesar dos esforços despendidos pelo governo no sentido de melhorá-la, era precário o estado de conservação da via férrea, devido, principalmente, à insignificante renda que não atingia a metade do custo das despesas. O trecho da linha era muito pequeno: apenas 26 km (2,6% do conjunto geral da Estrada de Ferro Central do Brasil). A exploração do transporte gerava prejuízo para o Tesouro do Estado, que não dispondo de verba para a realização de obras, cada vez mais urgentes, não podia modificar tal situação.
O Ramal do Piranga apresentava vários desafios para manter a regularidade da circulação: na linha era indispensável a substituição da maior parte dos dormentes, além da execução de diversas obras de consolidação e regularização do leito e de substituição do escasso material rodante. Em outras dependências da estrada, manutenções também eram necessárias. Esse quadro de estagnação era resultado do abandono em que a deixou o Banco Iniciador de Melhoramentos, sempre preocupado com a redução, ao mínimo, das despesas com o custeio. Em 1904, o déficit aumentou para 22:726$506. Como consequência, eram mantidos apenas dois trens por semana, uma forma de reduzir a despesa ao extremo. É importante enfatizar que o prejuízo não era uma condição peculiar do Ramal do Piranga, pois no ano citado apenas duas ferrovias obtiveram lucros: a Leopoldina Railway e a Estrada de Ferro Juiz de Fora a Piau, em virtude do maior movimento de passageiros e da maior intensidade do tráfego de mercadorias, advinda da importância agrícola das zonas pelas quais essas duas ferrovias cruzavam.
No dia 28 de outubro de 1904, após 14 anos em operação, a estrada foi depositada judicialmente, passando, por lei, a ser administrada pelo Estado. Por causa da liquidação do banco cessionário, o custeio do tráfego já era feito pelo Estado, que desembolsou 52:022$286. Por tal motivo, o Estado requereu o depósito da estrada, já que as despesas corriam por sua conta. Passados dois anos, o tráfego na estrada encontrava-se novamente suspenso. Sem prolongá-la até atingir a região mais produtiva, o Vale do Piranga, não havia como justificar a manutenção regular do tráfego. Em 1909 a estrada foi finalmente encampada pelo governo, que neste ano despendeu o montante equivalente a 306:875$170, referentes à aquisição e gastos com tráfego da via. Em 1913, mais 32 km de trilhos encontrava-se em construção, ligando as cidades de Livramento (Oliveira Fortes) e Mercês, obra concluída três anos depois, quando o “Ramal do Piranga” passou a contar com 57,830 km (4,6% da rede da Estrada de Ferro Central do Brasil). Mas, a ferrovia, cujo projeto original era se estender pelos vales dos rios Xopotó, Piranga e Doce, parou na cidade de Mercês. O fim da linha e de um projeto que se pretendia incentivar a integração e o desenvolvimento regional.
O Ramal do Piranga manteve suas atividades até o final da década de 1960, quando foi desativado. Os trilhos foram retirados, mas restaram vários vestígios como a passagem elevada no centro de Santos Dumont, diversas pontes como as do rio Pinho, do ribeirão das Valentinas e do rio Formoso, a última construída pela Companhia Nacional de Forjas e Estaleiros em 1896, etc. O leito se transformou numa estrada vicinal, ao longo da qual ainda é possível observar os cortes retilíneos em barrancos, pedreiras de onde provavelmente foram extraídas rochas para cascalhar a via, restos de trilhos e de dormentes, utilizados em cercas na margem do leito, bem como os cortes e sinuosidades característicos de leito ferroviário em zonas de aclive/declive. Em alguns locais restaram estações, como a do rio Pinho, de Oliveira Fortes, Paiva e Mercês, além de vestígios de plataformas de embarque como a de Campo Alegre e a da Boa Sorte. Por fim, cabe enfatizar que o Ramal do Piranga tomou o nome da cidade de Piranga, município situado no alto vale do rio Doce, que deve ter apresentado certa importância econômica durante o século XIX, a tal ponto de nomear um ramal da importante ferrovia da “Central do Brasil”, mas que nunca chegou ao destino final.