Amor – e ódio – aos gays

No Carnaval, o Brasil aceita, imita e consagra os homossexuais. Por que no resto do ano há tanta violência contra eles?

Por: Kátia Mello, Carlos Giffoni, Maurício Meireles, Martha Mendonça e Marcelo Rocha
 
NESSE DIA NINGUÉM CHORA
Foliões travestidos aguardam o início do desfile da Banda de Ipanema, no Rio. O Carnaval não apenas tolera, mas celebra o universo gay
 
Nos próximos dias, eles vão tomar o país. Nas escolas de samba, nos blocos, nos desfiles de fantasia, os homossexuais dominam o Carnaval. Durante esse período, se você passear pela Praça General Osório, no início de Ipanema (o bairro mais carioca do Rio de Janeiro), poderá pensar que está numa república diferente – cujo hino é uma marchinha irreverente, a bandeira tem a cor do arco-íris e a língua, quando é usada para falar, traz tantos sotaques quantos havia na mítica Torre de Babel. Não é à toa. O Rio costuma receber 800 mil turistas homossexuais por ano, um terço deles durante o Carnaval. Em média, eles gastam três vezes mais que os turistas heterossexuais.
 
Neste verão, a moda foi o cruzeiro gay. Apenas num fim de semana de janeiro, desembarcaram no Rio 2 mil homossexuais americanos de um transatlântico. Salvador não fica muito atrás. Neste ano, a cidade lançou o primeiro trio elétrico gay da Bahia, o Liberty. Os abadás, camisetas que servem de passaporte para o bloco, se esgotaram em poucos dias. Florianópolis também entrou na briga para atrair os gays: virou sede da convenção anual do IGLTA – International Gay & Lesbic Association, a ser realizada no ano que vem.
 
Aos gays que vêm de fora, acrescente-se o contingente nacional. Não é que eles se multipliquem (não há dados para afirmar que mais gente saia dos armários nesses dias), mas a cultura carnavalesca deve muito de suas características ao universo gay. E mesmo alguns dos mais renitentes machões saem às ruas travestidos.
 
Num clima desses, de tamanha tolerância, fica difícil entender que estejamos no mesmo país que vem testemunhando casos chocantes de agressão a homossexuais. “Muitos dos homens que saem de vestido e maquiagem nos blocos de Carnaval vão agredir homossexuais no resto do ano ou mesmo quando tirarem a fantasia”, diz Carlos Tufvesson, coordenador especial de Diversidade Sexual do município do Rio. Por isso, Tufvesson lançou na última quarta-feira a campanha “Rio: Carnaval sem preconceito”, que incluirá depoimentos de artistas e treinamento para guardas civis saberem lidar com casos de discriminação ou agressão.
 
Casos assim não faltam, como pode testemunhar Augusto (nome fictício). O rapaz de 27 anos, estudante da Universidade de São Paulo (USP), tem tido pesadelos desde o final de janeiro, quando foi atacado, às 4h30 da madrugada, na Rua Peixoto Gomide, na região central de São Paulo. Ele andava com um amigo quando, do nada, levou uma garrafada no olho. O amigo foi atingido por socos e pontapés. Os agressores eram um grupo de oito jovens vestidos de preto. Um tinha a cabeça raspada, outro era tatuado. “Não houve uma palavra, uma provocação. Eles simplesmente nos atacaram”, disse Augusto. Pelo jeito que ele e o amigo falavam e gesticulavam, imagina, era possível perceber claramente que os dois eram gays. Daí conclui que sofreu um ataque homofóbico.
 
Em seus pesadelos, Augusto sonha que está com amigos e de repente alguém morre. O estudante quase perdeu a visão do olho direito. Depois do ataque, diz ter parado de sair à noite. Segundo ele, o mais traumatizante não foi a violência, mas como as pessoas reagiram a ela. “Alguns disseram que eu tinha mesmo de apanhar por ser gay.”
 
Estima-se que no ano passado o Brasil teve 252 assassinatos motivados por ódio aos homossexuais
 
Essa região de São Paulo parece ter se tornado foco de ataques. Em novembro, houve dois do mesmo tipo. Um grupo de cinco rapazes atacou quatro jovens em diferentes locais da Avenida Paulista. Como uma das agressões foi filmada pela câmera de segurança de um banco, o caso ganhou os noticiários de TV. Os cinco agressores foram identificados. Quatro deles, menores, passaram um mês na Fundação Casa (ex-Febem). O único maior de idade do grupo, Jonathan Domingues, de 19 anos, foi indiciado por lesão corporal.
 
Uma das vítimas desse ataque foi Luís Alberto Betonio, de 23 anos, estudante de jornalismo. Ele caminhava com amigos gays quando foi atingido no rosto, sem nenhum aviso, com uma lâmpada fluorescente. Betonio também passou a ter medo de sair de casa. Faz terapia, mas diz ainda não ter conseguido superar o medo. “Ando na rua olhando para trás o tempo inteiro, desconfio de todo mundo.”
 
A poucos metros de onde Betonio apanhou, os cinco rapazes fizeram mais vítimas. Sérgio, de 38 anos, gay assumido, levou sete golpes de soco-inglês. Quase perdeu a visão. Enfrentou duas cirurgias de reparação, uma delas de dez horas. “Tive medo de ficar cego”, disse. O olho ficou bom, mas o trauma permanece. “Chorei muito. Demorei três meses para sair com meus amigos de novo. Naquela região da cidade, eu não ando mais.”
 
Embora São Paulo tenha ganhado o foco principal como palco de violência, os ataques têm acontecido por todo o país – na Praia do Arpoador, Rio de Janeiro, em Salvador, em Curitiba, em Fortaleza... A secretária dos Direitos Humanos do governo Dilma Rousseff, Maria do Rosário Nunes, que tem status de ministra, afirma que o país está diante de uma emergência. “Esses ataques são crimes de ódio e não podem se consolidar como uma prática cotidiana. Isso é inaceitável”, afirmou

PARADA
A senadora Marta Suplicy e o deputado Jean Wyllys (de óculos, à esq.) em passeata pró-gays, em São Paulo. Os dois fazem parte da frente para promover direitos dos homossexuais
 
O tema ganhou importância simultânea em várias esferas da vida do país. No Congresso Nacional, um grupo de parlamentares liderados pelo deputado Jean Wyllys (PSOL-RJ) tem a intenção de reativar a Frente Parlamentar Mista pela Cidadania LGBT (Lésbicas, Gays, Bissexuais e Transgêneros). A senadora Marta Suplicy (PT-SP) obteve na primeira semana de mandato as 27 assinaturas necessárias para desengavetar um projeto de lei que torna crime a discriminação por orientação sexual, nos mesmos termos do que ocorre em relação a raça, cor, etnia, religião e procedência nacional. “Sinto que no Senado existe um clima positivo em relação ao projeto”, diz Marta. Ela sabe que sofrerá resistências, principalmente de setores religiosos e conservadores, mas acredita que as cobranças da mídia em favor dos direitos humanos leve a maioria dos parlamentares a votar pelo projeto.
 
Também o Supremo Tribunal Federal (STF) trata de um tema relacionado a direitos dos homossexuais. O órgão deve decidir se estende para casais do mesmo sexo o regime jurídico de uniões estáveis – que daria a gays e lésbicas direitos em questões como benefícios previdenciários e assistenciais. “Hoje, o Supremo está sendo desafiado para as grandes questões, como os direitos civis dos homossexuais”, disse o ministro do STF Luiz Fux, empossado no final de fevereiro. “Os homossexuais têm todos os deveres e querem seus direitos.”
 
O tema do ódio aos gays também está na casa de milhões de brasileiros que assistem à novela Insensato coração (da TV Globo, que pertence à mesma organização que edita ÉPOCA). A novela, iniciada em janeiro, tem seis personagens gays – e, na semana passada, o personagem Kleber, interpretado pelo ator Cássio Gabus Mendes, revelou ser homofóbico. O autor da novela, Gilberto Braga, já havia inventado personagens gays, mas esta é a primeira vez que ele retrata um conflito. “Hoje, podemos falar do assunto com muito mais clareza”, diz. “Não há censura, e as pessoas evoluíram.”
 
Se as pessoas evoluíram tanto, por que os ataques parecem mais frequentes, mais disseminados e mais carregados de ódio? Quando se pede aos especialistas que expliquem essa aparente onda homofóbica, eles respondem com um paradoxo: quanto mais o país avança nos direitos civis da comunidade gay, maior é a reação. “Se a aceitação cresce, também cresce a rejeição”, diz Marcelo Tavares Natividade, professor da Faculdade de Serviço Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Doutor em antropologia, Natividade diz que, se um grupo controverso chama a atenção para si, seus opositores vão se achar no direito de agir contra eles. Hoje, os casais homossexuais andam de mãos dadas na rua e se beijam no cinema e nos bares. Aparecem na TV, no cinema, declaram sua opção sexual com mais desenvoltura.
 
Um estudo feito em 2005 pelos pesquisadores Dominic Parrott e Amos Zeichner, da Universidade da Geórgia, EUA, corrobora essa explicação. Um grupo de 165 homens assistiu a filmes eróticos (parte deles viu um filme heterossexual, a outra parte viu um filme homossexual) e depois interagiu com alguém de orientação sexual oposta à sua. Entre os participantes preconceituosos (identificados por um questionário anterior), os que viram um filme homossexual se mostraram depois mais agressivos em relação a seu oponente gay do que os que haviam visto um filme erótico heterossexual. “Essa descoberta mostra que o aumento da raiva devido à exposição a estímulos homoeróticos pode ser um precursor da agressão contra gays”, dizem os autores do estudo.
 
Também as estatísticas dão a mesma ideia. Dos 485 casos de homofobia registrados na cidade do Rio entre julho de 2009 e dezembro de 2010, a maior parte foi na Zona Sul, justamente a região de costumes mais liberais. O Leblon, área nobre da Zona Sul, teve quatro vezes mais ataques que a Penha, na Zona Norte. A presença ostensiva dos gays na cena social pode contribuir, portanto, para a violência. No passado, não havia agressão porque não havia homossexuais nas ruas. Eles andavam camuflados de hétero ou não saíam de casa. O que se faz, então? Com toda a razão, os homossexuais se recusam a voltar para os guetos.
 
Mais que isso. Historicamente, os avanços dos direitos dos homossexuais reflete o avanço das liberdades civis como um todo. O primeiro país a abolir leis que proibiam a homossexualidade foi a França, em 1791, logo após a revolução que disseminou a ideia de direitos individuais. A ideia começou a se espalhar pela Europa, mas muito lentamente. No século XIX, o genial escritor Oscar Wilde (autor de O Retrato de Dorian Gray) foi preso por “indecência” e condenado a dois anos de trabalhos forçados. Morreu pouco depois de ser solto.
 
Em pleno século XX, na Inglaterra, o matemático Alan Turing foi processado em 1952 por ser homossexual (na ocasião, ainda era crime). Turing era um herói de guerra: desvendou os códigos das mensagens alemãs durante a Segunda Guerra Mundial, salvando milhares de vidas britânicas. Não lhe valeu de nada. Turing foi forçado a escolher entre ir para a prisão e tomar hormônios femininos para reduzir sua libido. Escolheu a segunda opção. Dois anos depois, suicidou-se. Em 2009, o então primeiro-ministro, Gordon Brown, pediu desculpas póstumas em nome do governo britânico. Nos Estados Unidos, só a partir da década de 60 começou a haver grupos organizados de gays e lésbicas. E só na década de 70 a Associação de Psiquiatria Americana removeu a homossexualidade de sua lista de transtornos mentais.
 
Segundo um estudo sueco, ainda há hoje 80 países que consideram homossexualidade um crime – em cinco deles, punido com a morte. Em uma viagem aos Estados Unidos há alguns anos, o presidente iraniano, Mahmoud Ahmadinejad, afirmou que em seu país não havia homossexuais. Não é verdade, é claro, mas não por falta de esforço. Desde a Revolução Islâmica, em 1979, mais de 4 mil pessoas foram executadas por participar de atos homossexuais. No Zimbábue, o presidente Robert Mugabe instaurou uma campanha de perseguição do Estado contra os gays. Homossexualidade, segundo ele, é uma “doença” trazida pelos colonizadores brancos.
 
CRIME
Ahmadinejad, do Irã, e Mugabe, do Zimbábue, promovem perseguição oficial aos homossexuais
 
“Essas coisas levam tempo”, afirma Gustavo Venturi, sociólogo e professor da Universidade de São Paulo. “Há 20 anos nem se discutia homofobia. Era como se os gays não existissem.” A discussão é, em si mesma, um avanço. No primeiro momento, para conhecer o problema. Não há estatísticas nacionais oficiais sobre ataques contra homossexuais. O único Estado que registra essas ocorrências é o Rio de Janeiro. O Grupo Gay da Bahia é a única organização que contabiliza dados nacionais. Segundo eles, em 2010 ocorreram 252 assassinatos com causa homofóbica no Brasil. Não qualquer crime: assassinatos. Essas estatísticas afloram do noticiário. São, portanto, números controversos, provavelmente errados – para menos. “Se houvesse um acompanhamento do Estado, o número de casos de homofobia seria muito maior”, afirma Antônio Sergio Spagnol, sociólogo do Núcleo de Estudos da Violência da USP. Ele afirma que grande parte das famílias dos homossexuais mortos prefere tratar o assunto como crime comum. Por causa do preconceito – e do tratamento frequentemente antipático da polícia –, os próprios homossexuais não costumam notificar as agressões de que são vítimas. Apesar da ausência de estatísticas oficiais, ele acredita, porém, que a violência contra gays não aumentou. “Hoje a sociedade não aceita esse tipo de comportamento”, diz. “Antes, um gay morria e não havia divulgação. Hoje, os casos aparecem e são tratados pelo que são: homofobia.”
 
De onde vem essa homofobia?
O homofóbico pode estar a seu lado e, em geral, não é difícil identificá-lo. “Ele faz comentários pejorativos, exprime nítidas rejeições aos homossexuais e os culpa por tudo de ruim que existe no mundo”, afirma o psicólogo Antônio de Pádua Serafim, do Instituto de Psiquiatria da USP. Serafim faz distinção entre o preconceituoso e o intolerante aos gays. Afirma que o preconceituoso não aceita a homossexualidade, mas não tem o desejo de eliminar o gay, como acontece com o intolerante. Para Serafim é a intolerância, não o preconceito, que produz violência. Além disso, o psicólogo diz que os homofóbicos se acham superiores às outras pessoas. “Eles são egocêntricos. Sofrem de uma distorção na interpretação da realidade. Não conseguem ter convívio social com os que consideram diferentes deles”, diz.
 
Como qualquer forma de preconceito, o ódio aos gays tem múltiplas motivações. Ele pode vir de uma experiência desagradável com um indivíduo, seguida de uma generalização para o grupo todo. Para outros, o ódio é sinal de aderência a um grupo preconceituoso. Um terceiro tipo é o preconceito derivado da convicção de que os homossexuais representam valores que conflitam com suas crenças. Finalmente, ele pode vir do medo de sua própria homossexualidade. “Ao ver um homossexual ou um travesti, o homofóbico pode sentir sua masculinidade ameaçada”, diz Serafim. Um estudo publicado em 1996 pelo Journal of Abnormal Psychology testou essa hipótese. Dois grupos de homens, um com 35 homofóbicos e outro com 29 não homofóbicos (identificados de acordo com um questionário), assistiram a vídeos com cenas eróticas de homem com mulher, mulher com mulher e homem com homem. Uma fita media a circunferência de seus pênis durante o teste. Todos se excitaram com as cenas de amor heterossexual. Todos se excitaram com as cenas de amor entre duas mulheres. Só o grupo de homofóbicos teve ereção com as cenas de amor entre dois homens.
 
Embora possa explicar alguns casos de homofobia, essa tese, aplicada genericamente, se transforma num clichê sem poder de explicação. A intolerância é um fenômeno antigo e disseminado em diversas culturas. Contra grupos raciais, étnicos ou religiosos. Nem sempre (ou raramente) existe alguma identidade inconsciente entre o agressor e sua vítima. Com a homofobia é provável que aconteça o mesmo. Ela tem vários matizes. “Não se pode generalizar nem combater um preconceito com outro”, diz a psiquiatra Carmita Abdo, professora da Universidade de São Paulo (USP) e especialista em sexualidade. Ilana Casoy, criminóloga da Comissão de Política de Criminalização da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), que estuda há mais de uma década crimes violentos, afirma que os homofóbicos, em geral, são os mesmos que se manifestam contra nordestinos e negros. “O perfil desse tipo de agressor não se altera. O que muda é o alvo de sua agressão.” Para Ilana, o homofóbico relaciona o homossexual à imoralidade, à impureza e, portanto, acredita que ele deveria ser “descartado para o bem da sociedade”. Segundo seus estudos, esse agressor é jovem, sugestionável, ainda sem identidade solidificada. “Ele é frágil psicologicamente e forte fisicamente.”
 
A discriminação contra homossexuais é complexa: admitimos que há preconceito em nossa sociedade, mas somos incapazes de aceitar o preconceito em nós mesmos. Uma pesquisa da Fundação Perseu Abramo em parceria com a alemã Rosa Luxemburgo Stiftung, realizada em 2008 com 2.014 brasileiros em 150 municípios, revelou que quase a totalidade da população brasileira afirma existir preconceitos sexuais: 93% dizem que há preconceito contra travestis, 91% contra transexuais e 92% contra gays. Mas, quando se pergunta se os próprios entrevistados são preconceituosos, os números mudam. Apenas 29% admitem ter preconceito contra travestis, 28% contra transexuais e 53% contra gays e bissexuais de ambos os sexos. Nessa mesma pesquisa, ficou constatado que a aversão dos brasileiros aos homossexuais só perde para o preconceito contra os ateus e os usuários de drogas. O sociólogo Venturi, da USP, afirma que “os preconceitos se reproduzem por inércia. São valores que passam pelo trabalho, pela escola, pela família”.
 
O ambiente familiar é muitas vezes onde são feitos os primeiros contatos com a homofobia, para os agressores e para as vítimas. Muitos dos homofóbicos vivem em famílias desestruturadas, em que os limites nunca são impostos. Em novembro, depois do episódio de agressão na Avenida Paulista contra o estudante Luís Betonio, a mãe de um dos agressores menores de idade chegou a dizer ao delegado que o espancamento não passara de uma “briga de moleques”. Briga de moleques? “Muitos pais não ensinam mais reciprocidade, justiça, honestidade e polidez a seus filhos”, afirma Paula Gomide, presidente da Sociedade Brasileira de Psicologia e psicóloga forense. “Esses valores são antídotos para crimes como a homofobia.” Esse é um lado da questão. O outro é a homofobia praticada em casa, contra um dos membros da família. O filho é agredido, física ou verbalmente, por causa de sua orientação sexual. Alguns pais acreditam que a homossexualidade é uma simples opção e que os filhos fazem essa escolha para afrontá-los. Outros pensam que é “culpa” deles o filho ser homossexual e decidem “consertá-los” com disciplina e violência. Nos dois casos, o resultado é opressão contra as crianças ou adolescentes.
 
O carioca Felipe Gomes, de 30 anos, ativista do Grupo Arco-Íris, conta que viveu um apartheid familiar. Aos 18 anos, assumiu ser gay para sua mãe e ouviu dela, uma evangélica praticante, o seguinte: “Prefiro ter um filho morto a ter um filho gay”. Ele diz que a mãe batia nele e o obrigava a usar copos, talheres e um banheiro diferentes do resto da família. Gomes também tinha de dormir num quarto separado. “A ideia era me estigmatizar para eu tomar jeito”, diz. “Minha mãe achava que eu poderia me curar”, afirma. Passados 12 anos, ele diz que se reconciliou com ela.
 
A sociedade brasileira ainda não conseguiu essa paz. O Projeto de Lei nº 122/06, que caracteriza a homofobia como crime, suscitou uma reação forte, e não só de grupos conservadores. O jurista paulista Ives Gandra Martins discorda de ações afirmativas de grupos minoritários. “Dão a impressão de privilégio a determinadas classes”, afirma. Segundo ele, o projeto tornaria crime de homofobia fazer piadas contra gays. “Ora, eu conto piada sobre qualquer assunto. Grupos de humor também. Não vão poder fazer piadas sobre gays?” Os pastores evangélicos consideraram que a proposta de lei contra a homofobia cerceia o direito de expressão religioso. “Ensinar e pregar contra a prática do homossexualismo não é homofobia”, diz Augustus Nicodemus Gomes Lopes, presidente da Universidade Presbiteriana Mackenzie, num manifesto que se espalhou pela internet.
 
Uma mãe em busca de justiça
Apesar de ter desmontado a cama do filho, Angélica Ivo ainda não conseguiu se desfazer de suas roupas e objetos. Angélica busca justiça. Era 21 de julho, dia do jogo do Brasil com a Costa do Marfim na Copa do Mundo, quando seu menino Alexandre, de 14 anos, foi encontrado morto por estrangulamento em São Gonçalo, Rio de Janeiro. Angélica conversou com os amigos e pressionou a polícia para investigar. “Nunca tinha ouvido falar em crime de ódio, não sabia que alguém era capaz disso. Dói muito imaginar a cena do meu filho, uma criança, lutando três horas pela própria vida”, afirma. Os três suspeitos são skinheads e respondem em liberdade.
 

“O pior foi a reação das pessoas”
Augusto (nome fictício), estudante da Universidade de São Paulo, voltava da balada com um amigo, na região central de São Paulo, quando os dois foram atacados por oito jovens vestidos de preto. Levou uma garrafada no olho, e o amigo foi atingido a socos e pontapés. “Não houve palavra nem provocação. Eles simplesmente nos atacaram”, disse. Traumatizado com a agressão, Augusto diz ter deixado de sair à noite. Tem pesadelos constantes, nos quais está com amigos e de repente alguém morre. O mais traumatizante, afirma, não foi o ataque em si, e sim a reação das pessoas a ele. “Alguns disseram que eu tinha mesmo de apanhar, por ser gay.” A atuação da polícia, segundo ele, também deixou a desejar. “Depois do ataque, encontrei uns policiais e pedi que eles mandassem uma viatura. Enquanto estive ali, eles não fizeram nada.”
 
“Pensei que era brincadeira”
Alto, magro, com piercing na orelha, Luís Alberto Betonio, de 23 anos, ficou conhecido nacionalmente como o jovem que foi atingido com uma lâmpada fluorescente no rosto. Ele caminhava com amigos gays em novembro, na Avenida Paulista, região central de São Paulo, quando foi atacado. “Pensei que era brincadeira. Senti meu rosto coberto por um líquido. Depois vi que era sangue.” Eram cinco agressores, que atacaram no total quatro jovens. Uma das agressões – a de Betonio – foi filmada pela câmera de segurança de um banco, e os agressores acabaram identificados e detidos. Eram quatro menores (enviados à Fundação Casa) e um maior de idade, que está foragido desde que foi indiciado, em janeiro.
 
Uma história de superação
Aos 12 anos, em pleno alto verão do Rio de Janeiro, a carioca Jô ia de calça comprida e blusa de manga comprida para a escola. Queria esconder as cicatrizes deixadas pela surra da mãe. “Sapatão!”, gritava. Jô diz que apanhava por ser gay, sem ainda entender o significado da palavra. Chegou a ser internada num hospício, de onde conseguiu fugir. A mãe a encontrou e a acusou de “delinquente”. A denúncia lhe rendeu uma temporada numa casa de detenção. “Vi coisas lá que não desejo a ninguém”, diz. Aos 16 anos, foi estuprada por um homem que dizia que “iria dar um jeito nela”. Jô engravidou do estuprador e seu filho hoje está com 25 anos. Depois, morou um ano na rua. Tudo passou. A funcionária pública, aos 43 anos, afirma que sua história é de superação. Diz ter encontrado a paz na Igreja Contemporânea, uma congregação evangélica que aceita homossexuais. “Usei cada pedra atirada para construir meu castelo.”
 

Fonte: Época e Esoutro Blog
Kátia Mello, Carlos Giffoni, Maurício Meireles e Martha Mendonça e Marcelo Rocha
Enviado por Jean Wyllys Fã Clube em 14/05/2015
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