A MÚSICALIDADE E DANÇA INDÍGENA
Por: Márcia Wayna
Msc em Geografia
A música na cultura dos povos indígenas assume importante significado de valor imaterial, pelo fato de ser ela elemento de memória viva. Usada nas danças, rituais, nos cerimoniais de sepultamento de algum guerreiro ou liderança da aldeia, na pajelança pela cura com rezas e plantas, nos afazeres domésticos e cotidiano de cada povo. Também é pela música que se pode saber se na aldeia o povo está feliz ou triste. A forma como é cantada unida a sua dança nos dá uma leitura de uma representação do momento que é a festa na vivência dos indígenas.
Pela música é que podemos conhecer a cosmologia de cada povo, suas crenças, seus ensinamentos. Ela nos mostra a identidade presente em cada aldeia, suas peculiaridades, unindo a dança, aos adornos que trazem como as plumagens, sua cor, sua tessitura, as sementes, e também não se pode deixar de registrar os grafismos que caracterizam a alegria, festa, ou o sentimento e importância que aquela música apresenta no momento.
Com o povo Wai Wai é assim: se os indígenas vão pescar ou caçarem eles cantam, dançam, pedindo que os espíritos da floresta o abençoem em suas caçadas e pescarias, sempre vão em grupos. Quando chegam as mulheres os recebem com cantos, danças e bebidas preparadas pela aldeia. Dançam e cantam horas celebrando o alimento adquirido que sustentará toda aldeia. Quando não pegam nada, cantam e a letra de seu canto fala dessa panema que o grupo sofreu quem ouve dá risadas do canto.
A música retrata ainda as histórias de vida, com gritos que parecem vozes de animais como macaco, envolvendo a expressão corporal, movimentos circulares, onde os homens dançam segurando uns nas mãos dos outros em forma de caracol e as mulheres da mesma forma. Elas ficam no centro da roda e eles fora, e a dança começa sem hora certa para parar, os cantos sempre animados, nesse momento eles mudam a dança formando filas, um segurando no ombro do outro, depois uns pulos como fazem alguns animais, outra hora imitam o morcego abrindo os braços.
O canto e a dança tem o poder de levar as pessoas ao transe, pois são ainda um elo de ligação entre os dois universos: natural e sobrenatural, onde acredita-se que com o canto seres encantados venham a fazer parte desse momento ritualístico por assim dizer.
O curupira um ser da floresta que defende a mata e os animais da destruição, muito temido pelos indígenas e ribeirinhos da Amazônia, é descrito como sendo um menino de aproximadamente sete anos que tem o pé para trás e cabelos longos, de cor vermelha. Faz os caçadores se perderem na mata, deixando a pessoa desorientada não sabendo achar o caminho de volta. Esse ser encantado é convidado pelos Omágua/Kambeba em um ritual chamado Zana Makatipa Curupira para uma festa onde com canto e dança ele conta sobre tudo que vai acontecer naquele lugar, naquela aldeia e na mata.
Há povos que cantam e dançam para celebrar e rememorar a presença de seus antepassados que segundo sua crença e memória se mantêm presentes em espírito por isso os que estão na aldeia dançam para que eles se alegrem também e possam ajudar na defesa de seus bens como a mata, o território. Existem danças aonde os homens vão à frente tocando flautas e as mulheres seguram em seus ombros e dançam junto. Assim acontece na aldeia, os povos cantam e dançam sua historia de resistência e afirmação a uma cultura que se mantêm viva por gerações.
Também se tem orações que são cantadas e sua dança é circular ao redor de quem está sendo rezado, quem canta e dança nessa hora é o pajé espantando os maus espíritos e pedindo a proteção, saúde e fortalecendo o espírito daquela pessoa, ora o canto parece falar de lamento, ora vem como mantras. É preciso muita concentração de quem reza e canta e de quem o recebe.
Na passagem da menina para a fase adulta onde o que marca é a primeira menstruação o canto e a dança é presença. Com alguns povos o cabelo dela é cortado e recebe um capacete de penas de aves, com festa, convidados de outras aldeias, o ritual começa, as bebidas são preparadas com cuidado, muita caça e peixe assados marcam esse momento. Com o povo Tikuna do Amazonas a festa da moça nova tinha todo um ritual que começava bem antes, quando construíam o local onde a menina passaria um mês aprendendo com as mulheres mais velhas ensinamentos usados em sua casa, no trato com seu marido e filhos. Nesse ritual o cabelo da menina era arrancado, e era um processo que aos olhos de quem assistia parecia ser muito dolorido, mas que para o povo tem um significado importantíssimo de cultura e identidade.
Podemos ver que a musicalidade na vivência indígena não se separa da dança, mesmo quando cantam sentados eles batem os pés, acompanhando a música. Há uma sincronia muito interessante nesse momento de canto e dança e uma expressão que só quem é indígena e quem presencia pode sentir. Os indígenas cantam e dançam em uma forma de louvor e agradecimento a tudo que vem da terra, da água, do céu, numa simplicidade ensinam passando sua cultura aos mais jovens e crianças.
Mas, se pensamos que mesmo em aldeias distantes da cidade não se tem tecnologia estamos enganados. A presença de instrumentos musicais como a rabeca foi apresentado aos povos indígenas de maneira particular aos povos do tronco Tupi pelos missionários jesuítas em 1909. Na musicalidade de alguns povos a tecnologia se faz presente, ora se encontra violão, bateria, teclado, violino, pandeiro, mas tem ainda os instrumentos ritualísticos e de uso dos povos como maraca, chocalhos, tambores, flautas, elaborados com cuidado, cada um ao estilo de cada povo com elementos da natureza, as flautas sempre usando bambu, osso de animais como veado, as cabaças para as maracas e sementes de seringa e outros para chocalhos, sem contar os cascos de animais como tracajá usado para produzir sons na dança. No tambor usam madeira e pele de animais como jacaré, pirarucu, cobra, animais que conseguem na caça, boi entre outros.
Para alguns pesquisadores da musicalidade indígena os elementos ocidentais como chamam usados nos cantos como teclado, violino, violão etc, descaracterizam o canto. Mas se olhado pela questão cultural, pode-se dizer que a cultura por ser latente e cíclica e ser algo geral, não pode estar distante da vivência dos povos, sendo que eles tem acesso a isso desde tempos passados apresentado como já mencionado pelo dito colonizador. A utilização desses elementos na visão dos indígenas que utilizam-se de teclado por exemplo, é que dá uma sonoridade diferente, deixando o canto mais alegre, no entanto os sinais diacríticos de pertencimento e identidade não são alterados e nem perdidos. Apesar de fazerem uso do teclado, a letra e a melodia estão na língua mãe como popularmente se chama. Lembrando sempre que os povos indígenas são uma nação altamente cultural, sabem, entendem e vivem nesses dois universos: indígena e não-indígena entendendo que não são objeto de antiquário seguem sua caminhada tecendo sua história com seu canto e sua dança na alegria de ser quem são.
Com o povo Omágua/Kambeba a dança acontece em círculos unindo as mãos, em fileiras, uma fila das mulheres e outra dos homens onde um fica ao lado do outro. Em algum momento imitam animais como a garça, e pássaros de nossa fauna importantes na cosmologia do povo. O canto se dá na língua tronco Tupi e de composição da própria aldeia retratando momentos de vivência ou uma forma de louvor a natureza. É aí que consiste a diferença do canto e composição indígena para um canto e composição de algum cantor de nome por exemplo, um canta para louvar, agradecer, alegrar-se, falar de seus anseios e lutas, mostrar sua cultura etc., e para esses há todo um ritual de preparo, começando com a colheita do fruto que dará a pintura corporal tido por todos como uma roupa que veste a pele do indígena, depois vem as plumagens que adornam seu corpo, deixando-o mais bonito e identificando sua nação, em seguida os instrumentos de som como maracas e chocalhos, com gritos e alegria começa a festa e os cantos. Para o outro cantar, tocar, é uma forma de conseguir prestígio e certa aquisição financeira em meio à sociedade em que vive. Por isso, a cultura indígena é tão diferenciada em todo seu aspecto.