Reflexões Sobre a Vida e a Filosofia.
"Não podemos conhecer o mundo se não nos conhecermos a nós próprios. Parece ter sido esta a ideia de Sócrates, quando tomou o comando da barca da Filosofia e colocou pela primeira vez a questão do Homem como objecto principal da reflexão filosófica. Surgiram depois a História, a Sociologia, a Economia, a Biologia, a Antropologia, a Psicologia (não necessariamente por esta ordem) e tantas outras disciplinas. Mas, 2500 anos depois de Sócrates, que sabemos nós sobre esse animal - que uns afirmam ser tão diferente dos restantes e outros acham que, afinal, "nem por isso"? Qual a sua principal faceta ou característica?
Animal "político", como afirma Aristóteles? "Simbólico", como pretende Cassirer? "Religioso" (Burke)? "Metafísico" (Schopenhauer)? "Erótico" (Freud)? "Cultural" (Geertz)? Animal dotado de humor, ironia, moral e, evidentemente, do tão proclamado amor - ah, o amor! - incluindo o seu irmão gémeo, o ódio?
Naturalmente "bom", como acredita o senhor Rousseau? "Egoísta", como constata Mr. Smith?
Para que servem a inteligência, a razão e o pensamento? Essa coisa a que chamamos "inteligência" distingue-nos (será que distingue?) dos outros animais pela nobreza que lhe associamos ou, pelo contrário, como mostram Byrne e Whiten, a inteligência surge no homem (e nos antropóides) para sermos mais astutos e nos enganarmos uns aos outros? Seremos, afinal, meros "invólucros" que os genes construíram para passarem de geração em geração, através dos nossos corpos, e assim se perpetuarem no tempo (Dawkins)? Será a Arte (a hipótese ocorreu-me agora) a revolta humana contra essa ditadura genética?
O verdadeiro conhecimento é determinista, como acreditava Einstein (apesar dele próprio ter sido o coveiro do determinismo), ou indeterminista, como pretendia Bohr? (Esta até parece fácil...)
Podemos conhecer apenas o que nos garante a experiência, como mostrou Kant, ou é o próprio futuro que está na nossa mão, como profetizaram Hegel e Marx, ao prometer-nos um caminho?
"Questions, questions, questions", diria o grande Frank (não confundir com Grand Funk) Zappa, mostrando como, afinal, pouco avançamos desde Sócrates (o grego).
Na verdade, a busca parece não ter fim e, se "toda a ciência é cosmologia", como afirma Karl Popper, então temos de conhecer o Universo para nos conhecermos a nós próprios. (Uma pescadinha de rabo na boca, portanto).
Essa tarefa, diz-nos ainda Sir Popper, é como procurar, "numa sala escura, um chapéu preto que não está lá". Uma busca interminável para alguns, mas resolvida há muito por outros. Debruçar-me sobre outro tipo de dogma - as ideologias proféticas. Sim, elas são tão dogmáticas como a maioria das religiões, e os que as seguem fazem-no pela mesma razão que imputam aos religiosos - crença pura e dura. As semelhanças são extraordinárias. (A única diferença é que a religião promete o paraíso no Céu e as ideologias proféticas prometem o paraíso na Terra). E se é verdade que as religiões foram (e são) responsáveis por guerras fratricidas, é igualmente verdade que as ideologias proféticas, em menos tempo, foram (e são) responsáveis por uma matança ainda maior.
Na ressaca de uma dessas matanças, a II Guerra Mundial, Karl Popper escreveu "A Sociedade Aberta e seus Inimigos". Nessa obra mostra (como já mostrara em "A Pobreza do Historicismo") como as profecias históricas se formam, como são passíveis de desconstrução (pelo mero ponto de vista lógico) e como, no fundo, não passam de superstições e falácias. Tudo claro como água. As profecias são do campo da crença e não do campo da ciência, e é impossível uma teoria "científica" sobre o futuro da humanidade.
Outra obra indispensável, (complementar à de Popper), para compreender as ideologias proféticas é "As Origens do Totalitarismo", de Hannah Arendt, igualmente escrita na ressaca da II Guerra Mundial, onde ela nos mostra como foram criadas, ao longo de muitos anos, as condições propícias (com as primeiras teorias racistas e o ódio aos judeus, por exemplo) para o surgimento dos nazismo e estalinismo, regimes totalitários (um escalão acima das ditaduras), onde o extermínio é praticado sistematicamente.
Acredito que a esmagadora maioria dos adeptos das profecias históricas não leu qualquer destas obras. Alguns nem sequer leram Marx...
Nada disso os impede, porém, de sentirem uma certa superioridade moral. Afinal, eles estão do lado do bem, do lado justo, do lado certo; não se cansam de defender os pobres, os operários, os oprimidos, os injustiçados deste mundo. Palavras como "amor", "paz", "felicidade" saem sem esforço de suas bocas e de seus dedos. Essa sua suposta superioridade permite agredir os não crentes com todo o tipo de invectivas, como se pode verificar diariamente um pouco por todo o lado, incluindo os espaços sociais, como este, onde a verborreia corre, virtualmente, como a água de um rio.
Confesso: estou cansado de tanta falsa moral. A moral não se apregoa, não se julga, não se compara. Pratica-se - e é tudo. Entre a moral apregoada e a moral praticada há um abismo sem fundo.
Para se ter uma ideia, basta ler o que escreve (e ouvir o que diz) essa sumidade nacional, hoje tão em voga, chamada Raquel Varela. A propósito do seu livro "História do Povo na Revolução Portuguesa de 1974-75"", brindou-nos há dias com mais um artigo, um verdadeiro pregão, no qual apelida de "mau" e de "cobarde" o povo do "24 de Abril", em oposição ao povo "bom" que se revoltou contra o regime. Como a eterna moralista que é, Varela mantém (vamos comprovando isso no nosso dia-a-dia) o mesmo critério maniqueísta para o povo de 2015 - o "bom", que concorda com ela, e o "mau", que discorda dela ou simplesmente a ignora. Como se vê, a questão que intrigava Sócrates (não sei se também aquele que foi para França estudar Filosofia) é exemplarmente simplificada por Varela.
Entretanto, não vi ninguém falar sobre aquelas afirmações, não li uma crítica, não vislumbrei um comentário. Em Portugal tem-se muito respeitinho por palavras como "doutora" e "investigadora". Acho isto espantoso.
Ao contrário de Varela, eu já era nascido no 25 de Abril de 1974 e até estive presente em algumas manifestações contra o regime (apesar dos meus 16 anos). Mas não é por mim que agora me manifesto. Faço-o pelos meus pais que já faleceram, pelos pais dos meus amigos e por muitos homens e mulheres que conheci - tantos deles analfabetos - que passaram por vicissitudes (chamemos-lhe assim...) que Varela, no seu conforto burguês, nem consegue imaginar. É a todos eles, gente anónima, que Varela se arroga o direito de chamar "cobardes"...
Vivemos num país livre. Varela pode dizer o que quiser e pode parecer, à primeira vista, que qualquer um pode comprar o seu peixe podre.
Eu não posso. Há algo no mais profundo de mim que não deixa".