Como os gregos viviam com seus mitos (Maurício Tuffani-Folha)
Em seu livro “Os Gregos Acreditavam em seus Mitos?”, publicado originalmente em 1983 e lançado há poucos meses pela Editora Unesp, o historiador e arqueólogo francês Paul Veyne mostra que é necessário virar a pergunta do título pelo avesso para respondê-la.
Essa indagação, explica o autor, já carrega um juízo negativo sobre a própria possibilidade de serem ou de pelo menos terem sido formas de conhecimento as narrativas sobre deuses como Zeus (Júpiter para os romanos) e Poseidon (Netuno) e heróis como Perseu e Hércules.
Professor honorário do prestigiado Collège de France, Veyne, 84, é autor de clássicos da história das ideias, entre eles “Como Escrever a História” (1970), “O Inventário das Diferenças” (1976) e “A Elegia Erótica Romana” (1983).
Aproximação
Veyne “conhece o labirinto em que se entra quando se quer fazer a história dos jogos entre o verdadeiro e o falso”, disse Michel Foucault (1926-1984) em “História da Sexualidade” (1984) ao agradecer por suas contribuições.
E é justamente o labirinto de séculos de interpretações acumuladas sobre os antigos mitos gregos que Veyne revela e desvenda para responder à questão do título do livro.
A investigação do historiador francês não começa nos gregos, mas também não faz uma inversão da ordem temporal. Ela é sobretudo uma aproximação que a cada passo revela ciladas armadas por nós mesmos para nossa compreensão, a começar pelas comparações com o racionalismo e a ciência posteriores aos mitos.
Enquanto nos prendermos a esses modelos “não compreenderemos nada da cultura e não conseguiremos ter a respeito da nossa época o mesmo distanciamento que temos a respeito dos séculos passados, nos quais se falou de mitos e deuses” (pág. 177).
Ciladas
Essas armadilhas conceituais, segundo o autor, capturaram até mesmo estudiosos renomados sobre o pensamento antigo, como o alemão Werner Jaeger (1888-1961) em sua monumental “Paideia: A Formação do Homem Grego” (1936).
Jaeger, afirma Veyne, interpreta nos heróis míticos dos versos de Píndaro (522-443 a.C.) uma imagem sublimada e poética dos guerreiros da aristocracia grega. Os poeta os teria louvado para satisfazer uma necessidade social de seus nobres ouvintes.
“É pôr o carro na frente dos bois”, diz o historiador sobre essa e outras explicações que, segundo ele, se reduzem a uma sociologia da literatura.
Mesmo entre os mais estudiosos, a relação com os mitos era complexa:
“Nos doutos, a credulidade crítica, por assim dizer, alternava-se com um ceticismo global e convivia com a credulidade irrefletida dos menos doutos; essas três atitudes se toleravam, e a credulidade popular não era culturalmente desvalorizada. Essa convivência pacífica de crenças contraditórias teve um efeito sociologicamente curioso: cada indivíduo interiorizava a contradição e pensava coisas inconciliáveis a respeito do mito, ao menos para um lógico; o indivíduo não sofria com suas contradições, muito pelo contrário: cada uma servia a um objetivo diferente.” (pág. 91)
Proveito
Além desse exemplo, o livro mostra diversas outras formas de convivência dos gregos com o mito desde antes do século 6º a.C., quando viveu o filósofo Sócrates e teve início, com as reformas de Sólon, a chamada democracia ateniense.
Entre essas formas de convivência, fiz Veyne, vale destacar que os gregos não enfatizavam em suas questões o que o mito explicava e preferiam a partir dele fazer algo mais útil, como, por exemplo, estar atentos ao pensamento e à ingenuidade humana.
Neste início de século em que ainda muitos acreditam em interpretações literais bíblicas, segundo as quais a Terra teria menos de 6 mil anos e Deus proibiria transfusões de sangue, é um alento saber do relançamento de obras cuja lucidez ajuda a desfazer o aviltamento simplista de importantes e antigas narrativas de nossa civilização.
Maurício Tuffani