SABEDORIA CHINESA
O lobby da civilização ocidental consegue perverter a mente da maioria da população através de um discurso preconceituoso, pelo qual se ressalta o Ocidente e se diminui, ou até se ignora, os valores das outras civilizações. Neste contexto, é espantosa a nossa ignorância em relação à cultura indiana, à cultura árabe, à cultura chinesa. Cada uma delas com mais de 1 bilhão de pessoas. Além de não se ensinar praticamente nada sobre a vida cultural destes três e meio bilhões de pessoas, as escolas ocidentais ignoram totalmente outras inúmeras culturas menores, cuja população chega a outro bilhão e meio de gente. Assim julgamos que a civilização ocidental é a única que presta. Uma visão destas do mundo demonstra uma enorme ignorância.
Alguém poderia argumentar que a “globalização” está mudando esta situação de nossa ignorância em relação à maioria das culturas da terra. É verdade, para aqueles, relativamente poucos homens cultos, viajados, negociantes internacionais os horizontes de seus referenciais já mudaram. Já existem alguns brasileiros estudando mandarim, o comércio entre o Brasil e a China já aumentou. Mas isto ainda é muito pouco. Quanto à Índia nossa ignorância ainda é maior. Quem sabe que na Índia se produzem mais filmes do que nos Estados Unidos? Entre nós, praticamente ninguém conhece algum filme produzido na Índia. E, para a maioria, todos os árabes são fundamentalistas e terroristas. Penso que, nós ocidentais, deveríamos nos interessar muito mais pela sabedoria destas culturas que, preconceituosamente, ignoramos, embora sendo muitas delas mais antigas do que a cultura ocidental.
Um exemplo de sabedoria chinesa: Estudantes chineses se concentraram em frente ao palácio governamental, para protestar contra a prisão do Vice-Reitor da mais célebre universidade do país. A acusação contra o Vice-Reitor: ter criticado a corrupção governamental. A crítica dizia que os principais oficiais do governo somente cuidavam de seus próprios interesses, e o povo era obrigado a sujeitar-se a eles. O Vice-Reitor foi demitido e a corrupção continuava. Esta corrupção era indício do declínio governamental.
A demissão do Vice-Reitor, bem como o protesto dos estudantes, não é um fato da China de hoje. Aconteceu em 798 d.C. Yuan Cheng foi exilado. Em sua tribulação se demonstrou um sincero discípulo de Confúcio. Um historiador do séc. IX registrou o fato em suas memórias, escrevendo: “Um Primeiro Ministro pode até controlar o destino de uma pessoa por décadas, mas o historiador faz com que os nomes das pessoas permaneçam através dos séculos, ou sejam deletadas para sempre”. A partir desta sabedoria, os nomes dos que exilaram Yuan Cheng ninguém mais sabe. Mas Yuan Cheng, até hoje, inspira protestos.
Em relação a este mesmo acontecimento com Yuan Cheng, um jovem oficial, Liu Zongyuan, escreveu uma carta aos estudantes, animando-os: “Vocês, agora, estão empenhando todas as vossas energias para uma causa justa... Estudantes, os vossos protestos não se referem apenas a vocês, mas são importantes para todo o país... Registro isto, por escrito, para encorajá-los em vossas nobres intenções, e fornecer aos futuros historiadores material para as suas narrativas históricas.”
As palavras, escritas por Liu Zongyuan, ainda hoje, inspiram e animam protestos de estudantes na China e em todo o Oriente!
Mas, também um outro dissidente chinês, dos tempos antigos, merece ser lembrado por sua sabedoria. Chamava-se Qu Yuan. Era oficial da corte de um reino às margens do Rio Amarelo, no séc. III a.C. Suas advertências foram ignoradas pelos políticos do reino em decadência. Qu Yuan é considerado o primeiro poeta chinês. Com suas poesias iniciaram-se os primeiros festivais com os dragões chineses. Mas sob a pressão de seus inimigos, suicidou-se. Desde então reconheceu-se a importância da literatura para imortalizar os escritores e suas ideias.
O primeiro historiador chinês, Sima Qian, em vez do suicídio ou pena de morte, frente à repressão e condenação de seus relatos, preferiu aceitar a condenação humilhante da castração. Ele mesmo justificou sua escolha em seus escritos: “O ser humano apenas morre uma vez. Talvez alguém me considere fraco e covarde, e considere vergonhoso eu ter preferido prolongar minha vida. Eu sei perfeitamente a diferença entre o que se deve aceitar e o que se deve rejeitar. Eu recusei morrer, porque estava convencido de que ainda tinha em meu coração coisas que não conseguira expressar suficientemente, e eu sentia vergonha em pensar que, depois de minha morte, meus escritos não seriam conhecidos pela posteridade. Há numerosos homens da antiguidade, ricos e nobres, cujos nomes desapareceram. Somente os sábios e os que buscam a verdade, os homens realmente extraordinários, continuam sendo lembrados... estes relatam fatos do passado, deixando registrados, por escrito, os seus pensamentos para proveito das gerações futuras.”
Mas, nem mesmo na China, a sabedoria de seus mestres sempre foi respeitada através dos séculos. Já o primeiro Imperador chinês, aquele dos exércitos de terracota, no período entre a vida do poeta Yuan Cheng e do historiador Sima Qian, ordenou que fossem enterrados vivos numerosos oficiais que seguiam a sabedoria de Confúcio. Além disto, este imperador mandou queimar todos os livros que criticavam a corrupção de seu governo.
Assim não é de estranhar que, em nosso tempo, apesar da sabedoria ensinada há milênios, homens ignorantes, com espírito totalitário, queiram impedir que os escritores registrem os fatos e os pensamentos de nosso tempo. A estes vocacionáveis tiranóides, talvez, o mais útil presente seria oferecer um curso de sabedoria chinesa histórica. A respeito da China somos uns ilustres ignorantes, tanto no que os chineses produziram de sabedoria, como no que realizaram de maldades históricas. Os escritos que deixaram permitem fazer o devido discernimento. Mas, para isto, é preciso conhecer estes escritos e a cultura destes povos.
Inácio Strieder é professor de filosofia - Recife - PE.