VALE A PENA PENSAR?
"Puisque je doute, je pense; puisque je pense, j´existe". Idade Média. Pretensão de Descartes para que o conhecimento humano - sólido, seguro, duradouro - tivesse por princípio a dúvida, o pensar, o refletir, o analisar...
Numa sociedade crescentemente escravocrata - obra que se espalha, aparentemente indestrutível, pelas colônias ocidentais de então -, Descartes denuncia o pensar como privilégio de alguns poucos (como se "pensar" significasse "ter poder sobre o outro") enquanto o outro, embora maioria, apenas serve, obedece cegamente às ordens e às verdades estabelecidas; até aceita a imolação como algo natural ou divino.
Foi exatamente nessa era que a colônia portuguesa chamada Brasil se encheu de degredados, depois de escravos, que nada criam - somente obedecem.
Livros?
Não há registro de livros impressos no Brasil colônia. Houve alguns de uso restrito do clero, mesmo assim, se constata que, em 1724, uma dessas obras eclesiásticas, encontrada na Biblioteca de Santo Inácio, havia sido impressa no vizinho Paraguai. O reino de Portugal não permite a impressão de livros na colônia.
"Pensar"? - Risco para a economia do reino.
“Não pensar”? - Maior disponibilidade de mão de obra braçal.
É bem verdade que durante a ocupação holandesa - 1630/1650 - algumas obras foram impressas em Pernambuco. Todas, entretanto, inteiramente destruídas pelas forças portuguesas que retomaram o domínio.
À revelia da proibição Real do pensar, o governador do RJ e MG, Gomes Freire de Andrade, entre 1747 e 1752, estimula a impressão de livros em seu próprio palácio: "Academia dos Felizes", depois "Academia dos Seletos". Ao chegar a notícia em Lisboa, o senhor rei manda fechá-la, por julgá-la inconveniente e contraproducente.
A maior valia é o trabalho braçal.
A um escravo musculoso se dá maior importância do que ao mais destacado ou volumoso dos livros.
"Pensar não volve a terra, tampouco mói cana nos engenhos". Um mal hereditário que afetou muitos brasileiros até os dias de hoje.
Nos reinados, os reis pensam pelos súditos e pelos servos.
1808. A Imprensa Régia vem para o Brasil com todo o reinado. Somente se permite imprimir publicações do interesse do Reino. Tanto que o periódico “Correio Brasiliense”, de Hipólito José da Costa Pereira Furtado, continuou sendo impresso na Inglaterra até o início da Primeira Guerra Mundial. Nada obstante a criação da Biblioteca Real, em 1810 - depois, Biblioteca Nacional - todo e qualquer trabalho literário do Brasil, exceto do Reino, se torna moroso e oneroso por depender de impressão na Inglaterra. Situação inversa à dos nossos vizinhos: Argentina, Uruguai, Paraguai e Chile, que, nesse aspecto, estão séculos de vantagem à nossa frente.
Logo após a Primeira Guerra Mundial, surge, nos meios literário e editorial, o escritor e editor Monteiro Lobato. Início de uma era literária, tanto que ele prefere escrever contos lendários para atingir a base da população, em especial o público infantil.
Tão pouco é o interesse brasileiro pela literatura, que ele fracassa no ramo editorial. Aí, volta-se por inteiro para a literatura e escreve “A Negrinha”, obra em que mostra, nos relacionamentos interpessoais e intergrupais do brasileiro, resquícios fortes de uma sociedade preconceituosa e escravocrata.
"Como uma menininha, provinda de um meio rude, se sentia feliz em ser tratada como pessoa quando lhe davam nomes pejorativos, inclusive o de “Negrinha”!... Ainda hoje, por haver abordado temas desse estilo, denunciando o comportamento de uma sociedade servil e de atitudes discriminatórias, Lobato é acusado de racista. Apesar do pioneirismo, muito pouco se pensou, à época, sobre a importância sociológica de sua obra.
Depois, 1935, o País passa pelos rigores e horrores de uma grande ditadura - travestida com o manto de O Estado Novo - sob a égide de Getúlio Vargas - que desfez no todo a recém-instituída Constituição de 16/07/1934. Fecha o Congresso e, consequentemente, limita os direitos de votar, de falar e - é obvio! - o de pensar. Estrategicamente, cria o DIP - Departamento de Imprensa e Propaganda - para censurar os órgãos de imprensa e outros veículos de comunicação existentes. O DIP, por sua determinação, obriga (e fiscaliza) o destaque de atos nacionalistas e obras do governo populista. Vargas impõe a matéria “Educação Moral e Cívica” em todos os níveis de ensino - também sob fiscalização do DIP - disciplina que, na essência, somente enaltece os fatos e feitos do getulismo.
Getúlio ganha exuberante força quando, em 01/05/1943, institui a C.L.T. (Consolidação das Leis Trabalhistas). “Trabalhadores do Brasil!”, invoca em seus discursos. Todavia, sub-repticiamente, deixa fora do amparo legal trabalhista: o homem do campo e as empregadas domésticas - considerados semiescravos até nossos tempos.
Enfim, Getúlio funde seu autoritarismo com desenvolvimento econômico e social, além de manipular em seu favor todos os meios de comunicação. E, mais, mostra-se um ferrenho defensor do hitlerismo, tendo impedido, inclusive, o País de receber imigrantes judeus.
Tudo justificado - verdade ou não - em seus bem elaborados e extensos discursos. O poder pensando no lugar do povo. Getúlio extravasa o seu pensar falando para o povo, que, ignorante de tudo o que acontece entre as quatro paredes do poder, o aplaude em grandes manifestações organizadas pelo DIP no país inteiro. Um poder de intolerância que se populariza e se estende até os idos de 1954. Vem de longe, portanto, o tolhimento do pensar do brasileiro.
Ainda no meio desse mesmo século XX, o mundo atravessa as agruras da Segunda Guerra Mundial. Nos rádios e nos jornais um único assunto: a guerra. O sentimento popular é só de pavor: o silêncio, a mudez, o medo...
Nas guerras, os generais pensam pelos vivos.
Dezenove anos depois dessa guerra, teve-se implantada no país mais uma ditadura, que se estendeu por vinte e um anos (!). Novo tolhimento do pensar e do falar, sob a mira de fuzis. As forças armadas (subsidiadas em dólares até os idos de 1967), defendem o interesse ideológico norte-americano. Qualquer manifestação contrária aos EEUU significa subversão ao regime aqui instituído. Nova onda de censura a tudo e a todos. Fora da cartilha militar fica suspenso, mais uma vez, o direito de pensar.
O DOPES - Departamento de Ordem Política e Social - instituído em 14/04/1928 para reorganizar a polícia dos estados, passa a fazer parte do aparelho repressivo da ditadura militar. Investiga as ações dos sindicatos dos trabalhadores, dos movimentos estudantis e das organizações clandestinas. Censura todas as publicações literárias, os trabalhos artísticos - teatrais e musicais - e tem os meios de comunicação sob seu chicote. Muitos de seus arquivos são queimados pouco antes do final do regime ditatorial, dificultando registros essenciais ao conhecimento da verdadeira história do país.
O Brasil termina o século XX tateando a liberdade, o direito de pensar, só que com muitos séculos de distância do pensar cartesiano. A juventude, ainda medrosa, como que renuncia a esse sagrado direito. Resta acuada e sem noção do fenômeno libertário, indiferente aos seus efeitos. Em compensação, fazem-na encantar-se com o tudo pronto nas vitrines dos shoppings e nas gôndolas dos supermercados. Transformam-na em consumistas do imediato. Tudo está à sua disposição e pronto nas TVs e videogames, para introspecção rápida, ilusória e prazerosa. O mundo globalizado lhe ensina a ser mergulhadora do consumismo: cartão de crédito facilitado, mesmo sem nada ter.
Com a pecha de não ideológica, a globalização desaparelha qualquer causa de sentido ideológico que se tente abraçar; abomina qualquer manifestação dessemelhante do consumismo - seu campo de maior influência.
O jovem brasileiro se anula, se aliena, passa a ser um ser sem ser...
Celulares no bolso, I-Pad, I-Phone... A Internet chama: marcha da maconha, marcha gay... Puro modismo. A juventude, em qualquer parte do mundo, é sempre atraída pelo modismo. Vai...
Novo apelo pela Internet. Vai, sim, por que não? Desconhece a causa. Causa de quê?!... Nada fala, porque nada pensa. Quem não pensa, massifica-se, vai com os outros... E vai, calada, escondida sob máscaras. Queima ônibus. Quebra vidros. Derruba tapumes. Atira pedras, ou coquetéis contra a polícia... Desqualifica-a. Não sabe o por quê... Segue o modismo.
Não há como deixar no esquecimento Antoine de Saint Éxupery, que escreveu, nos estertores da Segunda Guerra Mundial, o romance “Terra dos Homens”. Em seu relato, um garoto se angustia e chora em silêncio porque precisa fazer algo para desviar a humanidade da cegueira que o desenvolvimento tecnológico proporcionará em arrancada de foguetes. Prenúncio de mudanças no mundo, como se estivesse a profetizar o fim de toda uma estrutura de relações estáveis.
Junto ao desenvolvimento tecnológico, a globalização. Isto quer dizer: a máquina substitui o pensar do ser humano - que parece conformado com o seu mero valor de mercado. Valor medido pela sua capacidade de consumo.
Ah, Éxupery, conforme tua previsão, a tecnologia cegou a humanidade.
Ah, Descartes, o conhecimento humano, hoje, está mercadologicamente robotizado!...
"Puisque je ne pense pas, je n´existe pas".
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publicado no Jornal Diário de Pernambuco, em 12/03/2014, pelo advogado e escritor pernambucano - José Humberto Espínola Pontes de Miranda (autor de "O reencontro").
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