O cordel na literatura infantil e juvenil
Por: Marco Haurélio
A literatura de cordel, sabemos, despontou no Brasil no século XIX, embora seu embrião, oriundo de Portugal e da Espanha, já alimentasse o romanceiro tradicional desde o início da colonização. Já em 1865, no Recife, a publicação de um folheto em quadras de autor anônimo, O testamento do macaco, chamava a atenção, pelo tom moralizante e ao mesmo tempo bem-humorado:
Tendo feito a diferentes
Animais seu testamento
Justo é que o do macaco
Empreenda neste momento
Muito semelhante, por sinal, a um cordel português igualmente em quadras, O testamento do gallo, publicado em Lisboa quatro anos antes:
Já que estou em meu juízo
Testamento quero fazer
Para meus bens deixar
A quem melhor me parecer.[1]
Edições pioneiras
Foi com Leandro Gomes de Barros (1865-1918) que o cordel desabrochou e alcançou um grande público. Grande empreendedor, este paraibano radicado no Recife burilou os temas preferidos pelo povo, mas se restringiu a isso. Dele são alguns dos maiores sucessos do cordel em todos os tempos, como os romances dramáticos O cachorro dos mortos, A força do amor, Os sofrimentos de Alzira e A vida de Pedro Cem. Dele são, ainda, os folhetos cômicos O cavalo que defecava dinheiro e O dinheiro (O enterro do cachorro), que, reaproveitados por Ariano Suassuna, inspiraram a peça Auto da Compadecida. O outro folheto que inspirou o Auto é O castigo da soberba, atribuído a outro poeta pioneiro, o também paraibano Silvino Pirauá de Lima (1848-1913).
Leandro Gomes de Barros ainda deu vida a um conto popular, a História de Juvenal e o Dragão, que, recontada em versos, vem encantando gerações em mais de um século de reedições ininterruptas. O seu enredo, que traz o mais arquetípico conto de herói, é a maior razão deste sucesso, e Juvenal e o Dragão pode ser considerado um dos primeiros cordéis infantis do Brasil. Não que, no tempo de Leandro, houvesse essa distinção, mas a razão de ser um dos preferidos dos pequenos leitores — ao longo dos anos, ao lado, talvez, de outro grande clássico, o Romance do Pavão Misterioso, de José Camelo de Melo Resende, escrito na década de 1920 — ratifica esta afirmação.
Outro patriarca do cordel, João Martins de Athayde (1880-1959), que se tornaria o grande editor do gênero no Brasil, homem de grande visão mercadológica, é autor de Raquel e a fera encantada, uma versão do conto A Bela e a Fera, e de História da princesa Eliza, que recria o conto Os cisnes selvagens, de Hans Christian Andersen. A bem da verdade, Athayde serviu-se de uma adaptação feita por Figueiredo Pimentel, Os onze irmãos da princesa, que integra a obra Contos da carochinha, publicada, pela primeira vez, em 1894. Manoel D’Almeida Filho (1914-1995), outro visionário, tentou, na década de 1980, publicar um livro infantil em cordel, que conteria duas histórias: A guerra dos passarinhos e O casamento do bode com a raposa. A primeira foi publicada pela primeira vez em 2011, na Antologia do cordel brasileiro (Global Editora), e logo em seguida ganhou uma edição pocket na Luzeiro, editora que detém os direitos sobre a obra. Há que se destacar ainda a iniciativa do poeta Marcus Aciolly que, em 1980, lançou Guriatã, um cordel para menino, ilustrado com linoleogravuras do mestre pernambucano José Cavalcante Soares, o Dila.
Tradição renovada
Um novo momento na história do cordel é instaurado a partir do emblemático evento 100 Anos do Cordel, idealizado pelo premiado escritor e jornalista alagoano Audálio Dantas, e realizado no SESC Pompeia, em 2001. A iniciativa, que se apoiava na ideia do início da produção regular do cordel a partir da cidade do Recife, no início do século XX, perfazendo, portanto, cerca de 100 anos, foi imprescindível para que o mercado editorial olhasse “com outros olhos” (sic.) a literatura bárdica do Nordeste. Mesmo assim, os investimentos iniciais foram tímidos e, aqui e ali, surgia uma publicação ainda carente de uma identificação maior com os temas clássicos do cordel.
A grande mudança veio em 2007, com a criação da coleção Clássicos em Cordel, idealizada por Nelson dos Reis, fundador da editora Nova Alexandria. Sem reivindicar o pioneirismo na ideia da adaptação de obras clássicas para a poesia popular, presente desde os tempos de Leandro Gomes de Barros e João Martins de Athayde, o projeto inovou ao enquadrar a mesma ideia em um projeto de coleção que abrangesse obras de diversos autores adaptadas livremente por poetas cordelistas. Já em seu primeiro ano, a editora emplacou três títulos no Programa Nacional Biblioteca da Escola (PNBE) — Os miseráveis, de Klévisson Viana, O corcunda de Notre-Dame, de João Gomes de Sá, e A megera domada, de Marco Haurélio — e, até o momento, já conta com seis obras selecionadas pelo mesmo programa.
A Nova Alexandria, em seu selo Volta e Meia, publicou uma adaptação em quadrinhos, assinada por Klévisson Viana e Eduardo Azevedo, do grande épico do cordel A batalha de Oliveiros com Ferrabrás, de Leandro Gomes de Barros. E, ilustrada pelo mesmo Eduardo, reeditou o clássico Juvenal e o Dragão, mantendo a integridade do texto original, e o romance O guarda-florestas e o capitão de ladrões, do poeta contemporâneo Rouxinol do Rinaré. Outro destaque do catálogo é O fantástico mundo do cordel, da escritora cearense Arlene Holanda, que traz um belo conto, de cores afetivas, e, no apêndice, apresenta as regras básicas para a composição de um folheto de cordel.
Vale citar aqui a parceria do cordelista Arievaldo Viana com o ilustrador Jô Oliveira, que rendeu títulos como O navegador João de Calais e sua amada Constança (FTD) e A peleja de Chapeuzinho Vermelho com o Lobo Mau (Globinho). E destacar o papel de protagonistas assumido por nomes como Arlene Holanda, Klévisson Viana, Paiva Neves, Moreira de Acopiara e Evaristo Geraldo e outros descortinadores de horizontes da literatura de cordel brasileira.
[1] Ver Vera Lúcia de LUNA E SILVA. Primórdios da Literatura de Cordel no Brasil – um folheto de 1865.